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Adeus, Alicinha querida!
Panis & Circus republica reportagem feita com Alicinha em homenagem a querida artista
Bell Bacampos, da Redação*
Alice Avanzi Silva Medeiros, ou Alicinha, estrela do Circo Nerino, fez trapézio aéreo, equilibrou-se em cima de um cavalo, pulou na cama elástica, deu cambalhotas no ar e saltou em cima de um fio. Ela estreou no circo aos sete anos e afirma que o arame foi a sua primeira e mais duradoura paixão.
Depois que deixou de ser artista de circo, ela foi fazer o que mais sabia: ensinar a andar no fio. Alicinha ensinou os primeiros passos para Maíra Campos e Marcelo Lujan, do Circo Zanni. Eles se encontraram durante a inauguração da exposição permanente “Hoje tem espetáculo!”, em dezembro de 2012, no Centro de Memória do Circo, na Galeria Olido, em São Paulo.
Alicinha e Maíra se abraçaram, em frente a painéis do circo na mostra. Alicinha encontrou lá também com seu tio Roger Avanzi, o Palhaço Picolino II. Para ela, “Hoje Tem Espetáculo!” resgata a memória do circo em uma bela exposição.
De acordo com Alicinha, Maíra será sua “substituta” porque, quando ela vê Maíra no arame, “acompanha seus passos com emoção”. “Ser aramista é isso: pisar com carinho no fio que sustenta sua vida.”
Marcos Medeiros, conhecido como Marcão, que foi malabarista, domador, porteau e deu aulas de circo, é casado com Alicinha. Ele mostra o bumbum de um menino espiando pela cortina – em foto que faz parte do acervo da exposição permanente “Hoje tem Espetáculo!” — e disse que é o dele. “Mas a gente posou na foto. Não podia espiar nada. Se espiasse era castigo na certa”, relembra.
“Nasce uma Estrela”
A estreia de Alicinha no arame, aos sete anos, foi descrita com o título “Nasce uma Estrela”, no livro “Circo Nerino”, escrito por Verônica Tamaoki e Roger Avanzi. Hoje, ela tem 70 anos.
“Alicinha, um palitinho de gente, é corajosa e destemida nas acrobacias mais perigosas. Será uma grande artista”, escreve o padre Bandeira, de Alagoa Grande, em 6 de maio de 1952, no Livro de Ouro do Circo Nerino, que traz impressões de autoridades civis, militares, eclesiásticas e do povo.
Alice transforma-se na estrela que mais brilha. “Alicinha — menina e moça, nas suas diversas exibições, como eletriza a plateia… Foi você, Alicinha, a estrela que mais brilhou… Eu proclamo: Deus lhe ampare!”
“Nerino, pelo bem que fez ao povo dessa terra… Deus lhe pague”, escreve o prefeito Aloysio da Rocha em 16 de dezembro de 1955, na cidade de Poções (BA).
O Circo Nerino era considerado por sua audiência a Globo dos anos de 1940. Na década de 60, por enfrentar uma série de problemas, desde caminhão quebrado até falta de público, acabou fechando. O Circo Nerino fez a última apresentação em Cruzeiro (SP), no dia 13 de setembro de 1964. Era um domingo.
Depois do Nerino, Alicinha foi trabalhar no Circo Norte Africano, de Barry Charles. Lá, conheceu Marcos Medeiros, o Marcão. Eles namoraram, casaram e tiveram duas filhas: Licemar e Luciene.
A pedido delas — que queriam estudar em vez de seguir a carreira circense –, Alicinha e Marcão deixaram a vida itinerante do circo, passaram a morar em São Paulo na década de 80 e a ensinar artes circenses. As meninas estudavam, mas não deixaram de lado o circo. “Fizemos muitas oficinas juntos: eu, elas e o Marcão”, diz Alicinha.
Filhas são as Irmãs Botero
Um dia, a Bel Toledo, da Associação Brasileira do Circo, inscreveu as duas garotas para um teste no Cirque du Soleil, conta Alicinha. Dois anos depois elas eram chamadas para fazer o espetáculo “Zumanity” (Zoomanity) em Las Vegas, nos Estados Unidos, como as “Irmãs Botero”.
A dupla está em cartaz desde 2004 no teatro do New York-New York Hotel and Casino. “Zumanity”, resultado da junção das palavras inglesas “zoo” e “humanity”, é um show para adultos (a censura é de 18 anos). O slogan revela seu conceito: “O outro lado do Cirque du Soleil” – leia-se, neste caso, o lado sensual e exótico.
As Irmãs Botero, também herdeiras da arte do Circo Nerino, pesam, cada uma, cerca de 100 quilos. Elas entram em cena com trajes sumários, distribuem morangos e são um sucesso. Confira a entrevista de Licemar e Luciene, em inglês, clicando aqui.
Equilíbrio no arame aos 70 anos e circo novo
Alicinha declarou ao site Panis & Circus que acredita que é capaz de, aos 70 anos, subir no arame e andar no fio. Poucos duvidam. Ela diz que “nasceu para equilibrar o corpo” e que tinha o “dom”. Mas, sem trabalho – ensaiava das seis ao meio-dia –, diariamente, não adianta nada.
Por sua vez, Marcão diz que circo novo é circo com lona nova. O restante é a forma diferenciada de apresentar o mesmo número circense.
Leia abaixo os principais trechos das entrevistas com os circenses Alicinha e Marcão.
ALICINHA
“A arte de ensinar”
“Nós deixamos o circo porque as meninas [as filhas Licemar e Luciene] queriam estudar. Elas já eram artistas, mas não queriam seguir a carreira circense. Então começamos a ensinar o que sabíamos fazer: eu fui dar aula de arame e o Marcão, de malabares. Começamos a dar aula na Escola Circo Picadeiro e dávamos muitas oficinas: eu, Marco e as meninas – que estudavam de manhã no colégio e, à tarde, iam para o Picadeiro. Mais tarde, por influência, da Bel Toledo [da Cooperativa Brasileira do Circo], elas fizeram um teste no Cirque du Soleil e foram chamadas, dois anos depois, para trabalhar em Las Vegas, onde estão até hoje, com o espetáculo “Zumanity”. São conhecidas como as ‘Irmãs Botero’.”
“A última vez em que andei no arame eu dava aulas”
“Quando eu dava aulas para o Marcelo [Lujan] e a Maíra [Campos], do Zanni, eu andei no arame. Não tenho mais o aparelho porque a gente, para andar no fio, tem que ter um aparelho [nome dado aos instrumentos que os artistas circenses utilizam em suas apresentações, como, por exemplo, o arame ou a báscula] esticado e bom. Faz tempo, desde que saí do circo, que eu não tenho mais o aparelho. Acho que ainda hoje sou capaz de andar no fio.”
“Aramista pisa com carinho no fio; sabe que ele sustenta sua vida”
“Tive muitos alunos quando passei a dar aulas de circo. Eu não tenho um preferido. Mas quem eu quero que fique no meu lugar no arame é a Maíra, por sua dedicação e o amor a essa arte. Quando você vê a Maíra no arame acompanha seus passos com emoção. Ser aramista é isso: pisar com carinho no arame que sustenta sua vida.”
Serragem nas veias
“Meus pais trabalhavam em circo – eu sou de família circense. Meu pai, Minervino Silva, muitos o chamavam de Mineo, fazia acrobacia. Desde pequeno, ele já fazia parada de mão e saltava. No Nordeste, a garotada tem facilidade para acrobacia, tem menino que apreende sozinho. Ele era da Paraíba, da cidade de Santa Rita. Trabalhou em vários cirquinhos do Nordeste até vir para o Sul para trabalhar com os Irmãos Queirolo [eles se estabeleceram no Brasil, por volta de 1910, formando uma das trupes mais importantes do país]. Quando chegou ao circo do meu avô [Nerino], minha mãe [Ivone Avanzi] estava com 16 anos. Ela se apaixonou por aquele mulatinho bonito. Em 1929, eles se casaram.”
Em 1931, nascia o primeiro e único filho: William, o Villy. Nove anos depois, vieram as filhas: Therezinha Avanzi Silva (1939-1943); Alice Avanzi Silva (1941), Maria Vitória Avanzi Silva (1942-1943); Tereza Vitória Avanzi Silva (1944 e 1968) e Armandina Avanzi Silva (1945).
“Meu pai me ensinava a fazer parada de mão no braço dele”
“Como meu pai, eu nasci para ser artista. Ele me ensinava a fazer parada de mão. Comecei no picadeiro com ele, um grande acrobata, que me ensinou parada de mão e estrelinha quando eu tinha 4 para 5 anos. Com 6 anos eu já me equilibrava e um tantinho depois fiz minha estreia no arame, com 7 anos: ganhei aplausos, flores e chorei. Durante os ensaios, eu era muito obediente, ouvia com atenção o que ele me ensinava. Meu pai ensinava também o Villy, meu irmão mais velho. Ele me disse que logo, logo, eu iria me apresentar no picadeiro. Disse também que ia pedir à tia Mocinha, que era costureira do circo, para fazer um figurino para mim.”
Giro gigante fatal
“No ensaio do dia seguinte [6/06/1946], depois que eu fiz minha parte, fiquei sentada perto do picadeiro. Meu pai armou a barra fixa junto da cortina dos artistas para ensinar o giro gigante. [Em francês, esse movimento chama-se casse –cou, isto é, quebra-pescoço, diz Roger Avanzi no livro “Circo Nerino”, à página 177]. No giro gigante é preciso trocar de mão. Depois que o corpo gira, a mão larga a barra e muda a posição de pegar, senão quebra a munheca. Ele fez o giro gigante com tanta velocidade que, na virada da mão, a barra lhe escapou. Ele voou e caiu junto de mim e de Villy. No tombo, quebrou a nuca e, no dia seguinte, morreu.”
Minervino estava sem lonja, que é um cinto de segurança, e, se a pessoa cair, ela sente o tranco, mas fica pendurada e impede acidentes fatais.
Andar no arame para sustentar os filhos
“Minha mãe trabalhava também no circo. Mas ela fazia teatro. O circo era de seu pai, o meu avô: o Circo Nerino. Com a morte prematura do meu pai, Mineo, minha mãe [Ivone] ficou viúva com 33 anos. E minha avó começou a falar para minha mãe: ‘Você precisa criar um número. Você tem filhos para criar, e seu marido morreu’. ‘Mas o que eu vou fazer?’, ela perguntava. O vô Nerino sugeriu à minha mãe que ela fizesse arame. Então, foi armado um arame bem baixinho no quintal da nossa casa em Recife para ela ensaiar. E eu via meu tio Gaitan e o ensaiador ensinando minha mãe como tinha que andar e se equilibrar no arame. Minha mãe colocava a sapatilha e ficava ensaiando e eu olhando, prestando muita atenção como ela fazia.”
Subia e caia, subia novamente e mais uma vez caia…
“Quando todos saíam, eu ficava sozinha e subia no arame. Subia, me equilibrava e caía. Subia novamente, me equilibrava e caía até que uma hora eu levantei um pé e me equilibrei, levantei o outro e continuei em pé no arame, até que comecei a andar no fio. Foi aí que pedi para minha mãe me deixar fazer o arame no lugar dela porque eu achava que ela era velhinha. Na realidade, era muito nova. Mas para quem tem seis anos… Ela deixou. Fui para o picadeiro do circo e comecei a treinar pra valer: andava de frente, de costas, ajoelhava e, quando achei que estava pronta, disse para a minha família que eu queria trabalhar no circo.”
“Fiz minha estreia, ainda criança, com o arame a 1 metro de altura em relação ao chão”
“Eu estreei em Timbaúba, Pernambuco, cidade onde nasci. Por eu ser pequenininha, montaram na arena do circo um arame a um 1 metro de altura, do chão, e meu tio Gaitan entrou comigo. Eu estava sentada na palma da sua mão, vestida de branco, com uma sainha bem armada e sapatilha. Entramos os dois, eu cumprimentei o público e comecei minha apresentação no arame: andei de frente e de costas, dancei um pouquinho e, quando acabei, desci do fio e dei uma estrelinha no chão. Aí várias meninas da cidade vieram me entregar um buquê de flores e me abraçaram. Eu tinha sete anos e chorei.”
“Ninguém nunca mais vai me derrubar”
“Tinha uma costureira do circo chamada ‘Mocinha’ que uma vez trouxe sua sobrinha Hilda, de 13 anos, que começou a ensaiar arame comigo e o ensaiador, o Colega. Por ser bem maior do que eu, que era miudinha, ela ficava me derrubando. Como eu ainda não tinha o equilíbrio muito bom, eu caía. Eu chorava, ela ria e dizia: ‘É essa a geração que tem serragem no sangue?’. [O uso da serragem para forrar o circo faz parte da prática circense desde as suas origens de circo de cavalinhos. Por isso, a expressão “serragem no sangue” é utilizada para dizer que a pessoa nasceu no circo ou está muito habituada à vida circense]. lsso me perturbou muito. Chorei tanto que resolvi que não ia mais ser artista. Fiquei um tempo fora do picadeiro. Um dia, resolvi voltar e treinar duro, mas sem que ninguém soubesse. Todos os dias eu ia cedinho para o circo para ensaiar o arame para ninguém me ver. Só quem sabia era o Colega (o Hipólito), o ensaiador. No começo, eu só andava. Depois passei a correr, dar piruetas. Ficava mais de uma hora em cima do arame para pegar equilíbrio, confiança em mim. Quando fiquei mais confiante pedi para o Colega balançar o arame. Ele balançava e mesmo assim eu não caía. Então eu disse: ‘Ninguém nunca mais vai me derrubar’. Foi bom porque treinei muito sozinha e me aperfeiçoei. Nesse meio tempo, a Hilda desistiu do arame.”
“Trapézio aéreo: eu gritava ‘Aii’ e o público achava que eu ia cair”
“Nasci para equilibrar meu corpo. Tinha o dom, é verdade, mas não basta ter o dom, é preciso muito treino. Durante anos, ensaiei muitas horas todos os dias. Fiz vários números além do arame: corda, báscula, trapézio aéreo, cavalos. Foi o ensaiador do circo, o Colega (Hipólito), quem me ensinou o trapézio aéreo.”
O trapézio aéreo é uma estrutura composta de uma barra de ferro lisa na parte de cima e outra abaulada na parte de baixo. Em cada extremidade dessa barra há uma chapa de ferro, de onde saem as correntes que prendem o trapézio no alto do circo. Ao lado de cada chapa há uma bola de ferro que faz o contrapeso em relação ao peso do artista. No trapézio aéreo são executados números de equilíbrio. Os exercícios são feitos em pé, de joelhos ou sobre uma cadeira. O artista está sempre com as mãos soltas, equilibrando-se. O trapézio pode estar parado ou balançando.
“No trapézio aéreo, eu virava de lado, ajoelhava, depois levantava. Sentava em uma cadeira e depois colocava a cadeira numa quina e me equilibrava de pé em cima dela. Depois de um tempo de equilíbrio, em que eu pendia para um lado e para o outro, eu dava um grito: ‘Aiii’, e me soltava da cadeira e parava na bola do trapézio. Parecia que eu ia cair. O povo dava um grito pensando que eu ia cair mesmo. Mas eu não caía nada.”
Em pé, nos cavalos
“Além do trapézio aéreo, eu fiz também o número com os cavalos. Eram três cavalos no circo: o “Príncipe”, um cavalo branco, e duas éguas, “Fortaleza”, que era marrom escura, e “Estrela”, que era preta. Quem fazia o número com os cavalos era o tio Roger [Avanzi], ele fazia graça em cima do animal, dava um ‘show’. Depois, eu e ele fizemos um número que o público adorava: começava comigo pulando corda, chicote e depois ajoelhando tudo isso em cima do cavalo sem sela. Daí o tio Roger também subia no cavalo e nós dois nos equilibrávamos com o cavalo correndo.”
“Caí na frente de um cavalo; ele desviou para não me machucar”
“Eu tratava muito bem os cavalos e vivia alisando suas crinas. Quando a gente trata bem o animal, ele respeita a pessoa. Certa vez, dei um mortal e, não sei direito por qual motivo, acabei caindo em frente ao cavalo: ele desviou para não pisar em cima de mim.”
Nem leão nem elefante
“Não tinha leão nem elefante no Circo Nerino, só cavalo e cachorro. Minha avó Armandine, que administrava o circo ao lado do tio Gaetán, não gostava de leão nem de elefante. Ela tinha medo porque, apesar da jaula, se o bicho ficava nervoso, ele poderia arrebentar a barra e agredir o público. Aí o pessoal do circo tinha que matar o bicho, como já ocorrera em outros circos, porque ninguém conseguia segurar o animal enraivecido. Ela nunca quis saber de outros bichos no circo. Só dos cavalos e dos cachorrinhos, que eram todos pequenininhos. Eles ficavam em pé, dançavam com roupinhas – sainhas para as cachorrinhas e casaquinhos para os cachorros.”
“Não se pode deixar o medo entrar após uma queda”
“Era um dia qualquer, em agosto de 1963. Não lembro direito. Eu tinha acordado cismada. Mas não podia deixar de fazer o espetáculo por uma cisma. Lá em casa, só não se trabalhava por algo muito sério. No número da cama elástica, eu subi para a dupla volta. Virei a primeira, mas não virei a segunda. Arrependimento no circo, como dizem, mata. É verdade, eu mesma quase morri. Caí de costas no cano da cama, que era bem grosso. Também ia bater com a cabeça, mas alguém pôs a mão embaixo. Assim que caí, senti um fogo entrar no meu corpo, mas não cheguei a desmaiar. Levantei, fechei os olhos, balancei o corpo. Aí ouvi a voz do tio Gaetan: ‘Já passou?’ Respondi: ‘Já’. ‘Então faz de novo’, ele disse. E eu fiz. Porque, no circo, quando se cai e não se arrebenta, é preciso subir e fazer de novo, senão o medo entra na pessoa.”
Só entrava nas peças do circo teatro
“Depois disso, eu fiquei alguns dias só entrando nos dramas e fazendo números leves, mas, no dia em que fiz corda indiana, não aguentei. Cheguei para o tio Roger e falei que não estava aguentando de dor. Fui para Belo Horizonte e descobriram que eu estava com hérnia de disco. O médico me engessou. Mas a minha perna esquerda começou a paralisar porque o ciático estava preso. Aí eu tive que ficar na tração no hospital. Depois do hospital, fiquei um tempo usando colete de aço. Perdi todos os meus números. Todos. Mas continuava trabalhando no teatro, na bilheteria, na portaria. Sofri muito.”
Dança depois da queda
“Quando voltei a ensaiar, tive que começar tudo outra vez. Só que eu não era mais a mesma. Nunca mais saltei. Fiquei com medo de fazer parada de mão. Mas devagarinho fui voltando. E, com o tempo, fiz arame muito bem. Não com truques pesados, porque eu não podia mais, mas dançando. Eu criei um bailado em cima do arame. Dançava valsa, rumba e, no final, sambava.”
Sem o avô Nerino, o circo não era o mesmo
“Nessa época difícil da minha vida, fez muita falta o vô Nerino. [Nerino Avanzi morreu aos 80 anos de idade, em novembro de 1963. Dois meses antes, Alicinha tinha caído no número de cama elástica] Eu gostava muito do meu avô. Sempre alegre, sempre fazendo graça. Se começasse uma discussão, ele dizia: ‘Gaetan, eu vou te dar um tiro!’ Aí meu tio [Gaetan] dizia: ‘Me dá um tiro!’ ‘Armandine, [avó de Alicinha] vai buscar meu revólver para eu matar o Gaetan’. ‘Mas você não tem revólver’. ‘Então, pega uma colher’. Pronto, a discussão acabava ali mesmo e em risos. Ele sempre tinha uma história para contar. Entendia de ópera e foi criado no teatro. Meu avó, meu vô Nerino querido, tinha idade e corpo de velho, mas o espírito e a alma dele eram jovens, de criança. Sem ele, aquele circo não era o mesmo.”
Luiz Gonzaga era doido por ela
“A Terezinha, minha irmã, trabalhava no teatro [do circo], e também em bailados, pirâmides, laços e chicotes, além do equilíbrio de objetos no queixo, seu número individual. Ela não tinha a mesma agilidade que eu, mas, em compensação, era muito bonita. Luiz Gonzaga ficou doido por ela. No circo, ficamos eu, minha irmã Terezinha e minha mãe.”
O avô Nerino havia morrido. A irmã mais nova de Alicinha, a Dininha, saíra do circo para se casar ainda muito jovem. O irmão Villy, sua mulher, Vani, e seus dois filhos foram trabalhar em outra companhia.
As dificuldades do circo aumentavam
“As dificuldades do circo aumentavam dia a dia. Falta de terreno, caminhão quebrado, pouco público.”
No dia 13 de setembro de 1964, na cidade de Cruzeiro, em São Paulo, o Circo Nerino apresentou seu último espetáculo. Era um domingo.]
“Saí do Nerino e fui para o Circo Norte Africano”
“Esse circo era de Barry Charles. [Ele morreu no ano passado. Sua filha Erminia Silva é historiadora, pesquisadora e autora de livros sobre o circo.] Lá, no Circo Norte Africano, eu conheci Marcos Medeiros, o Marcão. No começo, brigávamos muito. Depois, nos apaixonamos, casamos e tivemos duas filhas: Licemar e Luciene. Hoje estou aqui vendo essa exposição maravilhosa no Centro de Memória do Circo. Quero finalizar falando que sou feliz com o que fiz e faço na minha vida.”
FAMÍLIA CIRCENSE
A francesa Armandine Ribola (avó de Alicinha) casou-se com o italiano Nerino Avanzi (avô) e montaram o Circo Nerino. Nerino Avanzi foi o palhaço Picolino I.
O tio de Alicinha Roger Avanzi, o palhaço Picolino II, do Circo Nerino, está com 90 anos, completados em novembro 2012.
Ivone Avanzi Silva (mãe de Alicinha) trabalhava mais nas peças de circo teatro. Quando o marido, Minervino Thomás Silva, morreu, ela começou a ensaiar também o arame.
Minervino Thomás Silva (pai de Alicinha), grande artista acrobata, foi quem ensinou parada de mão e estrelinha quando Alicinha era ainda uma menina de 4 anos.
O francês Gaetan Ribola, irmão da avó Armandine, era um homem forte e era considerado um grande mestre, que montava tudo no arco: fez o número da pirâmide humana e era o porteau, o que segurava todos os outros artistas.
MARCÃO – ENTREVISTA COM MARCOS MEDEIROS
“Meu pai fugiu com o circo”
“Não sou de família circense, meu pai, Belmiro Medeiros, era de Itapecerica (Minas Gerais). Fugiu com o Circo do Batuta, que passou pela cidade quando ele tinha mais ou menos 14 anos. Aí, no circo, ele se tornou ator porque, naquela época, tinha muito circo teatro. Casou-se com minha mãe, Idalina de Souza Medeiros, que era aqui de São Paulo, da cidade de Guarulhos, e também não era de circo. Já eu e minhas duas irmãs [Marilene Medeiros, contorcionista e sapateadora, e Mércia Elisa Medeiros, contorcionista] nascemos no circo e somos a primeira geração. Minhas filhas, Licemar e Luciene, são, por minha parte, da 2ª geração do circo. Mas, por parte da Alicinha, não: devem ser da oitava geração porque ela é de família circense [Circo Nerino].”
Circo teatro
“Minha mãe também nunca foi artista de picadeiro. Ela se tornou atriz. Antigamente era o circo teatro. Depois houve a separação: o circo foi para um lado e o teatro, para outro. No circo-teatro tinha, todo dia, uma peça diferente. Aos sábados e domingos, eram comédias. Durante a semana, dramas. Tinha a primeira parte, que eram atividades circenses: palhaços, malabaristas e trapezistas. Daí tinha um intervalo e vinha a peça de teatro.”
“Aprendi malabares vendo o filme ‘Arco ao Redor do Mundo”
“Nesse filme há um malabarista fantástico. Eu assisti ao filme mais de dez vezes para pegar o jeito dele, porque não tinha escola para ensinar e no circo ensinava-se o básico. Eu não queria ser um malabarista comum, igual aos outros. Fazia malabarismos com os pés e as mãos e queria fazer um número diferente. Ser destaque.”
Artista de circo que não saltasse não era artista completo
“Com 8 anos eu dava salto mortal. Com 10 anos, saltava na cama elástica e fazia trapézio. Antigamente, o artista de circo, para ser completo, tinha que saltar, caso contrário, não era considerado artista de circo. Podia fazer o que fosse mas tinha que saltar porque o salto é a base de todos os números. Fui malabarista, mas saltava muito. Fui volante de trapézio e me tornei porteau de voos em dois dias. No circo é assim, você aprende muitas coisas por necessidade imediata. Virei também auxiliar de domador.”
Revezamento com a irmã
“Eu fazia malabarismo e a minha irmã, contorcionismo. A gente se revezava. Isto é, ela fazia o número dela e depois eu entrava. Ela casou e abandonou o circo. Aí eu virei porteau e auxiliar de domador no Circo Panamericano e no Rottenberg, da Alemanha, um circo muito grande. Eles fizeram uma excursão pela América do Sul e depois voltaram para a terra deles. Eu não quis ir com eles para a Alemanha e fui trabalhar no Circo Tihany e lá também fui auxiliar de domador. Quando o circo não tinha domador, eu era, então, o domador. Já no Circo Garcia, eu treinava os minipôneis e os leões.”
“Circo novo para mim é circo de lona nova”
“Não existe circo novo – em minha opinião. O Circo du Soleil não tem nada novo lá. É a forma de fazer o número do espetáculo que faz o espetáculo diferente. O circo teve diversas mudanças ao longo dos anos e vai continuar mudando o modo de apresentar o espetáculo, mas os números são sempre os mesmos.”
*Colaborou Ana Cristina Benozatti e Mônica Rodrigues da Costa
Legenda da foto da capa: Alicinha quando criança no Circo Nerino
Tags: Alice Avanzi, Alicinha, Arame, história, Maíra Campos, Marcão
que matéria emocionante!!!!
Parabéns Panis&circus!!!!