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“Torres em Transe” parte do desaparecimento misterioso da protagonista para fazer poesia da história
Formação lírica da cidade de Torres representa território instável de passagem
A escritora e jornalista Maria Aparecida desaparece misteriosamente. A editora que veicula sua obra decide publicar o diário dela para chamar a atenção para o fato. A população da cidade natal de Aparecida, Torres, especula que talvez ela tenha sido vítima de um fenômeno sobrenatural ou milagre.
Nessa cidadezinha litorânea do sul do Brasil, há gente que afirma que testemunhou supostamente “tê-la visto flutuar sobre o abismo das falésias da Torre do Meio”. O local virou ponto de peregrinação de milhares de pessoas. Monta-se uma equipe interdisciplinar para investigar o caso.
Esse é o tema do livro “Torres em Transe”, da filósofa e escritora torrense Fernanda Carlos Borges, intrigante pela mistura de gêneros e focos narrativos que se entrecruzam e provocam surpresas no leitor. O enredo permanece enigmático até o desfecho.
O diário, entretanto, não obedece aos padrões memorialístico e intimista desse gênero literário. Mistura a revelação de sentimentos angustiantes, líricos, confessionais a descrições históricas da formação de Torres no sul do país. O município tem por característica ser um local de passagem desde a colonização da região.
A instabilidade da cidade se mistura à beleza de sua paisagem, repleta de abismos e um farol construído no alto de uma das falésias, com o mar revolto a dominar todos os sentidos, dos personagens e do leitor:
“São pequenos pedaços de meses de férias. Grandes pedaços de meses de silencioso inverno. Sábados. Domingos. São Domingos das Torres. Em Torres, muita coisa é assim meio aos pedaços. Pedaço de cidade ocupada. Pedaço de cidade-fantasma. Pedaços de lavouras quase abandonadas. Pequenos pedaços de sambaquis praticamente extintos. Colonos aos pedaços. Os postais e as fotos em colagens aos pedaços”.
Tudo isso é relatado no diário, escrito imediatamente antes de Maria Aparecida desaparecer e composto também de colagens (literais) da paisagem e de personagens que a protagonista reencontra ao voltar para Torres, cidade turística feita de cartões postais.
O leitor procura pistas factuais – já que o relato sobre a história e a geografia de Torres é real, como uma narrativa de não ficção – e imaginárias, nos segredos de infância e juventude da personagem narradora.
Será ela uma espécie de Padre Cícero do sul ou um Antônio Conselheiro visionário e contemporâneo? Ou esse traço de mistério é a representação do fenômeno típico da cultura brasileira, de construir mitos em torno do que não se compreende a não ser de modo intuitivo?
Fernanda Carlos Borges joga com esse tipo de ambiguidade em seu estilo metafórico de manipular os gêneros narrativos. O resultado é uma leitura veloz em busca de sinais que levem a qualquer resposta.
Como num filme, as cenas da vida de Maria Aparecida se sucedem: a casa da infância redescoberta e as relações com pai, mãe, amigas que ficaram para trás.
O modo de organização poético de “Torres em Transe” remete à forma como Virginia Woolf (1882-1941) reconstrói o passado no livro “Rumo ao Farol”, considerado obra-prima da romancista britânica.
O diário é uma espécie de desculpa para uma ficção em tensão com a não ficção que pouco fala daquilo que os diários mais falam, ainda que conserve a perspectiva subjetiva do gênero: “Uma estranha memória me situa bem antes de meu nascimento. Povoam-me os colonos na lembrança do delicioso cheiro de bosta úmida na geada amanhecida, no contraste das pedras escuras das taipas sob o fundo verde do gramado e seus capões. (…) Entendi a aparência leitosa do mar naquele dia: era o mar da minha brancura. Através dele vieram os colonizadores e depois os colonos. A água salgada traria os desencontros com a gente nativa sustentada pelas águas doces do rio e dos lagos dessa cidade.”
(Mônica Rodrigues da Costa)
“Torres em Transe” (2011) é da editora paulista nVersos. Segue o link: