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Rir ainda é melhor

Eles entraram no humor pela porta dos fundos. São palhaços revirando crenças

Debora Diniz

 

A trupe de humoristas Porta dos Fundos está no meio de um burburinho com grupos religiosos que se consideram ultrajados por alguns de seus vídeos. O Especial de Natal parece ter sido o capítulo final da saga, apesar do sucesso de audiência. O argumento do ultraje é uma leitura curiosa do artigo do Código Penal que diz ser proibido “escarnecer alguém por motivo de crença religiosa”. Escarnecer é zombar ou, em termos regionais, mangar de alguém. O alguém, nesse caso, não é um sujeito em frente a um delegado reclamando ter sido ultrajado por outro, mas hordas de crentes que se sentem humilhados quando símbolos religiosos são transformados em espetáculo do riso. A solenidade da verdade suprema não poderia ser objeto de escárnio, dizem as tentativas de silenciar os palhaços que entraram no humor brasileiro pela porta dos fundos.

Há duas formas de discordar da tese dos mal-humorados. A primeira é duvidar da leitura estreita do Código Penal sobre a proibição do escárnio. Se zombar de crenças é proibido, não pode mais haver humor. Não me parece razoável supor que somente as crenças religiosas ganhariam o estatuto de intocáveis para a zombaria – qualquer crença digna de ter alguém postulando-se como seu representante poderia reclamar o sentimento de humilhação como suficiente para silenciá-la.

O humor é a prática da zombaria – mangar do que nos escapa à compreensão ou apreensão é parte da sociabilidade. Rimos do que acreditamos, mas também zombamos do que estranhamos. E somos livres para não rir ou ignorar a zombaria de outros sobre o que acreditamos. Mais provocativo ainda é quando zombamos não só dos resquícios da senzala na casa-grande, mas da sala de estar dos senhores de engenho – o alvo da zombaria já foram os nomes das latinhas de refrigerante que o dicionário desconhece, mas agora os personagens da pilhéria são as elites cristãs.

Mas o Código Penal fala de “alguém”. O alguém não é o sujeito que peticiona contra a trupe, mas o personagem concreto a ser zombado pelo humor. Para que a zombaria ameace a integridade moral de alguém, é preciso que o humor tenha tido um sujeito específico como alvo e não simplesmente crenças. Ou que tenha sido mais do que um humor ocasional: uma paródia sistemática pode levantar a suspeita da antipatia ou da perseguição. Até onde sei, são sempre os palhaços em situações inusitadas que contracenam, seja no divã de um psicanalista embrutecido, seja no sofá da velhinha com seu sequestrador. Em meio à criatividade que faz pouco de valores burgueses ou familiares, há a zombaria das verdades sagradas. Mas isso é o humor – “a risada é uma maneira de lidar com o incompreensível”, disse uma vez Slavoj Žižek ao analisar os filmes sobre os campos de concentração nazistas que introduziam o humor nas narrativas. Houve quem se indignasse com filmes como A Vida é Bela, de Roberto Benigni (1997): o respeito à dor pediria o silêncio e jamais o riso. O risco é transformar a história dos campos no indizível e deixar de se emocionar com o pai e o filho que resistiram pela fantasia à tortura dos kapos nazistas.

O cômico é um falso espetáculo, por isso os que pedem que a porta dos fundos seja fechada me parecem sujeitos, além de mal-humorados, intolerantes à ironia. A verdade da crença não é abalada pelo humor ou, nas palavras de deus no Especial de Natal: “Querido, relaxa, o pessoal acredita em qualquer coisa. Vai por mim”. Sim, seguir deus nessa tese é a segunda maneira de resistir à interpretação equivocada dos que sustentam haver ofensa no humor. Somos livres para acreditar em qualquer coisa, inclusive para acreditar ou não no poder do humor como libertação.

O espaço em que os palhaços se exibem é de difícil acesso. É preciso ligar um computador, conectar-se à internet, selecionar o episódio, cujo título já anuncia o tom sarcástico, e postar-se diante da tela como audiência. O alguém que se sente ofendido pelo humor escolheu lançar-se como audiência, mas nem de longe a trupe tem o poder de suspender suas crenças.

A verdade é que acredito que o humor não pode ser policiado – ridendo castigat mores, já dizia Cícero. A porta dos fundos não nos castiga, mas revira nossos costumes. É um divã pelo humor que nos testa sobre o que seremos capazes de estranhar como verdades pouco sagradas. Mas não é preciso substituir a crença pelo riso. É possível rir do que não cremos. O humor é uma forma de linguagem em que importa conhecer o estatuto de quem fala e a quem se dirige a mensagem. No caso do espetáculo do Porta dos Fundos, são palhaços revirando crenças e não inimigos agredindo vítimas. Entre o palhaço e a audiência, não há lugar para a polícia. Acreditem: rir ainda é o melhor.

DEBORA DINIZ É PROFESSORA DA UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA (UNB) E PESQUISADORA DA ANIS – INSTITUTO DE BIOÉTICA, DIREITOS HUMANOS E GÊNERO

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