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A volta de “O Senhor das Chaves”

Espetáculo é candidato ao prêmio Femsa/Coca Cola nas categorias “Texto Original” e “Melhor Ator”

No palco, um marinheiro que perdeu a memória. No cenário, vários baús e, dentro deles, objetos que o ajudam lembrar de várias histórias. O público atua como personagem do enredo, na tentativa de fazer o o marinheiro recuperar suas lembranças. Esse é o fio condutor da narrativa do espetáculo, em curta temporada no Teatro MuBE Cultural, rua Alemanha, 221, aos sábados, às 18h00, até 1/3. Serão apenas quatro apresentações, de 8 de fevereiro a 1° de março, aos sábados, às 18h00. O Espetáculo é candidato ao prêmio Femsa/Coca Cola nas categorias “Texto Original” e “Melhor Ator”. 

Leia abaixo o comentário de Janaína Leite sobre o “O Senhor das Chaves”.

 

 

As crianças têm a chave da imaginação que permite abrir qualquer fechadura

 Janaina Leite 

Conta-se que, há muito tempo, quando Roma era o centro dos povos, havia uma divindade com duas faces: uma olhava o futuro; outra, o passado. Seu nome era Jano. Barbado, enigmático, o deus carregava consigo uma chave de ouro e outra de prata, símbolos dos mistérios que os homens precisavam desvendar. Elas abriam as portas do céu e da terra, do alto e do baixo, do solstício de verão e do solstício de inverno. Possuir a chave certa significava acessar a sabedoria de outros mundos: ser um iniciado.

No século 21, passados alguns milênios, isso se perdeu. As chaves tornaram-se objetos comuns. Guardam apenas bens terrenos – a casa, o carro, a gaveta do trabalho. Um cofre, talvez. Uma mala. Com muita sorte, uma coleção de cartas ou de revistas antigas. Nada muito além. Talvez, por isso, vez ou outra, as chaves sejam esquecidas, sumidas, trocadas. Viram senhas.

Acabou-se a magia.

Mas… Será que acabou mesmo?  

Não. Há ainda as crianças. Elas conseguem se apoderar da chave mais importante, aquela que permite abrir qualquer tipo de fechadura, em especial, a da imaginação. Existem os adultos contadores de histórias, que sabem destrancar inibições e abrir as portas do encantado. Quando a infância e os artistas se encontram, o universo pode ser recriado de infinitas formas.

 

A peça é dirigida por Pedro Pires e protagonizada por Alexandre Roit. Trama simples. Um velho marinheiro, dono de péssima memória, entretém o público contando peripécias de sereias, deuses, gigantes, pescadores e paraísos perdidos. As aventuras são apresentadas a partir da interação com o público e de técnicas circenses. Dá certo. O fôlego suspenso a cada truque é intercalado com risadas a gosto, inclusive entre os pais.

O diretor tem o mérito de trazer aos pequenos a riqueza de um universo simbólico pensado nos detalhes. Tudo o que aparece no palco é aproveitado e reconhecido de imediato pelas crianças, uma vez que são elementos arquetípicos, como chaves baús, instrumentos musicais, água, rede etc. “Os marinheiros eram os jornalistas, os contadores de histórias”, lembra Pires ao falar sobre o enredo. “Eles rodavam o mundo e traziam as novidades.”

Mesmo com a estrutura da peça bem definida, há bastante espaço para a improvisação. Roit, descabelado e cativante, mostra jogo de cintura para lidar com uma plateia ouriçada que não mede esforços para participar do espetáculo. A trilha sonora, composta por André Abujamra, é pontual. Apesar de caprichada, auxilia pouco o ator a controlar a animação dos ajudantes. É mesmo na sua rapidez que mora o ritmo do espetáculo.

Parte do segredo para a boa fórmula de “O Senhor das Chaves”, ao que parece, é o entrosamento de Pires e Roit. “Conheci o Alê no fim dos anos 80, começo dos 90. Ele era malabarista, eu vim do teatro. Fizemos muitas perfomances juntos. A gente subia em perna de pau e animava Bar Mitzvá”, ri o diretor, ligado também à Companhia do Feijão.

Questionado sobre as dificuldades inerentes a uma montagem interativa, Pires afirma que, nesse caso, “o ensaio é fazer previsões”. “Não é mecânico, mas, sim, um exercício não tendencioso sempre renovado na esperança de que o estímulo chegue ao público”, observa.

“A ideia era não fazer concessões, acho que deu certo. Optamos por histórias que remetem aos mitos, aos relatos atemporais, em vez de privilegiar lições de moral”, explica Roit, um dos fundadores dos Parlapatões, grupo do qual está afastado desde 2002. Oriundo do circo, ele fica à vontade entre malabares, cordas, flautas e trombones. Também mostra sua técnica nos momentos em que deixa transparecer a melancolia típica do clown, presente no espetáculo por conta dos lapsos de sua personagem, cujas lembranças vão e vem, como ondas que acompanham o velho marinheiro. 

A memória, aliás, costuma ser relacionada às chaves e prestar atenção às minúcias do texto pode dar o que pensar para os espectadores adultos. Qual de nós não trancou uma memória a sete chaves? Qual não teve de, como Jano, voltar a face ao passado para ir buscar algo importante? Quem esquece os contos e causos da infância? As perguntas são muitas, basta disposição para escavar camadas mais profundas e menos explícitas da peça. Caso não haja tal disposição, tudo bem. A diversão é garantida do mesmo jeito.

“Não é preciso explicar tudo. Acreditamos no público”, resume Alexandre Roit. Troca justa. O público também acredita nele.

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