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Espetáculo foi o mais triste da Terra, mas o show não podia parar
A maior tragédia circense da história
Dezessete de dezembro de 1961 foi o dia em que “Niterói” rimou com “dói”, como na letra sertaneja da dupla Garrancho e Graveto, em música gravada três anos mais tarde. Outros dois versos terminavam em “comédia” e “tragédia”. Havia ainda o contraste entre “alegria” e “maldito dia”.
A composição descrevia os eventos dolorosamente inesquecíveis de uma tarde de quase verão em um circo na então capital do Rio de Janeiro. Ingênua e simplória, a composição remetia ao horror: a morte de mais de quinhentas pessoas no incêndio do Gran Circo Norte-Americano.
A história, que a população local preferiria compreensivelmente não contar, é resgatada, em narrativa envolvente, pelo jornalista Mauro Ventura no livro “O Espetáculo Mais Triste da Terra” (Companhia das Letras, R$ 46, 320 páginas.).
Dez minutos de fogo provocaram a maior tragédia circense da história. Crianças carbonizadas, mulheres pisoteadas por elefantes, centenas de pessoas asfixiadas sob a lona em chamas – poucas vezes o clichê “inferno dantesco” seria mais apropriado.
Foi uma comoção mundial. Da Itália, a atriz Gina Lollobrigida doou sangue e o papa João XXIII mandou celebrar uma missa, além de enviar recursos para ajudar no tratamento dos feridos.
No Brasil, o presidente João Goulart – no período em que seu poder era tolhido pelo parlamentarismo que lhe viabilizou a posse, ao dobrar a resistência militar – esteve no local e expôs a perna defeituosa para consolar um menino que sofrera uma amputação.
O cirurgião plástico Ivo Pitanguy, que na época tentava convencer seus pares da relevância de sua especialidade, liderou uma equipe que fez enxertos de pele em vítimas que tiveram o corpo queimado.
A pessoa mais associada ao incêndio, porém, não foi a atriz, o político, o religioso ou o médico; não foi também o dono do circo ou o suspeito pelo crime. Mas foi José Datrino, pequeno empresário, casado, pai de cinco filhos.
Se ninguém ouviu falar de Datrino é porque ele morreu sem deixar muitos vestígios. Não morreu como os outros. Morreu simbolicamente. Morreu-lhe, na verdade, a identidade que tinha até então, e em seu lugar surgiu o Profeta Gentileza.
Gentileza não presenciou o incêndio. Ouviu a notícia, largou tudo para trás e, na véspera do Natal, chegou à área ainda com a presença de destroços. Passou a distribuir copos de vinho para a população, sem nada cobrar, bastava pedir “por gentileza” – daí o apelido. E foi morar no terreno em que o circo fora armado. Mais tarde viajou pelo país, fixando-se finalmente no Rio.
Tido por louco, Gentileza dizia coisas que tocavam parte da sociedade, sobretudo os jovens dos anos 60 e 70. Tornou-se um crítico do capitalismo, ou, em seu neologismo, “capetalismo”.
Ventura liga os fios soltos entre o incêndio e a nova vida de Datrino: “O fim trágico do circo, lugar por excelência da diversão e do entretenimento, simboliza, para Datrino, a derrota da inocência e a crise de valores no mundo”.
Figura paradoxal, Gentileza era também um moralista, do tipo que condenava a minissaia, por exemplo. Morto em 1996, sua memória foi idealizada em músicas de Gonzaguinha e Marisa Monte e como tema da escola de samba Grande Rio, criado por Joãozinho Trinta para o Carnaval de 2001.
As mortes e a destruição do circo mudaram a vida de Datrino. Mas o circo não morreu. Vinte dias depois do incêndio a trupe já se apresentava em Aparecida, em São Paulo, com a estrutura alugada de um circo pequeno que estava parado no Rio, o Big Top.
Contrariando as previsões, a casa esteve cheia. Com a receita, o dono, Danilo Stevanovich, remontou em São Paulo o Gran Circo Norte-Americano. Trapezistas, domadores, palhaços, mágicos e equilibristas nunca mais esqueceriam as cenas de pânico entre as labaredas, mas o show não podia parar.
(Oscar Pilagallo)
Link para a editora do livro de Mauro Ventura:
http://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=12823