Pé na Estrada
As diversas faces de um sonho chamado circo
Clássico do cinema, “As 7 faces do Dr. Lao” completa 40 anos repleto de nostalgia e encantamento
Janaína Leite, especial para Panis & Circus
Eu era menina, menina mesmo, dessas que creditam realidade a um sonho. Às vezes, no frio curitibano, a avó tinha pena e me deixava perder aula, com a desculpa de que a chuva no caminho “engripava”. Nesses dias eu acabava ficando em casa, cobertor e chocolate quente, olho livre para livros e filmes em que as histórias estavam repletas de imaginação e sentido, ultrapassavam a soma dos quadrados dos catetos.
Tenho quase certeza que foi assim, numa data sem rotina, a primeira vez que nos encontramos. De um lado, a guriazinha sulista; de outro, o televisor que só mudava de canal com muito custo. Trazia um velho chinês misterioso, dono de muitas faces e artimanhas, capaz de mudar a vida de uma cidade inteira. “Todas as vezes que você para e pensa: ‘Estou vivo e isso é fantástico’; sempre que algo assim acontece, você é uma parte do circo do Dr. Lao”, ele disse. Acreditei. Nunca mais esqueci. Hoje, décadas depois, ainda conto.
O Dr. Lao que conheço nasceu em Hollywood, 1964, pelas mãos do roteirista Charles Beaumont. Foi ele quem adaptou o romance “O Circo do Dr. Lao”, lançado em 1935. Transformou a obra, primeira a receber o prêmio nacional de literatura dos Estados Unidos, no clássico “As Sete Faces do Dr. Lao”, última película dirigida por George Pal, diretor que gente como eu acha incrível, responsável também por “Atlantis, o Continente Perdido”, em 1961. (Clique aqui para ver cenas do filme.)
O livro “O Circo do Dr. Lao” foi escrito por Charles G. Finney, soldado do Missouri que serviu na China e depois se tornou editor de jornal no Arizona.
Dizem que os escritores encontram inúmeros jeitos de contar sua própria história. Não corroboro, nem duvido. Repasso a vocês algo que o filme e a vida também contam, de um jeito ou de outro: a história de pessoas que precisam tomar uma decisão crucial, que pode mudar suas vidas. Aqui a metáfora é feita a partir dos moradores de um vilarejo no velho oeste americano, chamado Abalone. Eles estão sendo ameaçados pelo fazendeiro Clint Stark (interpretado por Arthur O´Connell) que deseja comprar todos os imóveis do local.
Os cicadãos de Abalone sofrem pela impregnação de pecados comuns: ira, corrupção, dissimulação, moralismo, descrença, cinismo, ambição, violência. Medo, em suma. Estão prestes a vender suas casas e a abandonar tudo. Querem acabar com a angústia, desenredar o fio do tédio que trança as vidas no vilarejo perdido, coisa entre o século XIX e o XX.

Clint Stark (Arthur O´Connel), o capitalista, quer comprar todos os imóveis da cidade / Foto Divulgação

O jornalista (John Ericson) e a bibliotecária (Barbara Eden) resistem ao poder econômico de Stark / Foto Divulgação
Poeira e vontade, persistência, capitalismo em formação. À mudança resistem o jornalista Ed e a bibliotecária Angela (até hoje acho isso bonito), só os dois, caso de amor mal resolvido. (Ed Cunninghan, o jornalista, é interpretado por John Ericson e o papel da bibliotecária Angela Benedict é de Barbara Eden, a Jeannie da série de televisão).
Até que um dia chega ao povoado um chinês muito esquisito, Dr. Lao, dono de um circo repleto do maravilhoso, do sobrenatural, do mítico.
Aqui me permito, com sua licença, um aparte. Com filme ou sem filme. O que é o circo, essa coisa itinerante que nos apresenta estranhezas? Gente mais destra, mais incrível. Exóticos até. Eles podem o que não podemos e eis aí sua graça: o sorriso e a musculatura, o equilíbrio e o destemor, a sedução de um algo que nos ultrapassa, nós, os dependentes de compasso, régua e ortografia.
Por isso, talvez, o Dr. Lao e suas sete faces sejam tão fascinantes. (A partir daqui, leitor, é spoiler, ou seja, serão revelados trechos do filme).
Apolônio de Tiana: a sina de dizer a verdade
Em Lao, a segunda face é Apolônio de Tiana (Apollonius de Tiana), uma das figuras mais interessantes que o mundo já viu. “Minha sina é dizer a verdade absoluta”, garante o pensador, a primeira atração do circo apresentada aos espectadores. Ele não contemporiza, não emenda. Ao ser questionado por uma mulher fútil e leviana sobre o seu futuro, responde diretamente. “O futuro sempre é absurdo, até se tornar passado”, lembra.
Ela arrisca nova pergunta: “quando vou me casar novamente?” E Apolonius afirma: “Nunca mais. O amanhã será como hoje e o depois de amanhã será como o dia antes de ontem. Vejo os dias que lhe restam como uma coleção de horas tediosas cheias de vaidades inúteis.” Chamado de horrível e mesquinho, sua sabedoria prevalece. “Muitas vezes os espelhos são feios e maus”, diz.
Pã, o deus grego, desperta o desejo

Eric, o jornalista, imaginado pela bibliotecária Ângela, como Pã, o deus do desejo / Foto Divulgação
A terceira face é repleta de desejos reprimidos, sedentos de gozo. Pã (Pan), o deus grego das pernas de cabra, ligado à natureza, está lá, seduzindo as mulheres, levando-as aos seus instintos mais básicos, fazendo com que elas se livrem dos chapéus como quem arranca os pensamentos. A flauta, instrumento de sopro tradicionalmente ligado ao encantamento, confunde os sentidos e faz com que a Angela, a bibliotecária, perceba a verdadeira forma se seus desejos.
Serpente é reflexo
E a quarta face? Nada melhor que a Serpente (Serpente) aquela que se faz o reflexo. No veneno sentimos o igual, aquilo do qual não podemos nos livrar. “Este circo é como um espelho. Às vezes, você se vê nele. Às vezes, vê um outro”, ela diz. Não surpreende que nos mitos, astuta, seja a serpente a representação do tentador que induziu à maça e ao conhecimento.
Medusa confinada ao espelho
A metamorfose facial desemboca rapidamente no quinto rosto, temível, desesperador: a Medusa (Medusa) mitológica, jovem sacerdotisa violada por Poseidon e amaldiçoada por Atena, com seus cabelos serpentinos e sua capacidade de transformar os outros em pedra.
Há metáfora, leitor, mais interessante para a pessoa assaltada por suas ações intempestivas e inconscientes, relegada a lidar com as conseqüências de seu aviltamento à sabedoria? Se existir, conte. Eu gostaria de saber.
Merlin, o mágico, quer mostrar que a vida não é um truque
E Merlin (Merlin), a sexta visão. O grande mágico, cansado de tentar convencer os demais que a vida é mais que truque, envelhecido e subestimado, pronto para inspirar uma das mais bonitas qualidades, a misericórdia. Tenho vontade de abraçá-lo quando me lembro.
Pipocas para “O Abominável Homem das Neves”
O Abominável Homem das Neves (Abominável Homem das Neves) vem em sétimo. De acordo com o dicionário online, “abominável” é o “odioso”, o detestável, o insuportável, o execrável e assim por diante. Com o Dr. Lao, ele empurra o carrinho e vende pipocas. Adorável. Uma espécie de Chewbacca pré-ficção científica.
Para fechar a galeria, uma face não assumida, aberração que cresce sempre que não é regada. O monstro do Lago Ness, serpente marinha magistralmente guardada em um aquário redondinho, feito sob medida para um peixinho dourado.
As máscaras do maquiador Tuttle
Adulta, não resisto e quero saber como foram feitas todas essas transformações; uma vez que o ator que interpreta Dr. Lao e seus desdobramentos é o mesmo, Tony Randall. Uma curiosidade: não deveria ser ele a ocupar o papel, mas Peter Sellers, outro camaleão do cinema. Mesmo assim, sem reclamações. Randall mais que deu conta do recado. Teve a ajuda do maquiador William J. Tuttle, mesmo supervisor das transformações ocorridas em “O Mágico de Oz”.
Há uns vinte e tantos anos eu e o Dr. Lao somos amigos. Tento desvendar seus segredos sempre que nos encontramos. No último fim de semana, um calor danado em São Paulo, sem espaço para cobertor, fiz mais um esforço. Nada. O chinês que acende o cachimbo com o polegar é daqueles simbolismos inexeqüíveis. Tenho certeza que cruzarei com ele daqui a dez anos e continuarei achando o máximo, querendo entender e levantando teorias.
É assim, talvez, que seja possível reconhecer um clássico, desses filmes inesgotáveis em suas perguntas e respostas, em suas possibilidades de entendimento. Pois todas as vezes que você pensar “estou vivo e isso é fantástico”, é possível que você se sinta como eu, parte de uma vida que carrega em si um circo que viaja e muda tudo, mesmo sem explicar como.
O mundo inteiro é um circo, diz Dr. Lao
Dr. Lao fala para o menino que bate à porta de seu trailer e quer entrar no circo.
“O mundo inteiro é um circo se você souber olhar para ele. O sol se põe quando você está cansado e nasce quando você levanta: isso é mágica de verdade. Veja como uma folha cresce e como o deserto fica à noite quando a luz da lua o envolve e ouça o canto dos pássaros. Oh, meu garoto! Isso é circo bastante para qualquer um. Sempre que você vê um arco-íris, seu coração se encanta com isso. Sempre que você pega um punhado de areia e não vê areia mas sim um mistério, uma maravilha na palma de sua mão. Toda vez que você pára e pensa: estou vivo. Estar vivo é fantástico. Sempre que algo assim acontece você é parte do Circo do Dr. Lao.”
Vídeos:
Apolônio e a verdade do futuro
Falas do vídeo traduzidas para o português (leia abaixo) – áudio em inglês
A mulher de chapéu rosa entra na tenda de Apolônio (Apollonius) para saber o que lhe reserva o futuro.
Ao ver Apolônio exclama: “Você parece Howard, meu marido, que morreu” e enxuga uma lágrima furtiva em seu lencinho.
Apolônio responde: “Ele não morreu. Ele só caminhou para fora de sua vida anos atrás”.
Mulher: “Se você sabe do meu passado tão bem, vamos ver o meu futuro.”
Apolônio: “Cinco centavos, por favor.”
Mulher: “Isso é tão excitante! Posso perguntar? Quando vão valorizar os 28 acres que eu comprei?”
Apolônio: “Nunca.”
Mulher: “Mas eu paguei uma fortuna por aquela terra.”
Apolônio: “Você desperdiçou seu dinheiro.”
Mulher: “O que eu quero saber realmente é quando eu vou me casar novamente?”
Apolônio: “Nunca.”
Mulher: “Vou colocar a pergunta de outra forma: Que tipo de homem vai aparecer na minha vida?”
Apolônio: “Não haverá mais homens na sua vida.”
Mulher: “Como vai ser minha vida se eu não vou ser rica e nem vou me casar novamente?”
Apolônio: “Eu só leio o futuro. Eu não o avalio.”
Mulher: “Vamos, vá em frente. Leia o meu futuro. Eu paguei você para isso.”
Apolônio: “Amanhã será como hoje. E o dia depois de amanhã será como o dia anterior. Vejo os dias que lhe restam como uma coleção de horas vazias cheia de vaidades inúteis. Você não terá nenhum pensamento novo e irá esquecer o pouco que sabe. Você vai ficar velha mas não sábia.
Aquela simplicidade que fazia com que os homens se sentissem atraídos por você, nunca mais vai recuperá-la.”
Mulher: “Que homem horrível você é!”
Apolônio: “Sinto que você veja isso como maldição, mas é a pura verdade.”
A mulher sai chorando da tenda.
Encontro marcado com o desejo
Falas do vídeo traduzidas para o português (leia abaixo) – áudio em inglês
A bibliotecária Ângela (Barbara Eden) entra na tenda de Pã (Pan), o deus da alegria, que toca um flauta.
Em dado momento, Pã transforma-se num moço bonito, na realidade, no jornalista Eric, que toca flauta, seduz a moça e termina por colocar uma uva em sua boca.
De repente, a cortina se abre, o público entra na tenda, a magia acaba e o deus Pã volta a ter pernas de cabra.
Kate quer desmascarar Medusa
Falas do vídeo traduzidas para o português (leia abaixo) – áudio em inglês
Dr.Lao anuncia para o público presente em seu circo:
“Senhoras e senhores, vocês vão ver a famosa Medusa. Os moradores de Abalone estão prestes a ver, pela primeira vez, a Medusa, antiga criatura mística da Grécia. Como vocês sabem, ela tem o poder de transformar aqueles, que olham em seus olhos, em pedra.
Para evitar que boas pessoas se transformem em pedras, monumentos, obeliscos, eu criei uma forma para vocês poderem ver a Medusa sem sofrer as consequências do feitiço.
Só podem ver, portanto, a Medusa através do espelho. Olhando a Medusa pelo espelho ela é inofensiva. Por favor, se contentem em ver o reflexo dela no espelho e mantenham distância das cortinas para não termos surpresas desagradáveis. A Medusa tem mais de três mil anos de idade.”
Um dos três vaqueiros que estão na sala do espelho, com a imagem da Medusa, escuta a fala do dr. Lao e afirma: “Ela não parece ter mais de 100 anos para mim”.
E os três vaqueiros, após a fala, abandonam o local.
Kate, uma mulher de meia-idade na plateia, afirma: “Isso é ridículo. Eu quero dizer só uma coisa para aquela coisa velha (trata-se do dr. Lao). Onde está ele?”
Marido de Kate: “Querida, por favor”…
Kate sai da sala, abre uma cortina e encontra o dr. Lao.
Kate: “Eu nunca ouvi tanta bobagem em minha vida desde o meu nascimento. Cobras que transformam pessoas em pedras, mas que ideia.”
Marido de Kate: “Quer parar de arrumar confusão, Kate, por favor”…
Kate: “Cale a boa, eu sei o que estou fazendo”…
Dr. Lao: “Minha querida, por mais descrente que uma pessoa seja, há segredos no mundo que o nosso conhecimento não consegue explicar.”
Kate: “Eu vou desmascarar essa sua mentira em frente a todos.”
Ela volta para a sala e fica em frente ao espelho.
Kate: “Eu vou mostrar para ela [Medusa] como as pessoas corretas”…
E a partir dai, seu rosto vai ficando petrificado até que ela vira uma pedra.
Merlin: a crença infantil na mágica da vida
Falas do vídeo traduzidas para o português (leia abaixo) – áudio em inglês
O mágico Merlin está em frente ao público.
Uma menina na plateia vira-se para a mãe e diz: “Eu estou cansada disso, mãe.”
Mãe da menina: “Calma, criança. O senhor está tentando fazer alguns truques.”
Merlin: “Não são truques. O que eu faço é mágica. Eu crio, desloco coisas do lugar, transformo situações. Eu não faço truques.”
Público: “Farsante.”
Merlin: “Vocês estão enganados. Eu sou um grande mágico.”
E o público começa a se retirar do local.
Merlin pergunta: “Eu crio do nada. Isso não é suficiente?”
Um homem na plateia diz: “Qualquer um faz aparecer um buquê de flores.”
Outro questiona: “Você não pode mesmo flutuar?”
E um terceiro repete: “Farsante”.
Durante o tempo do dialógo, Merlin tenta fazer mágicas mas não consegue. Acha que esqueceu como criar a magia.
O público deixa o local, exceção a um menino com uma bexiga vermelha, que apanha a varinha mágica de Merlin caída no chão e a entrega a ele.
Menino: “Tudo bem, senhor Merlin. Eles não vão entender, mas eu entendo. Eu acredito que o senhor é o maior mágico do mundo. Eu realmente acredito no senhor.
Merlin: “Obrigado, menino.”
Postagem: Alyne Albuquerque
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