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Noite de Gala do Circo flerta com linguagem contemporânea
Fernanda Araújo, especial para Panis & Circus
Ocupar o Theatro Municipal de São Paulo por duas noites foi uma conquista para a Noite de Gala do Circo, evento em homenagem ao Dia do Palhaço (10 de dezembro). Para celebrar a ocasião, os diretores Hugo Possolo e Nelson Baskerville apresentaram o espetáculo inédito “O Vidro na Visão do Passarinho”, dias 9 e 10 de dezembro. A produção moderna é conectada ao circo contemporâneo, à tendência da dramaturgia internacional e distante do circo tradicional.
No sábado, dia 9 de dezembro, data em que o Panis & Circos acompanhou o espetáculo, circenses e amantes da arte de todas as idades chegaram cedo para o grande encontro. Em clima de festa, alguns apreciaram o entardecer no centro da cidade pela sacada do Theatro Municipal, enquanto outros tiravam retratos nas dependências do suntuoso prédio projetado pelo escritório de Ramos de Azevedo.
Pouco antes do espetáculo, Bel Toledo antecipou o que estava por vir: “Como ano passado não tivemos Noite de Gala, o Secretário (André Sturm) quis ampliar a ocupação do circo e nos ofereceu duas noites no Theatro Municipal. É um privilégio estarmos com direção de Nelson Baskerville e Hugo Possolo. O resultado é uma montagem que ora é circo, ora é teatro. O circo não pode ficar só no tradicional. Ele está evoluindo e se misturando às outras artes”, disse a diretora do Conselho Brasileiro de Entidades Culturais e atual gestora do Tendal da Lapa. Vale lembrar aqui que o atual Secretário Municipal de Cultural, André Sturm, foi um dos criadores do Festival de Circo no período em que esteve na Secretaria do Estado de São Paulo.
Especialmente para a Noite de Gala foi criado “O Vidro na Visão do Passarinho”, espetáculo em que Nelson Baskerville assinou a direção geral e dividiu a dramaturgia com Thais Medeiros. Hugo Possolo cuidou da direção circense; Kiko Caldas, da direção de números aéreos. Marisa Bentivegna fez a cenografia. No palco, oito blocos temáticos propuseram uma reflexão sobre o vidro: sua criação, transparência e fragilidade.
No programa, Possolo menciona a capacidade da arte brasileira popular em dialogar com a velocidade que a vida urbana ganhou com a industrialização. Baskerville reforça a proposta contemporânea do circo, que não deve se isolar de outras artes, como o teatro, a música e o cinema. “Criamos o espetáculo ‘O Vidro na Visão do Passarinho’ – por sermos nós artistas, por isso livres (como todos são), como pássaros em seus voos. Por estarmos em uma megalópole feita de vidro, aço e sonhos”, disse o diretor geral Nelson Baskerville no texto descrito para a Noite de Gala. Nesse contexto, 20 circenses e 15 atores foram escalados para a interação com espaços e cena urbanas por cerca de 90 minutos.
Quatro placas transparentes com rodinhas entram em cena como se fossem as portas de um trem que segue rumo à estação Bosque dos Anjos. Em cena, integrantes da trupe ParaladosanjoS revisitam a obra “Crossroad – Contos Urbanos”. Uma barra de ferro desce do teto e os atores seguram e apoiam como se estivem dentro de vagões. O trem segue para a estação Clementina e Beco do Bafo. O balançar dos artistas ganha intensidade ao logo da jornada. “Estou em uma caixa de vidro”, anuncia a narradora no momento de tensão quando um rapaz fica supostamente preso, com a corda no pescoço. A estação Cidade Dalva é a última parada. A tensão é quebrada com um número de palhaçaria quando um maltrapilho entra no palco e se assusta com um dedo que surge em seu chapéu.
Virgínia Rodrigues, cantora de jazz, com voz irretocável, abriu os trabalhos da noite ao som de “Senhor do Fogo Azul”, no canto esquerdo do palco. Sobre ela, placas transparentes pendiam, presas no teto. O violonista Leonardo Mendes acompanhou a artista baiana.
No canto direito, os interpretes de Libras – Linguagem Brasileira de Sinais – Juliano Pinto Prates e Eliana Naete da Silva se revezavam traduzindo os sons durante todo o espetáculo. No fim da música, Vêronica Ned, filha de Nelson Ned, vestida de passarinho branco, ocupa o centro do palco, enquanto uma multidão desfila em passos frenéticos por todo o tablado.
Na sequência, as Gêmeas Dias (Nathalia e Nayara Dias), com roupas reluzentes e cabeças de pássaro, apresentaram um número de lira com argolas. No ritmo da música, atores se movimentavam no solo e observavam a “dupla de pássaros” que executavam a performance aérea. Ao fim, as duas são envolvidas em chalés quadriculados e a pequenina passarinha branca voo suspensa em um guindaste.
Mesa e cadeiras de madeiras chegam sobre rodas, como se estivessem dançando. A troca de cenário, em todas as cenas, aliás, é vigorosa e interage com os números de forma harmônica.
Em um bar amalucado, clientes e garçonetes têm uma certa dificuldade de entrar em acordo.
Mas a atração principal logo destaca-se sobre a luz quando Patrícia Pantaleão se concentra em uma bolha de sabão que lembra uma bola de cristal. A artista borrifa água no ar e faz bolhas da qual retira objetos, com delicados truques de mágica.
Um grande caixa entra em cena trazendo as jovens da Cia. Armário das Almas Cantantes. O móvel serve de estrutura para o desenvolvimento dos números de contorcionismo que as artistas executam com maestria. As portas do móvel servem tanto de tela para projeção, como transparência para os movimentos preliminares. Número elegante e bem executado.
O Duo Simetria, com Helder Vilela e Paulo Maeda, dá um show de concentração, rigor, força, equilíbrio e confiança. As ações são executadas com graça e leveza, até mesmo quando eles se equilibram, um sobre o outro, cabeça com cabeça. E ganham aplausos.
Os palhaços Biribinha e Mixuruca surgem ao fundo da plateia, munidos de sirenes. As luzes se acendem. Com placas de palmas e gritos, os sons convergem em um murmurar de “Asa Branca”, clássico de Luiz Gonzaga. A sinfonia segue para o palco e ganha o reforço de guizos e sinos. Mas é a música “Brasileirinho”, de Waldir Azevedo, tocada com garrafas e chocalhos que encanta o público convidado por acompanhar o som frenético batendo os pés no chão.
Virgínia Rodrigues canta mais uma música, “Mama Kalunga”, faixa inspirada nas raízes africanas. Enquanto isso, Cesar Rossi dá um show na roda Cyr.
Na sequência, três andaimes rodopiam sobre rodas em movimentos que se intensificam com o tempo. Nas duas estruturas laterais, artistas posam de figurantes enquanto a cena principalmente fica por conta de duas contorcionistas de preto e dourado.
Verônica Ned canta “Tudo Passará”, em uma bela homenagem ao pai Nelson Ned. Atrás dela, artistas com figurinos em diferentes tons de cinza trafegam de um lado para o outro carregando malas. Um ator suspende a passarinha (Verônica Ned) e os transeuntes abrem os guarda-chuvas em proteção à chuva de bolinhas de pingue pongue que cai do “céu”.
Uma frase projetada na tela por poucos segundos chama a atenção: “Pássaros criados em gaiolas acreditam que voar é uma doença”.
Um artista usa a corda suspensa para apresentar um número típico de tecido. As penas utilizadas na confecção da calça se desprendem no ar de maneira delicada e conivente com a cena. Enquanto isso, os figurantes de cinza rolam pelo chão formando um grande círculo.
A passarinha volta no colo de um dos artistas e uma poesia lembra de que “há um momento certo para tudo”. Assim, reflexivo, encerrou-se o “Vidro na Visão do Passarinho”.
Representante do circo tradicional, que preferiu não se identificar para evitar polêmicas, afirma estar ‘chocada’ com a ‘modernidade’ apresentada no Municipal e não apreciou o espetáculo.
Para o fotógrafo Antônio Sebastião de Almeida, a Noite de Gala do Circo privilegiou a mistura das artes e a dramaturgia brasileira – o que é bem-vindo na cena artística atual. Para ele, o espetáculo tem também um toque de Cirkópolis, do Cirque Éloize – centrado no retrato e movimentos de uma megalópole. Mas teve voos, em dados momentos, exóticos. Dispensáveis.
Elisa Bac, produtora, concorda com o fotógrafo: “deve-se respeitar as raízes do circo tradicional brasileiro mas isso não significa imobilidade. O circo contemporâneo dialoga cada vez mais com o teatro, a dança, a música e as artes plásticas”.
Ficha técnica
Direção Geral: Nelson Baskerville
Direção de Circo: Hugo Possolo
Assistência de Direção: Thaís Medeiros
Dramaturgia: Nelson Baskerville e Thaís Medeiros
Elenco: Armário das Almas Cantantes (Cibele Scalesi, Júlio Fuska, Maiza Menezes, Munique Tavares e Priscila Cereda), Daniel Wolf, Gêmeas Dias (Nathalia e Nayara Dias), César Rossi, Patrícia Pantaleão, Cia. Paraladosanjos (Leo Mologni, Leonardo Steinberg, Marcos Becker, Marília Ennes e Marikawa), Palhaço Biribinha e Palhaço Mixuruca, Paulo Maeda e Helder Vilela, Verônica Ned.
Elenco de apoio: Seu Viana Companhia de Teatro (Anna Talebi, Bia Souza, Fernando Vilela, Henrique Caponero, Inês Soares Martins, Julia Caterina, Jussara Rahal, Mário Panza, Priscilla Alpha e Rebecca Catalani), Janis Narevicius, Juliana Ferreira, Giba Freitas, Anne Pelucci e Mirian Brasil.
Participação Especial: Virgínia Rodrigues
Cenografia: Marisa Bentivegna
Figurinos: Marichilene Artisevskis
Iluminação: Wagner Freire
Trilha Sonora: Daniel Maia
Direção Audiovisual: Laerte Késsimos
Visagismo: Claudinei Hidalgo
Texto Doceria: gentilmente cedido por Monalisa Vasconcelos
Legenda da capa – Patrícia Pantaleão e a bolha de sabão/Asa Campos