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Arte que se aprende na escola
“Eccentric Perfomance” é um curso de verão nos EUA dedicado a quem faz arte
Cafi Otta, especial para Panis & Circus
“Eccentric Performance” é o nome de um curso realizado anualmente durante o verão (julho/agosto) no norte dos EUA, mais precisamente na cidade de South Paris, no Maine, estado conhecido por suas paisagens, seus lagos e suas lagostas, em que se faz arte.
Em julho de 2012, participei do curso com Avner Eisenberg e Julie Goell, dois excepcionais artistas norte americanos.
Nunca havia viajado para os EUA, e parti com todos os preconceitos do mundo dentro da bagagem. Sentia antipatia pelo país e por seu povo, por conta de sua propalada prepotência e arrogância, por se meterem nos problemas de outros países, por sua participação no golpe de 64 no Brasil, por sua política belicista, por sua comida. Mas, a vontade de participar do curso era maior do que minha antipatia, e lá fui eu.
Primeira parada, Nova York, cidade dos arranha céus e da carteira vazia! Como tem coisa legal pra comprar. Fiquei dois dias na cidade e apesar do pouco tempo consegui encontrar a Lu Menin, artista talentosíssima, mineira como eu, e minha companheira de cena no espetáculo infantil “Jucazecaju”.
“Junk food” e falta de higiene
Tomei um ônibus de Nova York até Boston – linha usada pelo povo de lá, como uma ponte rodoviária, com ônibus saindo a cada 40 minutos. Em Boston, outro ônibus até a cidade de Portland, capital do Maine (até então não sabia que existiam duas Portlands. A outra fica no Oregon, do outro lado do país).
A duração da viagem (Boston a Portland) foi de cerca de oito horas, com direito a paradas em postos de beira de estrada que não ficam nada a dever aos nossos nos quesitos higiene e limpeza. Além da sujeira, eles também tem “junk food” saindo pelo ladrão. Nesse ponto, alguns dos meus preconceitos se confirmaram.
Em Portland, um carro particular veio me buscar e junto com mais três alunos seguimos, por uma hora e meia, até o Celebration Barn Theater – centro de pesquisa teatral criado pelo mímico norte-americano Tony Montanaro, em 1972. Ele faleceu em 2002. Mas o local segue funcionando e é referência internacional para a pesquisa do teatro e da comédia física.
Charles Chaplin e acordeon
Minha turma era heterogênea: o professor, um escocês de 65 anos. Eu, brasileiro; um garoto espanhol de 18 anos que estudava teatro na Inglaterra e um indiano que trabalhou por muito tempo no McDonald’s e agora era palhaço.
Muitos norte-americanos.
E várias especialidades: um artista de rua que imitava o Charles Chaplin e tocava acordeon; uma palhaça que fazia “stand up comedy” e tocava muito bem o “ukulele”; um veterano do exército especialista em Código Morse, mas que havia se tornado um MC (mestre de cerimônias) de uma banda de rap e trabalhava numa ONG para crianças em situação de risco; uma entusiasta das artes mas que ainda não havia decidido se seria artista ou arquiteta; e um jovem de 15 anos que parecia ter saído do livro do pequeno príncipe, ótimo mímico mas péssimo malabarista; além de outros malucos como nós.
Tarefas divididas
O esquema de hospegagem e funcionamento do curso era e é simples. E o mais importante: funciona.
Os alunos ficam hospedados num pequeno sítio que conta com duas casas. A primeira, logo na entrada, abriga a sede administrativa da instituição e a residência de Amanda Houtari, que hoje comanda o dia a dia do lugar.
Ao lado, fica o celeiro, com aquele desenho clássico dos celeiros norte- americanos: vermelho e de madeira. Dentro, o espaço se divide em dois. A primeira metade é um teatro com capacidade para cerca de 100 espectadores, que ficam sentados em cadeiras de madeira da década de 50, que são lindas.
Na outra metade, o alojamento dos alunos que tem 5 quartos duplos e 3 individuais, banheiros, despensa, sala de jantar e uma cozinha equipada. Todas as refeições são feitas ali e os alunos só precisam cuidar do próprio café da manhã.
As tarefas eram (e são) divididas entre os alunos: lavar a louça (colocar na máquina), varrer o teatro, lavar os banheiros, arrumar os quartos, colher verduras pela manhã na horta (esta eu adorava, ia todos os dias, mesmo que não precisasse, só pra ter o prazer de mexer na terra), entre outras.
Dia a dia
A rotina diária do curso era a seguinte:
9h – caminhada pelas pequenas estradas ao redor do sítio. Segundo Avner, a melhor maneira de conversar com alguém é caminhando, pois você não tem a obrigação de ficar olhando o tempo todo para seu interlocutor. Hoje percebo que isso também é útil no palco, já que, às vezes, é preciso dar ao espectador um certo tempo para que ele posso absorver e digerir o que está se passando em cena.
10h30 – aula matinal, ministrada por Avner, abordando os aspectos fundamentais de seu trabalho (respiração, solução de problemas, estratégias de abordagem de voluntários, entre outros). Aulas práticas, com pequenas pausas para anotações.
12h00 – pausa para o almoço.
13h30 – aula da tarde, com Julie. Ela é especialista em comédie de l’art e dava aulas memoráveis. Infelizmente, estava enfrentando problemas de saúde e suas aulas foram emocionantes, porque podíamos ver que ela ensinava tudo o que sabia enquanto lutava contra os efeitos colaterais dos remédios que estava tomando. Nessa medida suas aulas foram além dos aspectos técnicos, teóricos e históricos do fazer artístico. Foram aulas de vida.
15h30 – pausa para o chá.
16h00 – aula da tarde com Avner, com mais conteúdo sobre seu trabalho.
18h30 – jantar.
19h30 – apresentação da lição de casa. A cada dia os alunos recebiam uma lição de casa, que é sempre a preparação de uma cena para ser apresentada na noite seguinte. Ao final das apresentações o Avner e a Julie davam seu “feedback” para cada um, o que ajuda no processo de pesquisa e investigação de todos.
Com pequenas variações esse era o dia a dia durante o curso. Na primeira semana foram apresentados os fundamentos básicos e na segunda semana a pesquisa se aprofundava e cada um era encorajado a desenvolver coisas que já estavam prontas, mas com a ajuda dos dois. Ao final do curso, me dei conta de que o tempo passou muito rápido, foi mesmo muito curto. Um trabalho duro que compensou cada segundo.
Experiência única
Considero uma experiência única que vai além do teatro, do circo, do palhaço. Se tem uma coisa que os norte americanos sabem fazer é desenvolver metodologias de ensino, e os dois professores são verdadeiros mestres. Tudo é apresentado passo a passo, e ao final dos 11 dias de curso a quantidade de informação transmitida e absorvida é muito grande.
A generosidade, a gentileza, o cuidado e o carinho dos professores e da equipe local são contagiantes, e fazem tudo isso ser ainda mais inesquecível.
Esse curso acontece há mais de 20 anos, e não tem perspectiva de parar.
Uma tacada só
Em 2014, acontece entre 23 de junho e 5 de julho, e está dividido em dois módulos: introdução e avançado. Só pode participar do módulo avançado quem já fez a introdução alguma vez na vida. Aqueles que nunca fizeram podem fazer o curso completo numa tacada só (eu recomendo!!!). O único requisito exigido é que o aluno saiba falar inglês.
E antes que alguém diga que isso não é justo, o próprio Avner me explicou que só faz isso para que o ritmo do curso se mantenha, caso contrário ele teria que parar a cada exercício para explicar individualmente o que deve ser feito. A única exceção aconteceu quando duas japonesas participaram da oficina, sem falar uma palavra em inglês, e para a surpresa do Avner, acertavam tudo!!!
Para maiores informações:
http://www.celebrationbarn.com
http://www.avnertheeccentric.
Tags: Avner Eisenberg, Cafi Otta, Eccentric Perfomance, Julie Goell, lu menin