Pé na Estrada
Fragmentos caminha para o teatro e performance
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Mônica Rodrigues da Costa*
Especial para o site Panis & Circus
Estreou em 15/01/2023 Fragmentos, espetáculo de circo novo da Artinerant’s, trupe criada em 2013 pelo acrobata e músico Nié Pedro e a aramista e dançarina Maíra Campos, que trabalham juntos desde 2004 no Circo Zanni. Fragmentos se apresenta nos dias 22/01, domingo, 25/01 quarta, 29/1 domingo, sempre às 15h, no Sesc Pompeia.
No primeiro fragmento, o ambiente do espetáculo é uma lona retangular cinza no chão na área de passagem da sala de convivência do Sesc Pompéia. Em cima de um tapete, os artistas fazem acrobacias de solo e equilibrismo. Apresentam-se também sobre uma mesa de rodinhas nos pés com três cadeiras empilhadas uma em cima da outra.
Esse desenho cênico em especial evoca a residência da peça Vizinhos (2015). Dois personagens interagem na sala de jantar, almoçam um macarrão seco, duro de engolir, e anotam algo numa prancheta de mão. Lado a lado, em casa ou na rua, o casal toma vinho, dança e realiza as evoluções.
A aparelhagem para exibir tais números de picadeiro é a própria narrativa do número. A cia. Artinerant’s adota o teatro sem palavras e procedimentos polissêmicos, poéticos, faz algumas décadas, desde que o Circo Zanni foi criado. Maíra e Nié, com mais sete sócios, inventaram o Zanni e mudaram a cara do velho picadeiro e do circo novo.
Em Fragmentos os multiartistas Maíra e Nié expandem a linguagem do circo para a intervenção e a performance na rua, no meio do público. Trata-se de uma arte em trânsito, e híbrida. As pessoas assistem ao espetáculo de várias perspectivas, sentadas no chão ou de pé em volta do retângulo enquanto passantes vão e vêm na área de convivência. Em alguma cena pode haver uma árvore dificultando a visão, é um imprevisto que só a rua traz e só o picadeiro o manteve preservado.
Ao final de cada atração, que dura de 20 a 30 minutos, os artistas se arrumam na frente do público, montam e remontam os cenários já que os fragmentos do espetáculo se espalham nos espaços da intervenção: duas cenas na área de convivência, uma no deck, ou solário, e outra na rua principal. Quatro fragmentos. Há um intervalo de cerca de 10 minutos entre um número e outro.
De figurino azul e comum, que deixa a personagem se confundir com o restante das pessoas na rua ou convivendo, Maíra Campos dança com Nié Pedro e eles seguem coreografias cuja sequência leva às exibições de acrobacias e equilibrismo.
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No primeiro Fragmento, Maíra troca o arame por uma fileira de garrafas nas quais sobe na ponta dos pés com o suporte do personagem de Nié, que é o portô nas atrações.
A exibição do equilíbrio no arame se desloca para os gargalos das garrafas, e a equilibrista do picadeiro planta bananeira, realiza giros, saltos mortais, cambalhotas e estrelas. Em momentos que ela e Nié demonstram risco, a plateia bate palmas espontaneamente e isso aconteceu nas quatro atrações.
No primeiro número de Fragmentos Maíra entra em cena com uma máscara de cabra.
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O segundo número da peça Fragmentos é apresentado na rua principal do Sesc Pompéia e reforça o traço circense da intervenção. As cenas são bem-humorados e velozes, como se estivessem aproveitando a transitoriedade.
O enredo mostra uma sequência de cenas em que os artistas fazem sempre alguma coisa e, quando terminam, realizam outras, como tocar megafone, no caso de Maíra, ou trombone, no de Nié. Os dois representam criaturas cômicas, que excedem a significação de ser palhaço.
Nié está sentado numa cadeira fazendo alguma coisa e Maíra sobe no encosto para praticar equilibrismo. Uma balbúrdia. Com um figurino irônico, que evoca uniforme escolar e militar ao mesmo tempo, Nié sempre começa seus números olhando de modo enigmático o que Maíra faz e depois mergulha na ação contracenando em bom ritmo com a protagonista.
Ela sobe à mesa para um número desafiador: equilibra-se na terceira cadeira no alto. A sala de jantar perde sua função habitual e se transforma no aparelho circense. Todos os objetos sofrem variadíssimos arranjos.
Os números adquirem identidade própria porque, embora partam da tradição do picadeiro, se transformam por meio da anti-linguagem, aberta, nascida das expressões dos personagens.
Os quatro fragmentos do espetáculo são formados com trechos das peças anteriores da companhia Artinerant’s: Vizinhos (2015), Balbúrdia (2017) e Cachimônia (2019), que compõem uma trilogia e teve a direção de Lu Lopes, a Palhaça Rubra, e produção de Marina Ferreira, do Eu.Circ.
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No final do segundo número, em gesto pop, a dupla apresenta a cena clássica da animação dos estúdios Disney A Dama e o Vagabundo (1955), em que os personagens aproximam os rostos à medida que cada um come um mesmo fio de macarrão.
No terceiro número a atração ocorre no deck, tablado comprido em que as pessoas tomam sol e os pais brincam com os filhos.
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Maíra e Nié reveem ao longo da peça o número clássico de acrobacia mão a mão, só que Nié também usa os pés como portô para os saltos e as caminhadas da aramista no ar, entre outras façanhas.
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No quarto e último número Maíra incorpora a personagem de uma coelha engraçada e ‘sexy’. Provoca risos. Ao contrário, Nié Pedro executa concentradamente as suas ações, como varrer a casa, mas a coelha o provoca de inúmeros modos, atrapalha-o e surpreende-o.
Ouve-se então a voz do ator, músico e palhaço Fernando Paz, também do Circo Zanni, recitando o poema de Carlos Drummond de Andrade “Receita de Ano Novo” enquanto Nié equilibra a vassoura no queixo ou sustenta a cadeira no queixo.
Enxerida, a coelha se coloca debaixo da cadeira de Nié. Protagonista e antagonista se enfrentam usando o humor como arma.
O final do quarto número é surpreendente. Você vai se lembrar de pássaros voando no céu.
O entrelaçamento de números e histórias da trilogia em Fragmentos revela o procedimento barroco de construção na contemporaneidade poética, que exacerba a ironia, abrindo mais ainda a significação do espetáculo. Conforme o jornalista e semioticista Umberto Eco (1932-2016) a definir obra aberta, Fragmentos se insere nessa tendência de arte, na qual cada espectador descobre o fio de ariadne do que vê.
Ficam, pois, as perguntas: O que você tem na cachola? Por que a vida da gente como vizinhos é uma balbúrdia? Cachimônia!
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SERVIÇO
Intervenção artística Fragmentos, com a Cia. Artinerant’s
Dias e horários
15/01 • Domingo • 15h00
22/01 • Domingo • 15h00
25/01 • Quarta • 15h00
29/01 • Domingo • 15h00
Local
Sesc Pompéia, diversos espaços (rampa de entrada, deck e área de convivência). End.: rua Clélia, 93, Lapa, região oeste de São Paulo.
Ingresso
Grátis.
*Mônica Rodrigues da Costa é jornalista, crítica de teatro para crianças e circo e professora de Jornalismo no Centro Universitário Armando Alvares Penteado – FAAP. Foi crítica de teatro para crianças de 1995 até 2002 no jornal Folha de S.Paulo.
Fotos – Asa Campos