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O palhaço que virou palestrante
Em suas palestras, Nando Bolognesi faz rir e chorar e revela como mantém o otimismo depois de abandonar as carreiras de ator e palhaço por ter esclerose múltipla.
A coluna da Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo, fala que “o Nando passou quatro meses dando carona para a Élida, uma das colegas com quem atuava em uma peça de teatro e que tentava conquistar imaginando estar diante do amor da sua vida. Para seduzi-la, ele seguia a receita do italiano Casanova: “Não há mulher que resista a assiduidade e atenção”.
Naquela noite de 1994, os dois enfim “se pegaram” em uma festa. E Nando estava levando a jovem para a chácara de seu pai, em Itu. Já pensava em “abrir um vinhozinho, pegar uma sauninha”, quando sentiu “vontade de fazer xixi”. Se segurou o quanto pôde. Ao sair do carro, na porta da casa, sentiu “um líquido quente na perna”. Tentou disfarçar. Mas os cães da família “vieram com o focinho no meio da minha perna”. Arrasado, ele se desculpou. E foi para o chuveiro.
De repente, a porta do banheiro range. Era Élida: “Posso tomar banho com você?”.
“E a gente tá tomando banho há 19 anos”, diz Luiz Fernando Bolognesi, 45, ator, palhaço profissional, marido da Élida, pai do Leonardo, que vive essa e outras histórias tragicômicas desde que, em 1990, foi diagnosticado com esclerose múltipla. A doença, degenerativa, vem roubando os movimentos de seu corpo. E traz incômodos adicionais como incontinência urinária.
Em 2014, Nando pretende ganhar dinheiro revelando, no teatro, as cachaças que tomou e os tombos que já levou. É o que chama de “plano Z” profissional: por causa da doença, teve que abandonar a carreira de ator (caía no palco) e mais tarde a de palhaço (integrou os grupos Doutores da Alegria e Jogando no Quintal até quando conseguia andar apenas de bengala; hoje, usa muletas). Prestou concurso público. Passou. Mas foi reprovado na perícia médica.
Diante das portas que se fechavam, resolveu retomar projeto antigo: se apresentar sozinho no palco, falando dos percalços da própria vida. “Eu nunca gostei de stand-up comedy. Resolvi fazer a sit down tragedy’.” As primeiras apresentações, na Faap e num teatro na Pompeia, lotaram com a divulgação entre amigos do Facebook. Prepara outras tantas para 2014.
Nelas, que terminam sempre entre choros e gargalhadas, Nando conta que, até os anos 80, era o típico jovem da classe média alta de SP: filho de executivo, era o caçula de dois irmãos (o mais velho é o cineasta Luiz Bolognesi, casado com a diretora Laís Bodanzky). Estudou no Colégio Santa Cruz. Entrou em economia na USP e em história na PUC. Vivia da mesada do pai.
Virou “um aluno bem medíocre”, “deslumbrado com a liberdade” de que gozam os universitários de seu círculo social. Até queria mudar o mundo. Mas gostava mesmo era de jogar basquete no clube Paineiras, remar, correr e jogar futebol. “Me dedicava aos esportes e às noitadas.”
Aos 21 anos, recém-formado, ganhou um presentão do pai: uma passagem para rodar a Europa e “espairecer” antes de pegar no batente.
“Foi uma coisa muito intensa, uma descoberta, um sonho”, lembra. Arranjou emprego numa “relojoariazinha vagabunda no metrô”, em Londres. Refletia, escrevia um diário. Começou a achar que a civilização “estava sendo escravizada”. Decidiu que seria ator.
E, claro, encontrou logo um campo e amigos para jogar futebol. Foi então que deu o primeiro tropeço. “Joguei mal, chutei o chão.” Num outro dia, ao correr para pegar o metrô, quase caiu da escada rolante. “Pensei: Que esquisito’. Mas a viagem estava tão incrível que eu não tinha tempo para ficar em crise.”
Em Paris, caiu numa sarjeta e não conseguiu se levantar sozinho. Na Itália, teve dificuldades para preencher a ficha do hotel. Não conseguia apertar o frasco do desodorante. Procurou um hospital. Queriam interná-lo. Voltou ao Brasil. E teve o diagnóstico da esclerose múltipla.
O médico disse à família que, mesmo com a doença, ele poderia levar uma vida normal. Chegou a voltar para a Europa e a viajar com um amigo de bicicleta pela Holanda. Amarrava o pé que estava sem força no pedal. Levava tombo atrás de tombo. Mas a vida seguia, bela e intensa. E ele, “desencanado”.
Só voltou a se preocupar num dia em que, na Bélgica, não conseguiu mexer um dos pés. “Senti então a mesma sensação de quando fui à boca do vulcão Stromboli, na Itália, e começou uma micro-erupção. Não era medo. E sim um grande respeito. Vi que me confrontava com uma coisa muito maior. Tive a mesma sensação de pequenez.”
A segunda “ficha que caiu” foi quando soube que a incidência da esclerose era de um caso para cada grupo de 100 mil habitantes no Brasil. “Era como seu eu estivesse no Morumbi, na final do Corinthians e São Paulo, e anunciassem que alguém ali teria a doença. A gente sempre acha que as coisas acontecem com o outro. Aí seria alguém do setor amarelo. Da fila J… eu! Cara, eu sou o outro. Tá acontecendo comigo!”
“E não adianta eu ter pai bem relacionado, tio deputado, ser bom aluno. Nada disso vai resolver”, segue ele. “Ascomo elas são. Não tem merecimento, sentido da vida. As coisas são e pronto. A gente é que pendura os significados nelas. A vida tá aí, bicho. A vida tá aí e você não é diferente de ninguém. Eu sou eu só pra mim. Para os outros 6 bilhões de pessoas do mundo, eu sou o outro. E, se acontece com o outro, acontece comigo também.” Virou o pior jogador do time de futebol. “De repente, eu era aquele cara com quem eu sempre tinha gritado. Foi um trabalho de humildade.”
Parou de beber e passou a se alimentar melhor. Entrou na EAD (Escola de Artes Dramáticas) da USP. “Fiquei encantado. Como eu tinha vivido sem aquilo por tanto tempo?” Mas logo veio um novo tombo. Agora em público, na primeira peça em que atuou.
“Baita sucesso, casa cheia”, lembra. Ele entra em cena. E se esborracha no chão: as sequelas da doença, que tiram a força das pernas, já se manifestavam de forma contundente. “Aí fiquei mal: Caramba, bicho. Será que a esclerose vai me impedir de ser ator?’.” Seguiu na profissão com essa dúvida.
Chorava no quarto, e só se fortalecia ao ouvir “Maria, Maria”, de Milton Nascimento e Fernando Brant, na voz de Elis Regina. “É isso aí, cara. Sou corintiano, é preciso ter força, é preciso ter gana’. Virou ritual: quando estava down’, eu falava Elis, Elis, vamos lá’. E botava o disco.”
No último semestre da EAD, a luz surgiu no fim do túnel: Nando fez oficina de palhaço. E se identificou com “aquela figura que tropeça, que faz a coisa errada, que é inapto, chega em último. Porque eu sempre fui inadequado. Na economia, usava brinco. Na história, era o burguesinho que tinha carro. Na EAD, o careta, que usava camisa por dentro da calça.”
Nascia o palhaço Comendador Nelson. Na “pele” dele, Nando visitou hospitais com os Doutores da Alegria. Fez sucesso com a companhia Jogando no Quintal. Atuou em hospitais psiquiátricos na dupla Fantásticos Frenéticos. “Eu sempre falo: as soluções são simples e óbvias. A gente não as vê porque fica se martirizando.” Uma das coisas que a profissão de palhaço ensina, diz, é a “desdramatizar o mundo”. Fez vários tipos de terapia –antroposófica, xamânica, com um pai de santo.
Em 2005, começou a piorar. Passou da cortisona em comprimido para intravenosa. Em seguida, quimioterapia. Em 2009, se submeteu a um transplante de medula. Ficou 45 dias internado. Tinha “sonhos intensos, muito malucos, muito fortes”.
A doença estacionou. Mas a fadiga crescia. Da bengala, passou a usar muletas. A profissão de palhaço também chegava ao fim. “Foi aí que falei: Bom, vou prestar concurso publico’.” À euforia do sucesso nas provas para ser auditor fiscal sobreveio a reprovação na perícia médica, que o fez recorrer à Justiça contra a Prefeitura de SP.
E é por isso que agora Nando, que hoje vive em Itu, partiu para as palestras. Ansioso, mas achando que tudo vai dar certo.
E essa certeza ele tem desde que, numa viagem de avião, leu num livro da francesa Simone de Beauvoir: “É preciso saber aguardar a simplicidade dos fatos”.
“Eu li aquilo e me lembrei imediatamente das provas de química da época do colegial. Eu passava dois meses assustadíssimo. Era um terror. E a prova durava só 50 minutos — e era infinitamente mais simples do que os dois meses que eu passara sofrendo por causa dela. Realmente as coisas são mais simples do que parecem. A gente é que cria fantasia sobre elas.”