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Alfabeto em prosa e verso no “ABZ” de Ziraldo
Um-dois, feijão com arroz, lá vão as letras marchando
Prosa ou verso? Ilustração ou quadrinhos? Arte ou vida? Essas três perguntas concentram as formulações estéticas propostas pela coleção “ABZ”, do Ziraldo (leia mais sobre o cartunista-poeta na seção “Capa” deste site).
Gênero herdado da cultura ibérica, o a-bece explora recursos da literatura de cordel, de métrica próxima à da fala, em geral, construindo versos de cinco e sete sílabas, versos de seis sílabas e de dez (decassílabos).
Além dos repentistas e cordelistas, muitos poetas dos séculos XIX e XX criaram pelo menos um a-bece para contar histórias rimadas. Entre os mais famosos na literatura para crianças estão os de Cecília Meirelles (1901-1964) e Mário Quintana (1906-1994).
No aspecto formal, Ziraldo no seu “ABZ” lança mão dessas técnicas de versificação como recursos para contar histórias, aliadas ao humor e traçados das HQs (quadrinhos), que se misturam às ilustrações.
No aspecto narrativo, o autor aproxima-se também da literatura de cordel, alternando prosa e verso para falar da vida das letras do alfabeto.
Impossível ler “Os Guerreiros de K”, por exemplo, sem comparar sua métrica à dessa literatura popular.
Seguem duas estrofes, a primeira, um alexandrino (12 sílabas) com cesura, ou corte, na sexta sílaba; a segunda, uma quadra composta de versos decassílabos:
Era uma vez um povo que era bem brigão
chamado Kisigodo – da raça dos Kás.
Só pensavam na força: o fusil e o canhão.
Só amavam a guerra. E se armavam na paz.
(…)
O campo de batalha é o cenário
da vida de um K, como um aviso
de que viver não é tão necessário;
mais que viver, marchar é que é preciso.
Elias, letrinha normal: um ponto cardeal
Em “A Leste do E”, Ziraldo retrata uma letra que trabalha na Rosa-dos-Ventos. “(…) Sem cheiro/ é uma rosa sem espinhos/ sem pistilo e sem corola/ é uma rosa, uma rosa,/ uma rosa, uma rosa…”.
Uma rosa chamada Elias, com discurso intertextual, em que se lê o ritmo modernista de Drummond (1902-1987) e de Gertrude Stein (1874-1946), de modo simultâneo ao das cantigas e parlendas de estrutura paralelística:
Pula mar, pula montanha
pula morro, pula muro,
lá vem Elias do escuro
fazendo – lá no Horizonte –
surgir radiosa a manhã.
É quando diz o menino:
“É dia, vamos, oh, minha irmã!”.
A construção do E, ou Elias, prescinde da distinção entre o que é assunto para crianças ou para adultos. Tudo pode ser conversado com elas. Embora seja garoto, o personagem evoca a canção “Oriente” (1972), de Gilberto Gil, que não se destina ao público infantil.
Algumas páginas depois, a referência à canção de Gil, que alude aos anos da ditadura militar, elucida-se. Pronto, está criada a metáfora: Elias muda, conforme as estações, e aguarda bom tempo.
Em determinado dia, Elias desapareceu e o Sol não nasceu, assustando astrônomos, astrólogos, velhinhos, padeiros e botânicos. Apenas as crianças gostaram da noite eterna porque não precisaram ir à escola…
Acontece que o dia clareou e tudo se esclareceu: Elias sumiu porque foi testemunhar a queda do Muro de Berlim, na noite de 9 de novembro de 1989. Embora sob o domínio do cruel sistema capitalista, a queda simbolizou a ampliação da livre expressão democrática no lado Leste da Terra:
Salta mar, salta montanha,
lá vem o Elias, voando,
salta morro, salta m…
“Ei… cadê o muro?
Onde é que está o muro
Que eu tenho que saltar?”
Ainda estava tudo escuro
tinham derrubado o muro…
Tinham derrubado o muro!!!
E ele achou que isso bastava
Para o dia clarear.
A maioria dos livros de Ziraldo é publicada pela editora Melhoramentos.
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Adorei o texto!