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“Não, a cultura não mama nas tetas”
Marcus Faustini – O Globo – Segundo Caderno – 5.4.2016
“Estamos chegando a um limite perigoso na cultura. A crise econômica, com sua intrínseca relação com a crise política, abre espaço para rumos indiscriminados que, se não forem tornados públicos, mantidos invisíveis no meio da nuvem da crise, podem gerar sequelas permanentes na vida da produção cultural e criação artística do país.
Mesmo com a crise, não se pode naturalizar esse lugar que se anuncia, sorrateiro, para a cultura no país. Ele afetará toda a diversidade de sujeitos que atuam no campo da cultura, de criadores a público. E, sobretudo, o lugar da produção cultural e artística no espaço de imaginação comum a todos. Na última semana, o Ministério da Cultura (MinC) teve seu orçamento contingenciado em mais 26% — um dos maiores cortes proporcionais na Esplanada. Já se fala que a instituição opera no nível funcional apenas. Numa tentativa de corte anterior, Juca Ferreira, atual ministro, já havia declarado que o orçamento era esquálido e que qualquer outro corte inviabilizaria a vida do ministério.
Num outro lance, um projeto apresentado na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro propôs o fim de incentivos fiscais, incluindo aqueles destinados ao incentivo de atividades no campo da produção cultural. Para completar, numa outra linha, grupos envolvidos na disputa política do impeachment disparam nas redes sociais que artistas que se posicionam contra fazem isso por “mamar nas tetas” da Lei Rouanet. Acontecimentos separados, mas que revelam o aumento de sintomas do estranho lugar em que a produção artística vem sendo colocada.
Em épocas de crise, como a que vivemos, é comum que os debates se tornem mais macros e que todo o foco esteja nas questões centrais do destino de um país. Entretanto, é nessa hora que se quebram ossos dos pequenos com frequência. Estar no debate macro não pode significar o abandono de aspectos mais singulares. A ideia de que apenas se resolve o pequeno depois de resolver o grande é uma forma de controle que pode asfixiar uma nova etapa.
Já apontamos por aqui algumas vezes ideias sobre a situação da cultura e da arte no país. Sempre ressaltando os avanços, mas também as contradições, inclusive demonstrando que esse campo de atuação possui desigualdades, diversidade, disputas etc. Não se trata de enaltecer (termo em desuso) a cultura como a cereja do bolo ou como sujeitos especiais que merecem lugar de incensamento, chaleirismo permanente. Mas de demonstrar no debate público, para os leitores eventuais e permanentes desta coluna, sua potência e limites. Porém, a partir da crise, esse campo de atuação passa a estar presente no debate público de forma abalada. Percebam que abalos existem antes de desmoronamento, não há nada de apocalíptico nesse pensamento. A tão convocada centralidade da cultura para o desenvolvimento do país, que nos embalou na luta pelo direito cultural, desenvolvimento de linguagens e modos de produção, perdeu espaço. A cultura vem tornando-se um lugar de desconfiança e, pior, de irrelevância para a tomada de decisões governamentais e legislativas.
As dificuldades para quem produz cultura são tarefas quase hercúleas, apesar de estarem por vezes embaladas por um certo charme. Do criador de periferia que luta no campo do direito à realização ao produtor médio que trava uma luta jurídica, burocrática e orçamentária. Isso sem falar na baixo incentivo a pesquisas continuadas, formação etc. Mesmo assim, são muitos, de várias origens, classes sociais, que permanecem acreditando na cultura como lugar de invenção de um Brasil contemporâneo — democrático e diverso. E mais: o campo da cultura é um campo de trabalhadores e de pequenos realizadores que já demonstraram capacidade de contribuir com a vida do país na política, na geração de renda, na capacidade criativa de inventar soluções de produzir, na contribuição prática com outros campos (educação e assistência social, por exemplo), além da imensa contribuição com a imaginação do país e de forjar pontes com outras culturas. A quantidade de incentivos ou fomento que esse campo recebe do Estado é mínima. E, toda vez que alguma invenção da cultura ultrapassa os limites de interesses de poder do capital ou político, ela é minada. O recente ataque das teles ao imposto para fomentar o cinema nacional é um dos exemplos — não se engane o pequeno realizador acreditando que isso é um problema de quem é grande, isso afeta todo o sistema.
Já abordei por aqui, anteriormente, que é necessária uma campanha de concertação nacional em torno da importância da cultura. Isso não é agenda apaziguadora, que coloca as diferenças como segundo plano. Estamos chegando perto de completar uma década onde a cultura foi perdendo a importância na esfera federal, depois de um processo de avanços. Garantir o lugar da cultura como um campo de realização aberta e diversa é também uma das qualidades de uma democracia e pode ser decisiva na invenção de um Brasil contemporâneo. Atenção!”