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A magia do La Tarumba está de volta em “Clásico”
Espetáculo homenageia o circo de antigamente
Fernando Zevallos, diretor artístico do circo peruano La Tarumba, em entrevista ao Panis & Circus, fala do novo espetáculo, “Clásico” – o 25º de sua carreira-, que está em cartaz na capital do país. A partir de setembro, estreia em Arequipa, cidade a 1.000 quilômetros de Lima.
Ele conversou com a reportagem do site no espaço onde está montada a nova lona do La Tarumba, no Plaza Lima Sur, em Chorrillos, na capital peruana.
Fernando diz que resolveu montar “Clásico” porque é o tipo de circo que o “entusiasma e emociona” desde criança. “Foi esse tipo de circo que me conquistou.” Segundo ele, o circo latino-americano está dividido em duas partes: “O circo tradicional e o circo contemporâneo. Mas é um erro separar o circo. Circo é circo”.
O fundador e diretor artístico do La Tarumba acredita que pouco a pouco está sendo visto com respeito. “Falta muito ainda. Sinceramente, a primeira coisa que eu gostaria que acontecesse é que as pessoas entendessem que o circo é uma expressão artística, que não é apenas um espetáculo em que os artistas são pessoas hábeis, valentes e que se expõem a riscos. Nós, quando falamos do circo, falamos da arte do circo. Eu não acredito que isso aconteça ainda. Nem no Peru nem no resto da América Latina na medida que deveria ser. Mas caminhamos para isso.”
Durante a entrevista, ele contou como surgiu o nome La Tarumba.
“Eu gosto muito da poesia de García Lorca. Durante a Guerra Civil Espanhola, muitos latinos-americanos foram prestar solidariedade aos combatentes. Entre eles, estava Pablo Neruda*.
Diante de uma batalha, que tinha um poeta louco como Federico García Lorca com um títere e Miguel Prieto** dando ânimo aos combatentes, Neruda ficou surpreso e disse: ‘Isso é uma tarumba. É uma loucura o que estão fazendo’.
Eu creio que La Tarumba nos descreve: uma boa dose de loucura e de sonho. Tem gente que chama de fé; eu chamo de loucura [a crença no sonho].”
A seguir, a entrevista com Fernando Zevallos.
Panis & Circus – Por que “Clásico”?
Fernando Zevallos – Porque é o tipo de circo que me entusiasma e me emociona desde criança. Foi por esse circo que eu me apaixonei ainda menino, ele despertou minha vocação – a ponto de eu dedicar a minha vida às artes circenses. “Clásico” tem a ver com o que perdura no tempo, com o que nos marca como seres humanos, que é parte da nossa vida.
O atual espetáculo rememora o circo de antigamente. Por isso, precisa ter números de malabares muito tradicionais, de trapezistas, equilibristas, acrobatas e a dupla de palhaços.
Circus – O número dos cavalos remonta ao início do circo. Pode-se dizer que remete ao circo de cavalinhos criado pelo suboficial da cavalaria inglesa Philip Astley?
Fernando – Qualquer atividade na vida, qualquer profissão, qualquer comunidade tem de ser consciente de sua origem. Porque essa origem, digamos, é a essência do que somos atualmente. Nesse sentido, como não valorizar e incluir os cavalos? Eles fundaram o circo.
Eu acredito que o circo aconteceu casualmente. Por volta de 1770, na Inglaterra, um tenente de cavalaria chamado Philip Astley criou uma pista circular de 13 metros para seus espetáculos.
Ao número de cavalos, que agradou muito ao público, foram se somando uns tantos outros, como o de palhaços, malabares, equilibrista, e deu origem ao circo. Os cavalos criaram a pista circular por onde desfilam energia, beleza e aportava nobreza.
Eu penso que eles são modelos a seguir por qualquer artista. Não só do circo. Nós temos de trabalhar para transmitir energia e comunicar uma ideia. Mas, se você não é nobre em seus sentimentos, tudo o que faz se transforma em um “concerto de egos” e a função do artista não deveria passar por aí.
Circus – Como vê o artista de circo?
Fernando – O artista deve saber que representa uma comunidade. Essa comunidade escolheu o artista. Se um grupo de pessoas decide que La Tarumba é o seu circo, nós vemos isso, em primeiro lugar, com muita responsabilidade; em segundo, devemos retribuir a confiança que nos depositaram.
Não creio em gente famosa, creio que a fama é a parte mais superficial da arte.
Circus – O circo é respeitado no Peru?
Fernando – Pouco a pouco estamos conseguindo que se enxergue o circo com respeito. Falta muito ainda. Sinceramente, a primeira coisa que eu gostaria que as pessoas entendessem é o circo como expressão artística, que não é apenas um espetáculo em que os artistas são pessoas hábeis, valentes e que se expõem a riscos.
Nós, quando falamos do circo, falamos da arte do circo. Eu não acredito que isso aconteça ainda. Nem no Peru nem no resto da América Latina na medida que deveria ser. Mas caminhamos para isso.
Eu não justifico a indisciplina, a falta de postura, a frivolidade em nome da arte do circo. No circo, como em qualquer profissão, é preciso dedicação total, de muitas horas de trabalho, a exemplo da medicina.
Circus – Quais outros circos da América Latina têm a qualidade e infraestrutura do La Tarumba?
Fernando – É indelicado falar de meus companheiros porque faço parte de um momento circense na América Latina. Mas vou tentar ser objetivo.
O circo latino-americano está dividido em duas partes: o circo tradicional e o circo contemporâneo. Mas é um erro separar o circo. Circo é circo.
Há matizes que nos distanciam e o que nós devemos fazer é o contrário: motivar, estimular as pessoas, aplaudir para que cada circo tenha uma identidade clara. E não embaralhar tudo e afirmar esses são tradicionais e aqueles são contemporâneos.
Circus – Considera a banda um dos pontos fortes do circo?
Fernando – A banda é um ponto forte do La Tarumba. Como é a equipe de acrobatas. Mas não posso valorizar mais ou menos um circo porque um tem banda ao vivo e o outro não tem. Eu gosto da banda ao vivo, mas não nego o circo que usa música gravada.
A banda é um pilar, mas também é um cúmplice criativo – como um amigo, eu penso. La Tarumba não é o produto de uma só pessoa, mas de uma equipe de pessoas. Entre elas, Estela Paredes.
Aqui há alguns velhos [referindo-se a ele próprio] que nós conservamos muito bem. [Risos]. Talvez possamos ter filhos e netos espetaculares, que continuem a preservar a história do circo.
Temos uma ideia solidária [do exercício da nossa profissão], que é a do intercâmbio de conhecimentos, de pedagogia, que permite as novas gerações que chegam encontrar uma terra um pouco mais fértil e com uma semente que pode melhorar [sempre].
Circus – Por que o nome La Tarumba? O que significa? De onde veio?
Fernando – “La Tarumba” é um nome que eu conheci lendo Federico García Lorca (1914-1936), grande poeta e dramaturgo espanhol. Sou apaixonado pelas obras de García Lorca desde os meus 15 anos de idade e seguirei sendo… Gostaria que no meu caixão colocassem o “Romance Cigano” [de Lorca] para que eu viaje lendo…
Durante a Guerra Civil Espanhola, muitos latinos-americanos foram prestar solidariedade aos combatentes. Entre eles, estava Pablo Neruda (1904-1973). Diante de uma batalha, que tinha um poeta louco como Federico García Lorca com um títere e [o artista gráfico] Miguel Prieto (1907–1956) dando ânimo aos combatentes, Neruda ficou surpreso e disse: “Isso é uma tarumba. Isso é uma loucura o que estão fazendo”.
Eu creio que La Tarumba nos descreve: uma boa dose de loucura e sonho para acreditar. Tem gente que chama de fé, eu chamo de loucura [crença no sonho].
La Tarumba também por García Lorca, por Pablo Neruda, por Miguel Prieto… É também um nome musical: La Tarumba soa como a música, como a “rumba”…
Circus – Desde quando gosta de circo?
Fernando – Desde pequeno eu era fã de circo, onde eles se instalavam eu ia atrás. Quando já tinha idade para entender as coisas, eu exigia que me levassem ao circo.
Quando consegui ir sozinho, eu ia. Eu morava a um quarteirão e meio de um terreno baldio – numa ocasião, ali se instalaram cinco lonas de uma vez só.
Nos anos 60, Lima era uma ótima praça para o circo latino-americano. Então fui aprendendo [as artes circenses] como aprendem os filhos dos artistas. Depois de um tempo eu já sabia andar no cabo (arame), manejava o monociclo, fazia malabares, acrobacia e trapézio. Tudo o que podia aprender dos 7 aos 16 anos eu aprendi.
Circus – Quis fugir com o circo?
Fernando – Aos 16 anos eu queria ir embora com o circo. Mas, quando minha mãe ficou sabendo, ela se preocupou muito – não porque eu ia embora com o circo, mas ela não queria que eu fosse embora com esse circo particularmente. Daí fiquei “preso” em casa.
O circo foi desmontado e partiu. Eu entrei em depressão, uma tristeza profunda. Mas também havia muita rebeldia e, quando me deixaram sair de casa, fui ver o que sempre me emociona até hoje: o espaço onde ficou o circo – a lona.
Quando eu vejo terrenos por onde o circo passou eu me recordo da sensação. Isso tem a ver também com “Clásico”. Eu lembro como os terrenos ficavam marcados, principalmente os terrenos em solo de terra. Ficava parte da serragem, das marcas de algumas estacas… E a cor da terra era diferente no local onde havia ficado o público.
Chorei como um louco [ao ver que o circo tinha ido embora] e não parei até Miraflores. Eu morava no centro de Lima e fui até Miraflores [um dos bairros mais bonitos de Lima] para contar a minha tia, que morava lá, a injustiça que minha mãe tinha cometido.
Lógico que minha tia falou com minha mãe e fiquei morando com essa tia. Troquei de colégio e não queria mais voltar ao centro de Lima. Não queria mais ver minha mãe e não a vi durante um ano e meio.
Mudei para um colégio perto da casa dessa tia, onde estudava meu primo. Que maravilha! O mais perto que consegui chegar [àquela época] do circo foi num teatro.
Eu não estudei em uma escola [teatral]. Mas tive a sorte de entrar para o clube de teatro do colégio e lá convivi com “professores” espetaculares.
Circus – Que conselhos daria a quem quer seguir a profissão de artista circense?
Fernando – Sou inimigo de dar conselhos. Se eu pudesse transmitir algo a partir da minha experiência eu diria: sigam com seus sonhos. Mais que seguir seus sonhos, acredite neles. Eu, por exemplo, fazia teatro e TV com certo sucesso e um dia decidi deixar tudo para seguir meu sonho.
Muitos disseram: essa profissão [de circo] não é rentável, não vai dar para sobreviver. Eu descobri que é muito rentável em termos de saúde e de satisfação pessoal.
O que a gente busca é a realização, uma maneira de ser feliz…
Notas
*Poeta chileno (1904-1973).
**Escultor, pintor e artista gráfico espanhol (1907–1956). Participou ativamente de grupos de teatro de bonecos e criou o seu próprio, chamado Tarumba.
Tese sobre La Tarumba
Rocio Trigoso, antropóloga e comunicadora, escreveu uma tese sobre a companhia, de acordo com o jornal “La República”, de 22 de junho. “Feito no Peru. A Construção da Identidade Peruana em um Contexto Global. O Caso do La Tarumba” é o nome da tese.
Ela diz que pode ser que para muitos La Tarumba seja só um circo. “O que eu argumento na minha tese de antropologia visual é que ele é muito mais que isso.” Segundo Trigoso, La Tarumba se transformou em referência na vida cultural peruana, com seu discurso que vem sendo feito há quase três décadas.
Como surgiu o circo mais emblemático do Peru
“Clásico” é o 25º espetáculo do La Tarumba, que foi fundado em 1984 por Fernando Zevalllos e Estela Paredes.
Na década de 60, eles iam ao circo nas Festas Pátrias, como é tradição no Peru. “Era maravilhoso ver o trapezista e o palhaço. Tive a sorte de ver uma lona se instalar em frente a minha casa em Arequipa. Com Fernando acontecia o mesmo, em Lima”, afirmou Estela Paredes ao jornal “La República” (22/06/2012).
A dança praticada por Estela cruzou com o teatro, arte que colocou em seu caminho Fernando Zevallos. “Foi amor à primeira vista. Aconteceu há 29 anos e estamos juntos desde então”, disse.
Depois de um ano juntos, nasceu La Tarumba, proposta teatral que decidiu incorporar outras linguagens, como o circo e a música.
Fernando Zevallos e Estela Paredes iniciaram o projeto com poucos recursos.
“Começamos com o espetáculo mais minimalista que se pode imaginar. Não tínhamos lona e alugar uma sala de teatro era inalcançável. Tínhamos de fazer o espetáculo na rua e isso nos agradava. Fizemos apresentações em todas as praças de Lima, até em igrejas. Eram tempos difíceis, a cidade era escura, suja e havia toque de recolher, mas nós queríamos viver o nosso país. Viajamos pela selva, pela serra e para fora do país, onde éramos mais conhecidos que no Peru. Transportávamos um baú com nosso espetáculo em burro, caminhão, no que dava”, contou Zevallos ao jornal.
Os amigos com quem eles deram início ao projeto deixaram o La Tarumba. “Eles foram se desengajando porque esse projeto demanda muito esforço. Sempre digo que La Tarumba é minha religião. Eu a pratico as 24 horas do dia. Teve gente que entrou e saiu do circo nos primeiros anos, mas há 15 anos somos um núcleo permanente de 70 pessoas”, disse Zevallos ao “La República”.
Hoje, o La Tarumba é considerado referência para a vida cultural peruana.
Atualmente Estela Paredes cuida da produção e administração do circo. Fernando Zevallos é o diretor artístico.
A música está a cargo de Chebo Ballumbrosio, com a dupla há duas décadas.
“Dez anos depois do duro começo chegam à casa de Miraflores (esquina da Via Expressa com a Leoncio Parado), onde começou a funcionar a escola de circo do La Tarumba.
Paralelamente, foi implantado um programa de formação profissional na escola, que é financiado com o merchandising da lona e a cooperação de algumas fundações e empresas privadas.
O curso dura três anos. O circo La Tarumba representa uma das melhores escolas latino-americanas, destaca o “La República”.
Um tema à parte são os 14 cavalos, um burro e um pônei, que fazem parte do La Tarumba. “É um prazer trabalhar com eles, mas demanda muito tempo e dedicação. O cavalo preferido de Fernando é o Hechicero, que “é um cavalo de passo e gosta dos holofotes”.
Maíra Campos, artista circense brasileira que integra o elenco de “Clásico”, diz que o cavalo, nos ensaios, faz o que é solicitado sem grande entusiasmo. Mas, quando tem o público, capricha no passo.
Nem pão nem circo
“O Peru é um país de tradição circense. Tudo começou na segunda metade do século 16, durante o período da colônia”, descreve o folheto de apresentação de “Clásico”.
“Os religiosos, engenhosos como magos, buscaram atrair os índios incrédulos com a fé católica apresentando espetáculos com pernas de pau, arlequins e cavaleiros.
Em 1655, Don Luis Enrique de Guzmán y Coresma, enviado ao Peru como vice-rei, chegou ao porto de Paita. Pouco tempo depois montou um dos maiores espetáculos da época: Juan de Alanís, equilibrista e músico vindo da Espanha, cruzou por uma corda desde o Palacio Virreinal (hoje, Palácio do Governo) até a Catedral de Lima.
Na nova República, José Gálvez, o cronista de Lima, escreveu: ‘Ao nosso povo, exceto os touros, nada entusiasma tanto como a festa dos trapézios e cordas, do Senhor Tragafuego e da Senhorita do Cavalo Sábio…’
Gálvez recorda circos maravilhosos que chegaram a Lima e o equilibrista Blondin, que havia atravessado o Niágara caminhando por um cabo [arame]. Em Lima, na falta de cataratas, cruzou os jardins de Exposición que àquela época chegavam perto do atual Estádio Nacional.
A guerra com o Chile (1879-1883) destruiu Lima, mas a cidade não ficou sem circo. Limparam os escombros do Teatro Principal (hoje, Teatro Segura) e ali se inaugurou o Circo Jardín del Perú. Nesse lugar se instalaram os circos mais importantes da Europa e dos Estados Unidos.
No centenário da independência, 28 de julho de 1921, o diário ‘El Comercio’ descreveu que as ‘celebrações foram apoteóticas… Por determinação municipal, as sessões do récem-inaugurado Circo Hipódromo Argentino, na praça San Martín, foram gratuitas para as crianças’. O circo comemora a liberdade!
Com o passar dos anos, os circos continuaram a chegar para celebrar as Festas Pátrias.”
Nas décadas de 60 e 70 do século 20, “chegaram o reconhecido Circo Egred, com sua lona de oito mastros, o Royal Dumbar, que tinha um zoológico completo, o Tihany, o Circo de Moscou, entre outros. Não menos importantes foram os circos peruanos África de Feras, de Don Enrique Basurco, o América, de Carlos Maldonado, o American Circus, de Ricardo Flores, e o Circo Perejil, de José Álvarez.
Depois disso, não foram bons tempos. É história conhecida que a violência se instalou no Peru, que ficou mais de uma década sem pão e circo.”
Foi nesses tempos tristes que um grupo de artistas decidiu [Fernando e Estela, entre eles] colocar o país em uma “tarumba” e meia.
Em 12 de fevereiro de 1984, eles criaram La Tarumba. Desde então, ‘pasito a pasito’, construíram “uma proposta artística-pedagógica eminentemente peruana, com o propósito de resgatar valores culturais e reafirmar identidade”.
Desde o começo do século 21, “os peruanos continuaram a celebrar, no mês de julho, as Festas Pátrias, como manda a tradição, como os antepassados: indo ao circo”.
(Bell BAC)
Tags: Arequipa, circo, la tarumba, Lima, Maíra Campos, Peru, Zevallos
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