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“Barlovento” singra por mares nunca antes navegados
Gestos do circo constroem dramaturgia em “Barlovento”
Mônica Rodrigues da Costa, especial para Panis & Circus
Foi apresentado em São Paulo o espetáculo argentino “Barlovento” (2013), exemplo inquieto de como deve ser a boa arte veiculada pelo circo. A curta temporada, de 4 a 6/6/2015, ocorreu no festival internacional de circo, do Sesc São Paulo.
A companhia Hazmereir (fundada em 2012), de Mar Del Plata, acostumada a organizar eventos de circo e a participar deles, em várias cidades do mundo, tem atores jovens e no domínio da expressão dramatúrgica. Vem de longe, mas traz repertório que todo brasileiro que já viu circo novo entende de imediato.
A peça “Barlovento” proporciona 70 minutos de beleza plástica, gargalhadas e coreografias com apoio em velas de barco voando no palco, passos, pulos, saltos, giros e expressões faciais dignos de nota. Foi aplaudida pelo público da nossa cidade.
O enredo mostra o comandante árabe e a tripulação de estrangeiros que convive no navio Barlovento. Para onde vão? Ninguém pergunta ou responde. O ator Federico Galván tem uma fala que compara loucura e sanidade a tempestade e calmaria. O périplo tem início.
A história retoma o tema ancestral da navegação, como em “Simbad – O Navegante” (Circo Mínimo, 2015). Em tom de comédia, parodia a simbologia marítima, desde o mito do dilúvio, viagens oceânicas, como a do poeta Camões, até a bufonaria do dramaturgo e poeta russo Maiakóvski, tendo recirculado na cena paulista com “O Mistério Bufo” (2012) – peça de circo teatro dirigida em por Fernando Neves, com a cia. Academia de Palhaços.
Na trama de Maiakóvski, de 1918, estão na barca reunidos e procurando a Terra Prometida um chinês, um alemão, um africano, um judeu, um norte-americano e um russo.
No espetáculo argentino, dirigido por Alan Darling, são um árabe, um italiano, uma francesa e um russo. Eles nada procuram, simplesmente navegam e sobrevivem às intempéries graças às soluções farsescas que dão para os acontecimentos.
O italiano falante (Martín Umerez) está na cabine do navio e implora algo ao árabe (Federico Galván), como para ficar. Depois intercede pela mulher borracha, a francesa (Ana Clara Manera), que também precisa embarcar e partir com eles nessa nau dos insensatos.
Os personagens não falam a mesma língua. Interagem usando pantomima, acrobacias, humor, malabarismos, manipulação de objetos, mastro chinês de 10 metros de altura e trapézios e outros aparelhos de circo não convencionais.
Vivem a história. A exibição típica do picadeiro vai para o plano de fundo e o teatro e o circo criam soluções técnicas e estéticas para o aproveitamento das duas linguagens na trama.
Impulsionada pelo vento, a embarcação Barlovento é palco para a apresentação de números circenses dentro de um teatro com dramaturgia linear.
Mesmo que o público não entenda as palavras inventadas, a narrativa dá-se pelos movimentos, gestos e expressões. Portanto mostra outras qualidades, não verbais. Explora a plástica do picadeiro para retratar, ou emoldurar, a metáfora da tempestade, que transita há milênios na arte, só que agora vista em um barco de palhaços que a transformam em farsa.
Alguém com um pano sujo nas mãos é signo de que o personagem malabarista que o faz girar sem errar, em efeito de ilusionismo, é o faxineiro do navio.
O árabe o deixou embarcar em troca de tarefas a bordo.
E que tarefas, ele sobre e desce pelo mastro para avisar sobre as condições atmosféricas e fica horas vigiando no cesto lá em cima.
Durante o dia, há o corre-corre ritmado da tripulação, que se embaralha em panos, cordas e velas. Todos obedecem ao árabe, que a certa altura pergunta: “Há quanto tempo estamos navegando?”.
Som de mar e uma sonoplastia que corresponde aos fatos. O italiano fala que o silêncio é música harmoniosa. “Dois dias, uma eternidade” – ele responde.
O russo tem olhos expressionistas arregalados e não para quieto. A francesa exibe acrobacias e números de contorcionismo.
Saltos líricos e cômicos nos mastros são as tarefas cotidianas, a todo momento, com exercícios aéreos a diferentes alturas, para examinar a aproximação da tempestade, e giram em rodas de dança aérea e no mastro chinês.
A vida é um risco. A francesinha acomoda-se no fio vertical noites e dias, sob o marulho e as luzes sombrias do entardecer ao mar.
Os três acham o quarto personagem no mar, quando avistam algo, uma rede de pesca. Depois de destramá-lo da rede, o russo aparece vivíssimo e bufão, de vez em quando explodindo sons onomatopaicos das cenas, com gags como Grotowski e Stanislavski.
Navegar é preciso, viver não é preciso, como nos saltos mortais em alto-mar. São quase-náufragos divertidíssimos, que refazem o dia a dia nesse espaço provisório da viagem.
O árabe dá as velas para o francês o italiano e o russo e eles vão trabalhar na balbúrdia, içá-las e se atirar em cambalhotas.
Instalação móvel de formas de panos e cordas. O russo larga-se no ar e faz piadas típicas de palhaço de picadeiro, que suspendem o enredo.
A francesinha arranja uma história de amor, enfrenta a morte, que faz uma visita, e se casa em pleno ar, nos giros da lira horizontal, em número conjunto com o italiano.
Nas tempestades, os quatro passam frio. Entram na cabine apertada e se provocam entre um oceano de risadas do público e a caixa mágica que é a cabine – o aparelho de ilusionismo.
O marinheiro russo, bêbado, dança sacudindo as velas do barco e realizando performances de mágica com a garrafa de Vodka na cabine. Vomita e faz xixi na água do balde
O italiano sonhou que era uma sardinha sobre todos os mares e descreve seu trajeto até acabar frita na praia de Guarujá.
Estrangeiros, dormem empoleirados no mastro – o que requer, domínio físico exato. Os artistas se destacam com graça e habilidade.
A cada número de circo a história fica mais fluída. As cenas terminam em fade out – técnica de cinema no teatro bem aproveitada.
Acontecem muito mais coisas. Abdul reza contra a tempestade. A francesa também. Para Alá e madre Teresa de Calcutá. Provocam em política e em religião: “A religião é o ópio do povo”, diz o italiano. Ele vira cristo na cruz. Tempestade piora.
O grupo entrecorta com o circo. Faz números como pirâmide humana e de equilíbrio com os aparelhos feitos de barco.
Como nada dura para sempre, a trama se desfaz, as velas morrem. Há uma cena com música árabe em que o elenco realiza aquela coreografia das múltiplas mãos, um autêntico “charivari” do circo novo (tipo de despedida em que há espaço para os cumprimentos entre atores e público).
Como não há referências do real, a peça nos conduz a uma viagem onírica e misteriosa.
A trilha sonora foi concebida para o espetáculo. Ora lírica, ora no estilo circense, mas sem os clichês demasiadamente explorados. A música –toda instrumental– varia para cada cena e acompanha seus ânimos. Valoriza a precisão e cronometra a coreografia, provocando novas percepções sobre o corpo. Em muitas passagens, parece sonoplastia de cinema.
A iluminação de “Barlovento”, precisa, gira os focos de luz ao sabor dos ventos e acompanha, como os olhos dos espectadores, a sequência das peripécias.
Artes plásticas animadas pela ventania e o corpo ágil do circo vêm para o primeiro plano nas cenas de tempestades, adicionam humor à tragédia daquele destino de navegar não se sabe para onde na embarcação medieval.
O diretor e a mímica
Não é para menos a força da pantomima no espetáculo “Barlovento”. O diretor Alan Darling, também ator e escritor premiado de peças teatrais, é professor de mímica e artes dramáticas para adultos e crianças e é mestre em dramaturgia (IUNA). Em 2008 dirigiu a Compañía Colectivo Circo em Villa e “Epitafio para un Zapato enterrado Vivo” no Teatro La fabrica de Tandil e no Circo del Aire de Buenos Aires.
Ficha técnica
Direção Alan Darling / Elenco Federico Galván, Martín Umerez, Ana Clara Manera, Juan Ignacio Rey / Música original Juan Sardi / Coreografia Paola Belfiore / Assistente de Palco Lucas Manso / Design de Luz Bruno Festa / Figurino Leila Lopez e Alejandra Ostuni/ Cenografia Barlovento e Herretec / Design Ferrari Chiapa, Marcial Fernández / Vídeo AVER Contenido Audiovisuales / Produção no Brasil Difusa Fronteira – Felipe França Gonzalez.
Links – Cia. Hazmereir
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