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“Bili com um Limão Verde na Mão”
Poeta complexo e inventor noigandres deixa obra a ser lida e inéditos. “Bili” é conto de fadas pós-moderno (leia abaixo)
O poeta feliz Décio Pignatari, morreu em 2/12/2012 aos 85 anos e parentes e amigos cantaram “Peixe Vivo” durante a cerimônia fúnebre em São Paulo. Era um pedido do poeta. Com a poesia dele no colo ou olhando entre os livros da estante, como fez Luiz Costa Lima, conforme descreveu em texto para a “Folha de S. Paulo” em 4/12:
“Corro à estante à procura do poema crítico-visual que marcou minha adolescência. Tenho a sorte de encontrar com rapidez sua coletânea ‘Poesia pois É Poesia’. Não sei se será possível reproduzi-la. Se o for, tanto melhor. Na dúvida, desdobro-a à minha frente. Reproduz-se a nota de um dólar e, em lugar de o centro ser ocupado por uma figura respeitável da história norte-americana, expõe-se a gravura de Cristo com sua coroa de espinhos. No verso da nota, aparece o mais inesperado: em vez do nome ‘Cristo’, tinha-se o cifrão de nossa moeda, Cr, seguido pelo cifrão do dólar, com o ‘S’ atravessado por uma barra e, a seguir, ‘isto’. O nome próprio tornava-se o símbolo de nossa dependência, tornada mais explícita e mais ampliada pela complementação da frase ‘é a solução’. O Cristo atualizado é um Cristo de cifrões”.
Décio foi um dos inventores da poesia concreta, ao lado dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos, Ronaldo Azeredo, José Lino Grünewald, Ferreira Gullar.
Traduziu Marshall Mcluhan (“Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem”), escreveu “Contracomunicação” (1971) e o clássico “Informação, Linguagem e Comunicação” (1968). Acreditava na eficácia dos cartazes e criou o logotipo Lubrax. Psicografou Oswald de Andrade em um livro-álbum. Fez revistas e adorava conversar sobre poesia em longos papos inteligentes, sempre sobre linguagens.
Transitava entre poesia, música e a ciência da semiótica e semiologia como retroalimentação. Tinha parceiros e admiradores como os músicos Lívio Tragtenberg e Julio Medaglia. Sua trajetória intelectual é extensa e complexa. Pignatari manteve diálogos com várias gerações posteriores à dele.
Segundo a viúva de Décio, Lilla Pignatari, na “Folha”, os últimos trabalhos do escritor são uma peça sobre Soren Kierkegaard (1813-1855) e outra sobre Nísia Floresta (1810-1885).
Nos últimos anos Décio Pignatari retomou experimentos com gêneros literários, em especial, o dramático, e traduziu poesia, como a da russa Marina Tsvetáeiva (1892-1941), em 2005. O último livro de Pignatari é de 2009, “Bili com Limão Verde na Mão”, pela ed.Cosac Naify. Abaixo, reproduzo resenha que escrevi na “Folha” na época do lançamento.
“Pignatari faz conto de fadas multimídia para adolescentes”
“Bili com Limão Verde na Mão”, lançado pela Cosac Naify, é um livro juvenil, com jogo de poesia e prosa, em excepcional edição de formas, cores, tamanhos e tipos de letra, pop-ups, cortes multimídia de versos e estrofes, revelando a variabilidade no trato com as palavras e a técnica de seu autor, Décio Pignatari.
O projeto gráfico é de Luciana Facchini, com edição de Augusto Massi e Isabel Coelho. Na história, a protagonista é a poesia, e, na aventura, inúmeras referências literárias, musicais e plásticas, como o urubu de Augusto dos Anjos e a cantora Billie Holiday, misturam-se às peripécias de uma garota de 13 anos, que brinca com um limão na mão, adormece e acorda, entrando e saindo de mundos encantados -e surreais, como no livro e filme “A Fantástica Fábrica de Chocolate”, de Roald Dahl, dirigido por Tim Burton.
O poeta Pignatari, 82, foi um dos inventores da poesia concreta, ao lado de Augusto de Campos, Ferreira Gullar e Haroldo de Campos, entre outros artistas. Destaca-se como semioticista, teórico da comunicação e das artes, tradutor e escritor de prosa, incluindo nela um modo singular de pensar o signo poético, quebrando versos e fundindo-os numa “prosética”, conforme descreve Rinaldo Gama na tese “Ficção Multimídia: Teoria e Prática da Narrativa Literária em Décio Pignatari” (2004).
Seu novo livro é um conto de fadas perfeitamente adaptável a uma tela de hipermídia -narrativas múltiplas e interação, como num videogame, com cenários que modificam os contornos dos personagens e deixam à mostra a lógica paradoxal da linguagem, que mais parece disparate do pensamento.
A narrativa de “Bili com Limão Verde na Mão” começa em uma página escura, em letras maiúsculas, sem pontuação, e mostra o fluxo de consciência da personagem. Nesse travelling, Bili pensa na vida, que não estava “legal”, observando, um tanto amuada, “o portão a calçada a rua e o lado de lá da rua o ônibus quase vazio que passava nesse começo de tarde de outono quente uma bicicleta com um negrão e uma negrinha no quadro uma mulher com uma criança no colo e outra pela saia um garoto de skate três homens trezes soldados […]”.
Bili desperta em gigantesca exclamação, e as ilustrações (de Daniel Bueno) explodem lisérgicas e geométricas. Ela transporta-se a outro plano, o limão é o objeto mágico que opera a mudança, como o sono da Alice de Lewis Carroll ou o pó encantado de Monteiro Lobato.
O enredo é recheado de poemas concretos, quadrinhas, parodia personagens como o corvo, de Edgar Allan Poe, o Gato que Ri e o cavaleiro Ninguém, de Carroll, e evoca fábulas, parlendas e refrões, com burro, coelho, mariposas e andorinhas. A garota sonha, e o limão fica preto. Ela viaja nas asas de uma borboleta, aproxima-se do pássaro Sem-Fim, que canta que sua dor “tem fim, tem fim”.
Bili viaja, com seu limão-bota-de-sete-léguas, para espaços siderais e imaginários. As epifanias, ou descobertas, fazem do livro um ritual de passagem para a prosa de invenção, como uma espécie de despedida dos signos da infância.
Links:
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/81704-formalismo.shtml
(Mônica Rodrigues da Costa)