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A viagem das elefantas Maia e Guida

 

 

Em 2010, Maia e Guida se exibiram pela última vez no Circo Portugal, ao som de uma música indiana, montadas por duas mulheres e seguidas por um grupo fantasiado de Ali Babá. Depois viveram num zoológico, numa fazenda ─ onde foram acorrentadas ─ e, finalmente, no santuário. “Agora elas podem ser elefantes”, diz Scott Blais  

Roberto Kaz – revista Piauí

Scott Blais estendeu a corrente presa ao braço direito da elefanta Maia. “Pode ir, Maia”, comentou, em inglês, com a voz mansa de quem fala com um animal de estimação. A elefanta andou 10 metros pelo campo de terra até entrar em um contêiner de aço, onde havia metade de uma melancia, prontamente devorada. “Boa menina!”, prosseguiu Blais, animado. “Agora fique aí dentro por dez minutos para se acostumar.” Maia passou a explorar cada detalhe da caixa com a ponta da tromba.

Era uma sexta-feira de outubro do ano passado, numa fazenda em Paraguaçu, município de 20 mil habitantes no sul de Minas Gerais. Blais, um americano especializado no manejo de elefantes, havia chegado ao local quatro dias antes para comandar a equipe que transportaria Maia e uma segunda fêmea chamada Guida pelos 1 600 quilômetros que as separavam de um santuário em Mato Grosso. Ele estava acompanhado de um biólogo, de duas veterinárias e de Junia Machado, que preside o santuário.

Ao meio-dia, Machado se afastou do grupo para atender ao jornalista de uma rádio que a chamava pelo celular. Explicou aos ouvintes que existem menos de 500 mil elefantes vivos, e que de 30 a 50 mil continuam a ser mortos a cada ano. Falou que o santuário, localizado nos arredores do Parque Nacional da Chapada dos Guimarães, fora escolhido em função do clima, do relevo e da proximidade de uma cidade grande. “Mas não vai estar aberto a visitas”, enfatizou. E deixou claro que, uma vez lá, os elefantes ficariam separados por sexo, para que não houvesse reprodução: “Não queremos aumentar o número de elefantes em cativeiro, e o santuário ainda é um cativeiro. O que queremos é dar condições dignas para os que já estão aí.” Desligou o telefone e voltou a observar Guida e Maia.

O elefante é um animal superlativo no que tange ao tamanho, à inteligência e à capacidade emocional. Na natureza, vive em sociedades matriarcais, em que várias fêmeas se ajudam na criação dos mais jovens. Sabe se comportar de maneira altruísta (zela por indivíduos que nem precisam ser da sua espécie) ou vingativa (há relatos de elefantes que aguardaram anos para atacar seus domadores). Faz uso de ferramentas (coça as patas com gravetos) e de sons diversos (comunica-se com seus pares por roncos, gritos e rugidos). Integra, com cetáceos e grandes primatas, o seleto grupo de animais capazes de se reconhecer no espelho (o que significa autoconsciência e pensamento abstrato). Tem uma memória prodigiosa – é capaz de guardar a lembrança de pessoas, de rotas migratórias ou de lugares em que morreram outros elefantes. A morte, não raro, é ritualizada em cerimônias silenciosas – em que folhas e gravetos são depositados sobre o corpo do finado.

Elefantes são divididos em três espécies. Duas – o elefante-da-floresta e o elefante-da-savana – são nativas de países da África; a população de ambas, somada, é de 375 mil indivíduos e vem diminuindo em função da perda de hábitat e da caça ilegal (que transforma o marfim das presas em esculturas e joias). A terceira espécie – a que pertencem Maia e Guida – é a do elefante-asiático, encontrada numa faixa de treze países que vai da Índia à Malásia. Por ser menor e mais mansa que as africanas, é a que melhor se adapta a circos e zoológicos (principalmente as fêmeas, que não têm presas de marfim). A população, de 50 mil indivíduos, está ameaçada de extinção.

Foi a partir da segunda metade do século XIX – com a expansão do imperialismo rumo à Ásia e à África – que o elefante passou a ser caçado e exposto na Europa. O comércio internacional, que também incluía rinocerontes, tigres, zebras e girafas – além de humanos da Somália, da Índia e de outras etnias tidas como exóticas –, era capitaneado pelo alemão Carl Hagenbeck.

No livro Feras e Homens, publicado em 1909, Hagenbeck retratou seu ofício. “O comerciante de animais precisa procurar por semanas, às vezes meses, nas partes mais remotas da Terra, nas florestas virgens da África, nas selvas profundas da Índia e do Ceilão, nas vastas estepes da Mongólia e da Sibéria”, escreveu, em tom heroico. “Mas, à diferença do caçador, o comerciante não está lá para destruir a presa, e sim para pegá-la viva.”

Hagenbeck descreve no livro como caçadores do Sudão capturavam um bebê elefante – tarefa inexequível sem antes matar a mãe. “A perseguição é levada a cabo por quatro ou cinco homens montados a cavalo.” A um deles cabia o fardo de atiçar a mãe, que passava a persegui-lo no intuito de proteger a cria. O restante do grupo cavalgava atrás da elefanta, até que alguém conseguisse acertar-lhe uma perna com um golpe de espada. “Quando ela se vira para atacar o novo inimigo, cabe ao caçador até então perseguido virar-se também, para acertar a outra perna”, continuou Hagenbeck, sugerindo – sem qualquer base científica – que, se os golpes fossem aplicados com “perícia e força”, o animal sangraria “lentamente, mas quase sem dor, até a morte”. Só então o filhote era capturado.

O comerciante também observou que, para atender a demanda dos Estados Unidos, importou 67 elefantes do Sri Lanka de uma só tacada: “Em todos os eventos circenses, elefantes eram a atração principal.” A predileção do público advinha do gigantismo (elefantes podem passar de 3 metros), da capacidade de aprendizado (têm mais neurônios que cães, chimpanzés e outros animais adestráveis) e da tromba – uma maravilha da evolução, com 150 mil músculos que fazem as funções de nariz (transporta o ar ao pulmão), braço (ataca outros animais), mão (executa tarefas delicadas, como coçar os olhos) e boca (suga vários litros de água, depois se dobra como um canudo sanfonado e despeja o conteúdo goela abaixo).

Em 1887, Hagenbeck fundou seu próprio circo, em Hamburgo, onde ensinou um elefante chamado Bosco a sentar à mesa, tocar um sino, aguardar o garçom (no caso, um macaco) e então comer de um prato, “de forma absolutamente humana”. O circo acabaria baixando a lona em 1938, passando a ressurgir das cinzas, sempre em versões não autorizadas, em épocas e lugares os mais variados.

Maia e Guida chegaram ao Brasil em 1975, para trabalhar, justamente, num circo chamado Hagenbeck. 

Não raro, elefantes de circo (e os próprios circos) são rebatizados. “Por vezes um grupo volta a uma cidade já visitada e precisa se reinventar para passar a impressão de novidade”, conforme me explicou Marcos Teixeira, coordenador da área de Circo da Fundação Nacional de Artes. Por isso, a vinda de Maia e Guida ao Brasil não pode ser traçada com muita certeza.

O que se sabe é que o Circo Alemão Hagenbeck chegou ao país por volta de 1973, possivelmente vindo da Argentina, onde existia com o nome de Sarrasani. Trazia um elenco de zebras, pôneis, cavalos, tigres e três elefantas – Sênia, Rani e Carla –, que tocavam harmônica, equilibravam-se numa só pata e fingiam fazer as unhas.

Dois anos depois, a trupe adquiriu mais cinco elefantas-asiáticas: Maijá, Maijó, Ceda, Letcami e Karla. Uma reportagem publicada em novembro de 1975 no jornal O Globo dizia que as cinco haviam partido de Gênova, na Itália, apinhadas num contêiner “de espaço exíguo, semelhante a um vagão frigorífico”. Após dezesseis dias de viagem, foram barradas no porto do Rio por falta de atestado sanitário – que, segundo o proprietário do circo, o alemão Werner Zinnecker, havia desaparecido durante a viagem. Os animais acabaram seguindo com o navio até o porto de Santos, onde o problema foi resolvido.

O plano do Circo Hagenbeck, a partir de então, era fazer-se conhecido pela opulência de seu escrete paquidérmico. “Somos o único circo no mundo que coloca oito elefantes no picadeiro”, vangloriou-se o gerente Luís Olimecha, uma semana após a chegada do quinteto. É possível, naquele momento, que algumas das novas elefantas tenham sido renomeadas – e que Maijá tenha virado Maia, e Ceda tenha se transformado em Gueda (que era o nome de Guida até o ano passado). Tentei confirmar essa hipótese por cinco meses, sem sucesso, com mais de dez pessoas que trabalharam no Circo Hagenbeck. Ninguém se dispôs a conversar.

O anunciado octeto nunca chegou a se apresentar. Naquele mesmo novembro de 1975, dois funcionários do circo morreram eletrocutados durante a montagem da lona, num subúrbio carioca. O acidente levou a Polícia Civil a abrir um inquérito contra Zinnecker, que fugiu com os filhos para a Alemanha. No meio da confusão, ele vendeu seus elefantes ao Circo Tihany – que, por já contar com um elenco próprio, logo repassou Maia, Guida, Rani e Carla ao Circo Portugal.

Uma vez instaladas na nova casa, as quatro elefantas ficaram sob os cuidados do domador Arlindo Silva e do dono do circo, Wagner Portugal. Tentei falar com eles. Portugal não aceitou ser entrevistado. Em uma conversa de dois minutos por telefone, Silva se disse magoado com o noticiário: “Hoje vi um jornal da Record falando que elas, no circo, eram maltratadas. Pois eu dediquei trinta anos da minha vida sendo tratador, pai e veterinário desses bichos.” Nunca mais me atendeu.

“Era muito bom o número”, lembrou Villi Nerino, de 57 anos, que trabalhava no Portugal fazendo malabarismos com os pés. “Elas entravam cada uma com uma moça em cima, depois subiam em quatro banquinhos que estavam lado a lado.” Uma vez nos bancos, as elefantas ficavam em pé nas duas patas de trás. “E depois giravam ao mesmo tempo, enquanto tocava uma valsa.”

Em seguida, Maia, Guida e Carla eram retiradas do picadeiro, para que Rani fizesse um número solo, em que apoiava todo o peso do corpo sobre uma pata dianteira. “Depois elas voltavam para jogar futebol com as trombas”, continuou. “E no fim formavam um trenzinho, com as patas na cintura da outra. O povo adorava.”

O número, que durava cerca de dez minutos, era uma repetição da cena que elas já apresentavam no Circo Hagenbeck. “Por isso o pessoal falava com elas em inglês e alemão”, explicou Nerino. Sit down era usado para que se sentassem no banco. Lay down, para que deitassem no chão. Go era o comando para que elas andassem. Come here, para que se aproximassem do domador. Quando ouviam waltzes, giravam ao som da valsa.

Nerino diz que as elefantas visitaram todas as capitais do país. Quando estiveram no Rio de Janeiro, em 1986, Rani serviu de cabo eleitoral ao sociólogo Darcy Ribeiro em sua campanha ao governo do estado. “Rani foi alugada para participar durante três dias de comícios e passeatas do PDT”, noticiou o jornal O Globo, acrescentando que um delegado chegara ao Centro “bastante assustado, dizendo que havia recebido vários telefonemas a respeito de um elefante solto causando tumulto”.

De acordo com Nerino, Rani foi obrigada a se separar de Maia, Guida e Carla cerca de vinte anos atrás, quando Roberto Portugal (irmão de Wagner) passou a comandar o Circo Estoril. Hoje ela mora sozinha num hotel-fazenda em Sergipe. Já Carla foi enviada a um zoológico no Recife e, depois, a um circo em Manaus. “Ela tinha ficado muito brava com a saída da Rani. Passou a bater na Maia e na Gueda”, explicou Nerino. “O animal sente mais do que nós, né?” 

Foi na noite de uma sexta-feira, 11 em junho de 2010, que Maia e Guida se exibiram pela última vez, em Salvador, onde o Circo Portugal estava instalado. Entraram no picadeiro ao som de uma música indiana, montadas por duas mulheres e seguidas por um grupo fantasiado de Ali Babá. Findo o show, os animais tiveram seus adereços retirados (cada uma portava uma estrela metálica na testa e uma capa azul sobre as costas). Depois foram recolhidos a um terreno coberto, nos fundos do estabelecimento, onde dormiram na companhia de dois camelos e um cavalo.

Naquela mesma noite, a advogada Ana Rita Tavares, da ONG Terra Verde Viva, foi até o Fórum de Salvador e abriu uma ação civil pública contra o Circo Portugal. O documento, escrito em coautoria com o Ministério Público do Estado, dizia que as elefantas estavam acorrentadas num espaço de menos de mil metros quadrados, contra exigência do Ibama, “o que tipifica o crime de maus-tratos”. Tavares ainda pedia que a juíza expedisse uma liminar de busca e apreensão, para evitar que os animais continuassem sendo “escravizados pelas esburacadas estradas brasileiras” durante o andamento do processo.

A liminar, despachada na manhã de sábado, determinava que as elefantas e os demais bichos do Circo Portugal fossem levados imediatamente ao zoológico de Salvador. O transporte ficou sob a responsabilidade do circo, que seria multado em 50 mil reais diários se descumprisse a ordem.

Uma vez no zoológico, Maia e Guida foram alocadas numa área de mil metros quadrados antes ocupada por um hipopótamo. “Era bom porque havia um tanque”, disse Gerson Norberto, coordenador do parque. “Mas tivemos que aprofundá-lo para que elas tomassem banho. Também aumentamos a cerca para elas não fugirem.” O público não podia visitá-las.

Em paralelo, representantes do Ministério Público e do Circo Portugal se reuniram para definir o conteúdo de um Termo de Ajustamento de Conduta. Ficou acertado que o circo aboliria a exibição de números com bichos em todo o território nacional. (Hoje, são doze os estados – a maior parte no Sul e no Sudeste – que vetam a presença de animais em circos. No Congresso tramitam mais de uma dezena de projetos de lei que visam proibir ou regulamentar a prática.

Do encontro entre o MP e o Circo Portugal, também ficou definido que Maia e Guida seriam levadas ao sítio Recanto dos Pássaros, em Paraguaçu, Minas Gerais. Na propriedade, que pertence ao advogado do circo, Giuliano Vettori, deveriam ter o direito a se movimentar “sem a contenção de correntes”. Por fim, acertou-se que elas jamais poderiam ser “vendidas, cedidas, emprestadas ou doadas” a qualquer casa de espetáculo.

As elefantas foram transferidas para o sítio em agosto daquele ano de 2010; o zoológico não entrou na briga para continuar com elas. “Ficamos apaixonados. Mas precisaríamos de 2 mil metros quadrados para cada animal. Levaria muito tempo para adaptar”, disse Gerson Norberto. Ele e os funcionários acompanharam de longe, enquanto Maia e Guida eram conduzidas a um caminhão do Circo Portugal. “Os tratadores tinham ferros e bastões de choque”, lembrou. “Elas caminharam soltas até a carreta, porque sabiam o que não podiam fazer. Mas estava claro que tinham medo. O comportamento da tromba, da orelha, tudo mudou.”

***

 Junia Machado, a presidente do santuário, é uma mulher de cabelos longos que mora no Jardim Paulistano, bairro nobre de São Paulo, numa casa repleta de fotos de elefantes. Ela tinha 37 anos em 2003, quando seu pai morreu. “Ele era meu melhor amigo”, me contou durante um almoço, em meados do ano passado. Abalada, começou a pensar em se desfazer da sociedade que tinha numa agência de publicidade. “Eu trabalhava o dia inteiro e gerava o quê? Consumo. Processadores Pentium 4 e Pentium 5”, disse, desgostosa. “Quis fazer algo que tivesse mais sentido.” Em 2005 vendeu sua parte no negócio e viajou com o marido e os dois filhos para a África do Sul, onde visitou uma reserva chamada Tangala. “Entramos no meio de uma manada de elefantes”, lembrou. “Havia filhotes, famílias reunidas, conversando, se tocando com as trombas.”

Em 2010, depois de estudar fotografia, Machado fez uma segunda viagem, para retratar elefantes que viviam em reservas do Quênia. Na volta ao Brasil, pensou em organizar uma exposição das fotos – mas antes quis se inteirar de como viviam os animais em cativeiro. Foi quando conheceu Teresita, a elefanta-africana do zoológico de São Paulo. “Como era possível alguém achar aquilo normal?”, ela me disse, lembrando a cena. “O elefante é um bicho sociável, mas a Teresita estava mal, sozinha, balançando a cabeça de maneira obsessiva.” Também reparou que o local não tinha muita água. “E elefante não sua, precisa de água para se refrescar. Era uma tortura.”

Teresita tinha então 34 anos – vinte deles vividos no zoológico. “O elefante foi feito para caminhar 10 quilômetros por dia”, continuou Machado. “E no zoológico ele passa o dia parado. Desenvolve artrite, artrose, infecção na unha, além de doença psíquica.” Compadecida, ela entrou em contato com o conservacionista norueguês Petter Granli, presidente da ElephantVoices, uma ONG com diversos projetos de preservação na África. “Mandei mais de 100 fotos da Teresita. O Petter disse que ela de fato precisava de ajuda.” Por recomendação dele, Junia Machado passou a visitar o zoológico três vezes por semana, para inventariar o comportamento da elefanta. “Eu levava água e sanduíche. Sentava num banco e ficava cronometrando cada gesto dela ao longo do dia. Percebi que a Teresita passava a maior parte do tempo sobre uma plataforma de concreto, esperando o funcionário que trazia a comida. Era sua única diversão.”

Granli sugeriu que a publicitária entrasse em contato com uma reserva na África do Sul para averiguar se eles poderiam receber o animal. “Mas lá não tem santuário, só reserva aberta”, ela explicou. “Não dava para soltar a Teresita num ambiente hostil, sem tratamento veterinário.” A outra possibilidade – enviá-la a um santuário americano – tampouco era viável, por falta de vagas. Enquanto procurava uma solução, Junia Machado fez um levantamento do número de elefantes que havia no Brasil. Catalogou 25 espalhados por fazendas, circos e zoológicos – e estimou haver outros 25 pela América Latina. “A gente acabou decidindo que o ideal seria criar o nosso próprio santuário.”

Também por indicação do norueguês, Machado procurou o americano Scott Blais, que havia fundado e presidido um santuário no estado do Tennessee. Conversaram por um ano, até que Blais e sua mulher, Katherine, vieram ao Brasil em dezembro de 2013. “Levei-os aos zoológicos de Brasília, do Rio, de São Paulo e de Ribeirão Preto”, ela contou. “Também visitamos alguns terrenos que poderiam abrigar o santuário.”

Katherine Blais fez um relato da viagem no site da Global Sanctuary for Elephants – uma ONG criada pelo casal para viabilizar a construção de santuários pelo mundo. “Vimos um vulto escuro espremido contra a parede do estábulo. Esse vulto era uma elefanta”, ela escreveu, a respeito de Carla – homônima da ex-parceira de Maia e Guida –, que mora no zoológico do Rio. “Ela é bonita e tragicamente triste”, continuava. Ao final do texto, a conservacionista prometia voltar para dar à elefanta “a vida que ela merece”. “Salvar um animal não vai mudar o mundo”, admitia. “Mas certamente, para aquele animal, o mundo vai mudar para sempre.”

Dali a seis meses, o casal americano veio morar no Brasil.

Conheci Scott Blais em setembro do ano passado, no município de Chapada dos Guimarães, em Mato Grosso, durante uma reunião na sede local do Ministério Público do Estado. Além dele e de Junia Machado, estavam presentes um promotor, uma bióloga, uma veterinária, dois analistas ambientais e um procurador, que pediu a palavra: “Para todo mundo, é estranha essa história do santuário.” Machado concordou: “Quando o Scott criou um santuário no Tennessee foi igualzinho. As pessoas ficaram assustadas.”

A veterinária Danny Moraes, da Secretaria de Meio Ambiente de Mato Grosso – responsável por autorizar a empreitada –, descreveu como seria o santuário: “Ele tem 1 140 hectares. Os machos não vão ficar junto com as fêmeas. Se eventualmente ficarem, há a opção de fazer vasectomia para que não haja reprodução. Por enquanto existem um centro médico e um cercado de meio hectare. Vamos emitir uma licença provisória.” Machado informou que a área total – quase três vezes o bairro de Copacabana – poderia abrigar até cinquenta elefantes. “Mas acho que teremos no máximo 25.” O grupo partiu, em comboio, para uma rápida vistoria no santuário.

Scott Blais é um homem magro e calvo de 43 anos. Começou a trabalhar com elefantes três décadas atrás, quando conseguiu um estágio no African Lion Safari, um parque a uma hora e meia de Toronto, onde morava. “Fomos cortar grama, eu e meu irmão”, lembrou Blais, enquanto dirigia uma velha caminhonete a caminho do santuário. “Era um emprego de verão, que nos mantinha ocupados.” No ano seguinte, trabalhou na bilheteria da área de elefantes. Logo passou a cuidar da alimentação, da limpeza das jaulas e, por fim, do treinamento.

O parque no Canadá era uma espécie de retiro para elefantes de circo que estavam desempregados – e que eram deixados lá, por seus proprietários, para aprender novos truques ou engravidar. “Acabei conhecendo vários treinadores importantes”, contou. “Eles batiam nos animais ou usavam bastões elétricos para dar choque. Diziam que aquela era a forma certa de ensinar.” Blais acabou enveredando pelo mesmo caminho. “Eu era um adolescente. Sentia certo frisson em exercer poder sobre um elefante. Garotas assistiam ao show, o ego ficava inflado.” No livro Last Chain on Billie [A Última Corrente em Billie], que conta a história dos elefantes em circos americanos, a autora Carol Bradley descreve como Blais, ainda adolescente, foi encorajado a punir a elefanta Kitty, que tentara atacá-lo:

Seu chefe lhe entregou um bullhook [um bastão de ferro com um gancho na ponta] e disse: “Agora vá até lá e bata nela.” Cerca de seis tratadores observavam Blais se aproximar de Kitty. Ele estava convencido de que a elefanta sabia o que iria acontecer. Bateu nela de forma relutante. Seu chefe o repreendeu: “Ela queria te matar! Você tem que deixar claro que você é quem manda, que ela não pode desobedecer.” O chefe também disse que, se isso não ocorresse, Kitty se tornaria um animal perigoso e acabaria sendo eutanasiada. Blais então fez como o instruíram. Acertou Kitty com a lâmina pontuda e depois com o bastão o mais forte que pôde. Ao final de trinta minutos, tanto Blais quanto Kitty pareciam derrotados.

Aos 17 anos, Blais conheceu a tratadora Carol Buckley, que acabava de chegar ao parque com sua elefanta, Tarra. “A Carol ainda treinava pelo processo de dominação, mas se a Tarra não obedecesse, ela tentava entender o porquê. Foi a primeira vez que vi um olhar com preocupação psicológica.” Blais e Carol acabaram se apaixonando – e seguindo com Tarra, dali a dois anos, para um zoológico.

“Naquela época, os zoológicos contratavam os animais por temporadas”, explicou. “Um deles, no Tennessee, tinha uma área de floresta que não era utilizada. Propusemos que a Tarra ocupasse a área, e que o público só pudesse vê-la de longe.” O acordo não foi cumprido – a elefanta acabou num recinto pequeno e de acesso fácil. “E as pessoas, quando a viam, só queriam saber se ela fazia truques. Esses bichos eram vistos apenas como entretenimento”, comentou. “Precisávamos mudar a mentalidade.”

Blais e Buckley passaram a procurar um terreno “onde elefantes pudessem ter o direito de ser apenas elefantes”, como explicou. O assunto tornou-se ainda mais urgente em agosto de 1994, quando Tyke, uma elefanta-africana, matou seu tratador durante um número, fugiu do circo e vagou pela cidade de Honolulu, no Havaí, até ser fuzilada com 86 tiros de espingarda. Morreu sobre o asfalto, vestida com o traje circense. (O documentário Tyke, Elephant Outlaw [Tyke, Elefanta Fora da Lei], lançado em 2015, exibe várias imagens dela sendo maltratada pelo homem que viria a matar.)

Em 1995, Blais e Buckley encontraram um espaço de 44 hectares, no Tennessee, que custava cerca de 100 mil dólares. O começo foi difícil: “Pouca gente sabia que existíamos, o dinheiro era escasso.” A história começou a mudar dali a um ano, quando o santuário ganhou uma segunda integrante, Barbara, que havia sido dispensada do circo americano Ringling Bros. com suspeita de tuberculose. A viagem até a nova casa foi filmada pela CNN. Quando o programa foi ao ar, surgiram as doações.

Desde então, o santuário do Tennessee serviu de lar para 27 elefantes.

Levamos uma hora para chegar do Ministério Público ao santuário da Chapada. No caminho havia plantações de algodão e algumas poucas fazendas de gado. Perguntei a Blais qual seria o impacto de soltar elefantes da Ásia e da África num hábitat onde nunca haviam estado. “Eles comem muito, mas só utilizam 40% dos nutrientes, e devolvem o resto pelas fezes”, ele respondeu. “Acabam espalhando sementes e regenerando a flora. Causam bem menos impacto do que o gado.” Garantiu que os animais não iriam introduzir nenhuma doença, mas estariam “suscetíveis aos parasitas locais”.

Perguntei também se Maia e Guida demorariam a se adaptar. “Leva um tempo”, ele respondeu. “No cativeiro, elefantes não exploram a vida. São punidos quando tentam se comunicar, e como ninguém os escuta, acabam desistindo de interagir.” No começo, ele disse, as duas precisariam entender o quanto haviam sido privadas de suas possibilidades. “Depois precisam aprender a ser um elefante, precisam confiar que aquilo vai ser o futuro delas, que poderão escolher ser felizes.” Fez uma pausa e continuou: “Sei que parece uma projeção, mas tenho segurança do que digo por tudo que já vi.”

A primeira etapa da obra – uma área um pouco menor do que um campo de futebol, cercada por tubos de aço – ainda não estava terminada quando chegamos ao local. Blais explicou que cada tubo, de 6 milímetros de espessura, havia sido fincado 2 metros abaixo da terra e depois cimentado. “São os mesmos tubos usados para perfurar poço de petróleo.” Outros 2 metros do tubo ficavam na superfície, suficientemente espaçados para permitir a passagem de qualquer pessoa ou bicho nativo – menos um elefante. Os contêineres que transportariam Maia e Guida dali a um mês – feitos também de aço – estavam igualmente inacabados.

Blais passeou com o grupo pelo local, construído ao longo de sete meses por ele e mais cinco funcionários. Contou que o relevo seria bom para que os elefantes se exercitassem (apesar de situado no cerrado, o santuário fica num trecho montanhoso e de vegetação farta). Explicou que os animais comeriam plantas e folhas das árvores – mas também receberiam legumes, frutas e capim para complementar os 150 quilos de alimentação diária. Estimou em cinco anos o tempo necessário para cercar todo o perímetro com os tubos de aço (a ideia é construir currais interconectados, que depois ficarão abertos para que os elefantes possam caminhar por todo o santuário; o dinheiro é arrecadado por duas ONGs: a de Blais, sediada nos Estados Unidos, e a de Junia Machado, com sede no Brasil).

Entramos novamente na velha caminhonete e, no trajeto de volta, retomamos a conversa. Blais contou ter trabalhado no santuário do Tennessee até 2011, quando se viu obrigado a sair de lá. O Conselho do local acabara de eleger um novo presidente, que vinha dando ao abrigo um verniz mais comercial. “Quando percebi que nossas diferenças estavam prejudicando os elefantes, resolvi ir embora”, disse. “Foi a coisa mais difícil do mundo.”

Perguntei-lhe se havia se despedido dos animais. “Sim”, ele respondeu. “Verbalizei com alguns, com outros eu apenas fiquei perto, e eles entenderam.” Com uma elefanta em particular – Winkie –, a despedida foi dolorosa. “A Winkie, ainda que fosse asiática, havia morado por muitos anos com elefantes-africanos, que são mais agressivos”, contou Blais. “Acabou atacando um veterinário do zoológico onde morava.” Ao chegar ao santuário, em 2000, Winkie deu-se com uma única elefanta e com pouquíssimas pessoas – entre elas Blais e uma tratadora chamada Joanna Burke.

Um dia, em julho 2006, Winkie atacou Burke no momento em que a tratadora se preparava para alimentá-la. O ataque durou poucos segundos, tempo suficiente para que a elefanta a derrubasse com a tromba e a esmagasse com o peso da cabeça. Na tentativa de conter o animal, Blais também foi agredido. Correu para trás de uma árvore e ficou repetindo “Winkie, Winkie”, até que ela se acalmasse. A tragédia, no entanto, já estava consumada: uma de suas elefantas preferidas havia acabado de matar sua grande amiga. “A Winkie estava com um olho muito vermelho. Acho que pode ter dormido com a cara sobre um formigueiro, e acabou associando a dor à presença da Joanna”, ele disse.

Blais precisou ficar uma semana fora do santuário para solidificar um tornozelo fraturado na ocasião. Durante esse período, nenhum tratador teve coragem de se aproximar do animal. “Isso vai ser difícil para nós dois”, ele se lembra de ter dito, quando voltou a encontrar Winkie. Em resposta, conta que a elefanta vocalizou, num tom suplicante, por cerca de uma hora. “Ela sabia o que tinha feito.”

Enquanto me contava a história, Blais chorava e repetia a frase “Não vou chorar, não vou chorar”. Ele nunca voltou a ver Winkie ou nenhum dos elefantes desde que deixou o santuário.

***

No dia 11 de março de 2013, a ouvidoria do Ministério Público de Minas Gerais recebeu uma denúncia anônima, acusando as condições em que Maia e Guida viviam desde que transferidas do zoológico de Salvador ao sítio Recanto dos Pássaros:

Aqui em Paraguaçu, sul de Minas, no bairro Ribeirão, zona rural, encontra-se uma fazenda com dois elefantes que estão presos com cabos de aço e correntes em árvores. A corrente, por ser muito curta, permite pouquíssima movimentação para estes animais. Quando fui conhecer este local percebi que tinha pouquíssima água para que eles pudessem beber, num calor intenso em que estamos. (…) Espero que providências sejam tomadas, afinal é um desrespeito aos animais.

Um mês depois, a Promotoria de Justiça de Paraguaçu instaurou um inquérito. A primeira pessoa a ser oficiada foi o proprietário da fazenda, o advogado Giuliano Vettori.

Vettori é um homem enorme – tanto para cima, quanto para os lados – que advoga para dezenas de circos e zoológicos. Em outubro do ano passado, quando o encontrei durante a remoção das elefantas, ele explicou que seu plano inicial era abrigá-las por três meses: “Depois elas iriam para o Parque dos Elefantes, em Cotia, ou para o zoológico do Rio.”

De fato, uma empresa privada tentou construir um parque em Cotia – não três meses, mas três anos após a transferência de Guida e Maia –, que acabou paralisado por falta de licença ambiental. Nesse ínterim, o domador Arlindo Silva – responsável pelo manejo das duas – deixou a fazenda para se tratar de um câncer. “Elas respeitavam as ordens do Arlindo”, contou Vettori. “Eu odeio as correntes, mas quando ele foi embora acabou sendo necessário.” Contribuiu para a decisão o fato de Maia haver aprendido a ultrapassar a cerca elétrica que delimitava o curral (ela usava uma pata dianteira para derrubar as madeiras de sustentação do cercado). Por mais de uma vez caminhou até a fazenda vizinha e precisou ser resgatada.

Em outubro de 2014, a promotora Sophia Mesquita pediu que o Ibama vistoriasse a fazenda, e que o Grupo de Defesa da Fauna do MP de Minas Gerais ajudasse a dar um destino aos animais (pela lei federal, todo animal silvestre – nativo ou exótico – pertence à União, que tem em circos, zoológicos, aquários, fazendas e santuários os seus fiéis depositários).

A vistoria, realizada dois meses depois, apontava que as elefantas apresentavam “aspecto clínico bom”, embora uma delas, Guida, estivesse “aparentemente magra”. Constatava que a corrente era trocada de pata a cada semana, a fim de evitar que elas se machucassem. Também dizia que Giuliano Vettori tinha “grande interesse em se desfazer imediatamente” dos animais, para evitar o custo de readequação do espaço.

Naquele mesmo período, Scott Blais havia acabado de se mudar para a Chapada dos Guimarães, para avaliar terrenos que pudessem abrigar o santuário. Visitou 35 fazendas, até optar por uma de 1 140 hectares, fora da área de proteção do Parque Nacional. A compra, no valor de 3,4 milhões de reais – a serem pagos em cinco anos com doações recebidas pelo abrigo –, foi apalavrada em março de 2015. O local foi batizado de Santuário de Elefantes Brasil.

“Foi só a gente publicar no Facebook que começaram os ataques”, contou Junia Machado. “Houve até uma mesa sobre elefantes no Congresso da Sociedade de Zoológicos para falar disso.” As críticas versavam (e ainda versam) sobre o possível impacto ambiental, sobre a escolha de não investir em espécies do próprio cerrado, sobre o destino dos animais caso o projeto fracasse e, principalmente, sobre a inutilidade do abrigo no que toca à conservação dos elefantes (a premissa do santuário, na qual eles podem se encontrar, viver relativamente livres e morrer sem jamais procriar, está na ordem do direito animal, e não da manutenção biológica).

De toda forma, a enxurrada de críticas serviu para que a notícia circulasse. Dali a um mês, Machado foi procurada pelo MP de Minas Gerais, que perguntava se o santuário poderia receber Guida e Maia. “Naquela época, a gente não tinha ideia de quem seria o primeiro elefante”, lembrou. “O local ainda precisava ser erguido do zero. Faltava licença ambiental, material de construção, tudo.”

Em maio de 2015, Machado e Blais visitaram Guida e Maia. Logo depois, ela escreveu um e-mail ao MP: “A saúde de Guida nos preocupa bastante, pois ela já não tem reserva de gordura corporal. Nos preocupa também a segurança delas e dos tratadores, já que estão acorrentadas e estressadas. O dr. Giuliano nos comunicou que ‘Maia bateu em Guida e tentou destruir a casa da mãe dele, que fica na propriedade’, e que ‘tinha procurado comprar uma arma de dardos com tranquilizantes, mas que não havia encontrado nenhuma na região’.” Ao final, pedia ao MP que fosse rápido em agendar um encontro entre ela e Vettori para dar cabo do Termo de Ajustamento de Conduta que destinaria as elefantas ao santuário.

Devido a atrasos nas obras, o documento só foi assinado um ano depois. Em outubro de 2016, Machado e Blais finalmente chegaram, com os contêineres, à fazenda de Vettori.

Quem aterrissa no aeroporto de Varginha, no sul de Minas, é recepcionado por uma estátua de 1 metro do suposto alienígena que deu fama à cidade (a estátua foi pintada como se vestisse calça social, camisa de botão e gravata, o que faz o et parecer um motorista de ônibus interurbano). De lá, é necessário dirigir por uma hora até os arredores de Paraguaçu, onde fica a fazenda de Vettori. Na entrada, uma placa pregada à porteira informa que “por determinação judicial as visitações estão proibidas”.

A sede da fazenda fica no alto de um morro descampado, cercado por pequenas criações de gado. Quando cheguei, em outubro do ano passado, Maia e Guida comiam capim num espaço de terra batida, um pouco maior do que uma quadra de futsal. Seus pés estavam presos a correntes que, por sua vez, estavam presas a duas placas de cimento enterradas no chão. As elefantas mal podiam se tocar (a cerca elétrica fora estendida também entre elas, para evitar que Guida voltasse a ser atacada por Maia). Ao lado do terreno havia uma carroceria abandonada do Circo Portugal e os dois contêineres, cada um com 3 metros de altura e 5 de comprimento.

O processo de preparação para a viagem começou na manhã de quinta-feira, 6 de outubro, no momento em que a corrente de Guida foi alongada. “Coloquei comida na frente do contêiner”, contou Blais. “Quando ela se aproximou, coloquei mais no interior, até que ela entrasse.” A partir de então, Guida teve algumas horas para se habituar à caixa – direito que seria dado a Maia um dia depois. Assim foi, com as elefantas entrando e saindo, até a noite de sábado, quando Blais reuniu a equipe para as últimas considerações. “Amanhã vai ser um dia agitado”, disse. “As elefantas estão calmas. Somos nós que precisamos nos controlar.” Explicou que os caminhões chegariam às seis da manhã, e que, uma vez na estrada, o comboio evitaria fazer longas paradas. “Elefantes ficam melhor quando há movimento.”

O domingo amanheceu ensolarado. Às 7h20, Guida percorreu pela última vez os 10 metros que a separavam da caixa de aço. “Boa garota, excelente”, disse Blais, em inglês. Acorrentou-a ao interior do contêiner, onde havia capim, folha de bananeira, cenoura e beterraba. Depois fez o mesmo com Maia. “Ela está um pouco mais apreensiva”, comentou. “Vou colocar uma essência calmante em sua comida.”

A veterinária Lauren Holman, também americana, que viera ao Brasil para acompanhar o transporte, anotava cada detalhe daquela manhã. Às 6h30, Holman registrou que as duas balançaram a cabeça. Às 6h45, foram alimentadas pelos tratadores. Às 9 horas, usaram a tromba para explorar o interior das caixas. Por volta das 10, Maia bebeu meio galão de água. Engoliu a maior parte e jogou o resto sobre as costas.

Também às 10 horas, Blais escalou o contêiner de Guida, para enganchá-lo aos dois guindastes que iriam içá-lo. Meia hora depois, contêiner e elefanta – que juntos pesavam 8 toneladas – começaram a deixar o solo. Permaneceram treze minutos suspensos no ar, até serem acomodados na caçamba de um caminhão. “Muito bem, Guida, bom trabalho”, disse.

Três horas depois, um segundo caminhão recebeu o contêiner com Maia. Blais andou até onde estava Junia Machado e abraçou-a. No começo da tarde, o comboio de cinco veículos deixou a fazenda, seguido por um carro da Polícia Rodoviária Federal.

A viagem de Maia e Guida seguiu um roteiro algo uniforme. Dormíamos tarde (por volta de meia-noite), acordávamos cedo (cinco da manhã) e nos deslocávamos durante todo o intervalo (com eventuais paradas em postos de combustível, onde as elefantas eram alimentadas). Scott Blais e Lauren Holmes revezavam-se nas cabines dos caminhões – cada qual equipada com um monitor que transmitia imagens ao vivo dos animais. De noite, Blais dormia ao lado dos contêineres, sobre um monte de feno, enquanto o resto da equipe se recolhia em hotéis de beira de estrada.

Na terça-feira em que chegaríamos ao santuário, pedi para ir no carro com Junia Machado. Ela estava eufórica. “Gentêê, que é issôô”, dizia, de forma que as palavras soassem como oxítonas. “Deixei meu celular no carro por quinze minutos e já tem milhares de ligações.” Atendeu à chamada de uma rádio de Cuiabá. “A Guida tem 42 anos e a Maia, 44”, explicou, acrescentando que na natureza elefantes chegam aos 70 anos de idade. O telefone voltou a tocar: “É o Nelson, da fazenda vizinha à nossa. Ele vai ciceronear a equipe da Ana Maria Braga.”

Já estávamos em Mato Grosso. As plantações de soja, infinitas, só eram cortadas pela presença de um cavalo, uma ema, um burrico, uma vaca ou um galhardete de político. “Nossa, agora tá chegando texto de jornalista pelo Messenger!”, continuou Machado, narrando o teor da mensagem: “‘Bom dia, sou da TV Real de Campo Verde.’ E também um monte de mensagem de voluntário. Que legal!” Ao parar num posto, correu até Blais e comentou, em inglês: “Estamos quase lá! Dá para acreditar?” Em seguida ligou por Skype para a etóloga Joyce Poole, referência mundial em elefantes. “Você vai chorar com a gente, Joyce? Porque nós vamos todos chorar.” Virou uma xícara de café. “Estou há três noites sem dormir.”

O comboio seguiu por uma estrada de terra até Rio Casca, último distrito antes do santuário. Machado quis abrir a janela, com o carro em movimento, para tirar uma foto. Abriu a porta. “Gente, eu louca, abrindo a porta”, comentou, rindo. A parada em Rio Casca – protocolar, para que os moradores pudessem conhecer Guida e Maia – durou meia hora. Em seguida, o comboio cruzou a porteira do santuário. Blais seguiu com os caminhões até a entrada do piquete. Junia conduziu cerca de trinta jornalistas a um platô de onde observariam o desembarque.

Às 16h40, Blais se aproximou do grupo para avisar que Maia, a mais agitada, seria a primeira a deixar a caixa. Também explicou que tentaria libertá-las das correntes que haviam sido presas às patas delas nos últimos seis anos: “Mas pode ser que eu não consiga, caso elas fiquem assustadas.” Subiu no contêiner – que ainda estava sobre o caminhão – e prendeu-o a dois guindastes. Meia hora depois, com a jaula já no chão, Blais retirou o pino de aço que travava uma das portas. “O.k., vamos lá, Maia”, falou, em tom amistoso. A elefanta colocou a tromba para fora e andou 2 metros, até que a corrente – ainda presa ao contêiner – ficasse esticada. Passou a tateá-la com a ponta da tromba.

Blais se aproximou de Maia, protegido pela grade de aço. Acariciou-a na região da costela, depois se agachou e esticou os braços até uma pata dianteira da elefanta, que estava acorrentada. A corrente cedeu. “Welcome home”, disse, cumprimentando-a. “O que você está achando? Isso é muito diferente, não?” Maia caminhou até uma área de 50 metros quadrados, onde permaneceria até a próxima manhã. Comeu feno, folhas e metade de uma melancia; deitou-se sobre um monte de terra e jogou areia nas costas; depois apoiou a cabeça contra o gradil e observou fixamente, durante duas horas, enquanto o contêiner de Guida era baixado.

Naquela noite de terça, as elefantas dormiriam em confinamento, separadas. Ao meio-dia da quarta-feira, 12 de outubro, Blais abriu o portão para que Maia e Guida começassem a explorar o santuário. Quarenta e um anos depois de serem retiradas de suas famílias, forçadas a cruzar o Atlântico de navio, obrigadas a aprender truques de circo e sujeitas a viver acorrentadas, elas puderam escolher aonde, como e quando caminhar. Cumprimentaram-se com um enroscar de trombas, esfregaram-se uma na outra, vocalizaram. Depois, cada qual tomou um rumo.

 

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Voltei a encontrar Junia Machado no zoológico do Rio de Janeiro em dezembro do ano passado, dois meses depois que Maia e Guida chegaram ao santuário. Ela estava acompanhada de cinco pessoas – dentre as quais Petter Granli, da ElephantVoices (a quem ela primeiro recorrera, em 2010, quando começara a flertar com a ideia do abrigo). Era um sábado, dia seguinte à reabertura do zoológico – que, após a interdição, passara ao comando de uma empresa privada. Machado estava lá para verificar se fora feita alguma melhoria no recinto da elefanta Carla. “Dizem que ela agredia a Koala, e que por isso foi posta numa área separada”, explicou, referindo-se à segunda elefanta do parque. “Mas talvez fosse só questão de tempo, para que elas se aproximassem com calma.”

Entramos no zoológico às 10 horas. Caminhamos rapidamente pela área das aves até chegarmos ao recinto de Carla. Machado alegrou-se em vê-la num trecho com grama. “Construíram um muro de toras entre ela e a Koala. Foi exigência do MP”, explicou, referindo-se à denúncia que fizera dois meses antes ao Ministério Público do Estado. “Pelo menos agora ela pode andar um pouco. Antes, sempre que eu vinha, ela estava estática, trancada na parte cimentada, olhando para o nada.”

Machado quis saber o que Granli achava. “A Koala está relativamente bem”, respondeu o norueguês. “A Carla, não.” Apontou para uma cavidade na altura de sua testa. “É a característica mais comum em elefantes de cativeiros, quando estão deprimidos, desestimulados.” Granli reclamou também que os 300 metros quadrados do piquete eram ínfimos para que o animal se exercitasse.

Enquanto as duas eram fotografadas, perguntei a Machado como estavam Guida e Maia. “Comeram quase toda a vegetação do primeiro curral”, ela respondeu. “Mas como elefante precisa de desafio, já estão entediadas.” Contou que o segundo piquete, também de meio hectare, seria aberto em duas semanas. Perguntei se houvera alguma doação de porte após a divulgação da viagem. “O santuário do Tennessee doou 75 mil dólares”, disse. No Brasil, uma empresa de bebidas se comprometeu a contribuir com 200 mil reais (cada elefante custa cerca de 20 mil por mês, valor que inclui o salário dos funcionários).

Machado também contou que, semanas antes, ela e Scott Blais haviam viajado à Argentina, onde firmaram o compromisso de receber quatro elefantes do zoológico de Mendoza, e uma quinta, Pelusa, do zoológico de La Plata. “A Pelusa passou cinquenta anos sozinha”, disse. “Está velha, com dificuldade de andar. O veterinário disse, chorando, que se ela pudesse tocar a tromba de outro elefante e depois morresse, já valeria a viagem.”

Nossa conversa foi interrompida pela aproximação de um grupo com crianças. “Aqui, filha, olha o elefante. Olha como é grandão”, apontou uma mulher para uma menina em seu colo. Carla apoiou a cabeça contra as toras de madeira. Do outro lado, Koala estendeu a tromba, parecendo procurá-la. “Elas estão tentando se tocar!”, gritou Junia, animada. “E ainda dizem que são agressivas!” Perguntei se ela tinha receio de não conseguir levá-las do zoológico ao santuário. “Vamos sim, com certeza”, respondeu. “Não sei quando, mas vamos.” Respirou fundo, virou-se para as duas e comentou, num tom maternal: “Ai, meninas…”

 

 

 

 

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