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“O Theatro Lyrico” era, na realidade, um circo
Bartholomeu, o proprietário, um circense amigo do rei
Oscar Pilagallo, especial para Panis & Circus
O teatro mais bacana do Rio de Janeiro imperial era, no fundo, um circo. No fundo mesmo, literalmente: sob o assoalho removível da plateia do Theatro Lyrico havia um insuspeitado picadeiro.
A incrível história do circo que virou teatro, que, por sua vez, virava circo de novo está contada em “Palco e Picadeiro – o Theatro Lyrico”, do historiador Francisco Vieira.
O protagonista é Bartholomeu Corrêa da Silva, construtor do edifício, um português nascido em Açores em 1828 e que se mudou ainda adolescente para o Rio.
Sem vocação para pegar na enxada — destino comum dos jovens no arquipélago, em que a agricultura era a principal atividade econômica —, Bartholomeu defendia uns trocados fazendo números equestres em circos.
A vida nas ilhas, porém, não lhe oferecia maiores perspectivas e ele resolveu cruzar o Atlântico para tentar a sorte no Brasil. Montou um pequeno armazém em São Fidélis. O vilarejo e o negócio eram tediosos, até que um dia…
Até que um dia uma trupe circense inesperadamente lhe bateu à porta. O diretor abriu uma conta no armazém e, por dias, alimentou os artistas. Passado um tempo, e sem dinheiro para saldar a dívida, o homem fugiu sozinho, mas não sem antes lhe escrever um bilhete em que dizia para Bartholomeu ficar com o circo, como pagamento.
“Por que não?”, pensou o dono do armazém, ao contemplar a lona, os cavalos, as carroças e até os artistas, que não tinham para onde ir. E assim foram todos para a capital, onde o rebatizado Circo Olympico não demorou a fazer sucesso.
Em 1857, João Caetano, administrador do teatro da Corte, contratou o circo para uma apresentação. Bartholomeu conseguiu uma autorização para se instalar em um terreno desocupado no centro da cidade, onde, anos mais tarde, colocaria de pé o empreendimento artístico mais híbrido do século XIX.
A empresa contou com a mão decisiva de um admirador: Pedro II, que, com a Família Real, chegou a assistir a algumas sessões circenses. O imperador achava que já estava mais do que na hora de o Rio ter um teatro à altura das casas europeias onde se apresentavam companhias de ópera, e propôs a Bartholomeu ser o responsável por sua construção.
Fiel ao seu passado, Bartholomeu não quis abrir mão do circo ao atender ao pedido do imperador, e encomendou um ousado projeto em que o teatro se transformava em circo equestre, com a retirada do piso de madeira da plateia.
Ao ficar pronto, em 1871, quando o Rio ainda comemorava a vitória na Guerra do Paraguai, o projeto se revelou melhor do que a encomenda. O fato é que, por aquele capricho de Bartholomeu, o Theatro Dom Pedro II, como foi batizado, obteve uma acústica que superava, em qualidade, o resultado alcançado nos melhores endereços do mundo para se ouvir o “bel canto”.
Como assim? Como isso foi possível?
Precisamente devido ao circo escondido. Vieira explica: “Retirando-se o assoalho do teatro, em cima do qual as cadeiras da plateia eram cuidadosamente dispostas, tinha-se de volta o picadeiro. Logo se percebeu a perfeição da acústica da sala. Provavelmente devido ao fato de que essa tampa de assoalho, de madeira fina e resistente, quando colocada sobre os cavaletes, criava uma caixa de ressonância em associação com o madeirame do teto. Era uma acústica de caixa de violino.”
Assim, quando os cavalinhos de Bartholomeu saiam de cena, o palco era ocupado pelas maiores personalidades do mundo da música, como Enrico Caruso e Sarah Bernhardt, que cantavam para uma audiência de 1.800 pessoas.
A Proclamação da República, em 1889, foi um duro golpe para Bartholomeu. Com seu amigo dom Pedro exilado na Europa, ele desmontou o camarote real e ficou tão abatido que não saiu mais do teatro, que era também sua residência. Proscritos os símbolos do império, o Theatro Dom Pedro II foi rebatizado com o nome que ficaria mais conhecido: Theatro Lyrico.
Bartholomeu morreu em 1917, aos 90 anos, “poupado de ver a decadência e o desaparecimento da casa que tanto amou”. O Theatro Lyrico, que testemunhou o Segundo Império e a Primeira República, seria demolido em 1933, já no governo de Getúlio Vargas.
Palco e Picadeiro – O Theatro Lyrico
Autor: Francisco Vieira
Editora: 19 Design e Editora
164 páginas.
Galeria de Fotos retiradas do livro “Palco e Picadeiro – O Theatro Lyrico”
Oscar Pilagallo é jornalista e autor de livros, entre outros, de “A história do Brasil no século 20 (caixa com 5 volumes), “O Brasil em Sobressalto – 80 anos contados pela Folha”, “A aventura do dinheiro”, “História da Imprensa Paulista” , “O Golpe de 64”, em quadrinhos, com o ilustrador Rafael Campos Rocha.
Postagem – Alyne Albuquerque