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HOJE TEM MARMELADA!
Carequinha vira enredo de escola de samba no ano de seu centenário, informa O Globo
Mariana Filgueiras
mariana.filgueiras@oglobo.com.br
O pequeno Circo Peruano passava pela cidade de Rio Bonito naquele invernico de julho de 1915. Numa das sessões, durante o número de trapézio, uma artista sentiu-se mal ao caminhar no arame que cruzava a lona de ponta a ponta a lona. Com um barrigão de quase nove meses de gravidez, Elisa Savalla entrava em trabalho de parto ali mesmo, no picadeiro. Foi levada às pressas para as barracas que faziam as vezes de camarim, e assim, entre rouges, lantejoulas, anões e elefantes, nasceu o menino George Savalla Gomes, neto do dono do circo. Foi do avô que, aos 5 anos, ganhou uma “peruca de careca” e o codinome com que se tornaria o palhaço mais famoso do Brasil. Se estivesse vivo, Carequinha completaria 100 anos no próximo mês. E, por isso, será lembrado em uma série de comemorações até o fim de 2015.
Os pesquisadores e professores do Departamento de Letras da PUC-Rio Júlio Diniz e Beatriz Damasceno estão finalizando a biografia “Tá certo ou não tá? Uma história do palhaço Carequinha”, e coordenando uma exposição itinerante que, a partir de setembro, vai percorrer o Rio e exibir cerca de 150 objetos do acervo do palhaço, como suas roupas e troféus (os locais ainda não estão acertados, mas um deles deverá ser o Parque Lage). Junto com a exposição e o livro, a dupla vai lançar um site oficial do Carequinha e um aplicativo para celular com brincadeiras infantis. Enquanto isso, a Escola de Samba Unidos do Porto da Pedra embarcou na caravana e decidiu: seu enredo no próximo carnaval será “Palhaço Carequinha: paixão e orgulho de São Gonçalo! Tá certo ou não tá?”.
— Ele atravessou os principais movimentos artísticos brasileiros, desde a era do rádio, e participou de tudo: do picadeiro foi para a rádio, depois para os palcos, a TV, o cinema. O que o fez manter o sucesso durante todo esse tempo? — perguntase Beatriz, que foi encontrando as respostas ao longo da pesquisa sobre trajetória do palhaço, trabalho que começou depois de conhecer um dos netos de Carequinha, que se casou com uma prima sua. — Ele foi precursor ao levar a criança e as brincadeiras infantis para o palco, ao incluir a criança no espetáculo audiovisual. Por mais que a música dele pareça disciplinadora, ao induzir que a criança pare de fazer xixi na cama ou de chupar chupeta, na verdade o que ele faz é o contrário: ele liberta a brincadeira infantil, o corpo da criança, convoca o público para subir no palco, dar cambalhota. Isso nos anos 1950, quando as crianças seguiam rígidos padrões de comportamento. Os programas de TV que hoje fazem isso reproduzem o modelo criado por ele.
NA VERDADE, ELE NUNCA FOI CARECA
Desde o dia em que ganhou a peruquinha do avô, sua vida não foi marmelada: Carequinha trabalhou em circos, cantou nas rádios, fez cinco filmes de chanchada, apresentou programas de TV (na Tupi, Manchete e Globo) e gravou 27 discos, que venderam centenas de milhares de cópias. Além do aposto de “palhaço mais famoso do Brasil”, ganhou toda sorte de prêmios, condecorações e títulos por seu trabalho com crianças (seu favorito era “o recordista em recolhimento de chupetas”). Dos anos 1950 aos 80, era sucesso absoluto, e não há quem não tenha memória dele (ex-atacante da Seleção Brasileira, Careca tinha esse apelido porque era muito fã do palhaço quando menino).
George não recusava convite, fosse fazer shows para presidentes da República ou apresentações em churrascaria (ficou “em cartaz” no Rincão Gaúcho, da Tijuca, por quase três anos). Aniversário de criança chorona, festa de colheita do tomate, quermesse de igreja, inauguração de parque de diversões… havendo horário livre, ele ia. Não ficou rico nem pobre. Carequinha trabalharia incansavelmente até morrer, aos 90 anos, chamando lenço de “lourenço”, mandando criança sentar “com a consciência no chão”, e repetindo os bordões que o consagraram: “Tá certo ou não tá?”, “Hoje tem marmelada?” e “Ai, ai, ai, carrapato não tem pai”. O único truque que não fazia mais aos 90 era a famosa cambalhota com as mãos no bolso, quase sem tocar o chão (há um vídeo da música “Fanzoca do rádio”, no YouTube, em que é possível ver a gag).
— Meu avô trabalhava todos os dias. Quando não tinha algum show ou apresentação, ia visitar crianças no hospital, ou recebia gente em casa, e sempre acabava fazendo palhaçada. Essa é a lembrança mais viva que tenho dele: sendo palhaço o tempo inteiro. Quando não estava fantasiado, era muito elegante, não tinha roupa de ficar em casa. Aos poucos, a voz dele, que era mais grossa, já tinha se tornado a voz do personagem, que era mais fina. No fim da vida, não havia mais diferença entre ele e o personagem — conta a neta, Stephanie Savalla, de 25 anos, que pintava o cabelo do avô de preto de 15 em 15 dias (ele nunca foi careca) e que passou a vida ouvindo de todo mundo que encontrava: “Parei de fazer xixi na cama por causa do seu avô”.
Tanto a biografia quanto a exposição vão ressaltar sua importância musical: Beatriz lembra que ele defendeu marchinhas de carnaval que fizeram enorme sucesso nas rádios, algumas ironizando problemas brasileiros, como a falta de gasolina; outras de autoria de Altamiro Carrilho, que começou a compor canções por causa da amizade com o palhaço. Também gravou e popularizou muitas cantigas de roda folclóricas nos seus discos infantis.
Fã de Carequinha quando criança, Júlio Diniz chama a atenção para a atualidade do personagem:
— O Carequinha criou um imaginário da delicadeza no Brasil que é fundamental reiterar hoje em dia, quando os circos se tornaram um espetáculo tecnológico. O Piolin foi muito importante nos anos 1910 e 20, mas, a partir do pós-guerra, o Carequinha tornou-se o palhaço mais famoso do Brasil. O que queremos fazer com esse projeto não é resgatar nada. Mas potencializar o circo como um lugar de resistência.
No acervo de Carequinha, guardado carinhosamente por Stephanie no bairro do Rocha, em São Gonçalo, e que começa a ser inventariado para a exposição, as fotos, documentos e objetos pessoais desvendam o personagem por trás da máscara: ninguém imaginava, mas ele era exímio violeiro, maçom e vascaíno. Colecionava relógios, era afiliado do Clube do Twist da Bahia, e tinha porte de arma (a família diz que ele jamais tirou a arma do armário, evitando polemizar). Sobre as polêmicas que envolvem sua biografia, o fato de ter sido próximo a presidentes militares durante a ditadura chegou a ser questionado por jornais da época. Stephanie defende.
— Ele se apresentava para qualquer pessoa. Não fazia distinção — diz ela, que espera que todo o movimento ao redor do personagem ajude a família a conseguir realizar um sonho: fundar um pequeno museu sobre o palhaço em São Gonçalo.