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Bolsonaro – o Mito virou Mico
Mônica Rodrigues da Costa, especial para Panis&Circus
José Celso Martinez Corrêa, ator e diretor, fundador do Teatro Oficina e a professora da USP, Maria Augusta Fonseca, debatem O Circo e a Antropofagia, em 26/3, no auditório do cine Olido, na conhecida Galeria Olido, hoje centro Cultural, próximo ao Largo Paissandu.
Os debates fazem parte das comemorações dos 90 anos do “Festim Antropofágico – Vamos Comer Piolin?”, que lembra o almoço metafórico do palhaço, ocorrido no restaurante da loja Mappin, na praça do Patriarca, em 27/3. Foi o modo de os artistas modernistas de 22 homenagearem o circo e a arte popular.
Verônica Tamaoki, coordenadora do Centro de Memória do Circo (CMC) e uma das organizadoras do evento, abriu as palestras pedindo uma salva de palmas para o palhaço Picolino (Roger Avanzi), que morreu em 2018, em 11/12, Dia do Palhaço. Em seguida Verônica chamou ao palco Hugo Possolo, palhaço, ator e criador do grupo Parlapatões, que, “refrescou a memória de São Paulo ao interpretar Piolin no espetáculo ‘Vamos Comer o Piolin’ em 1997”, diz a coordenadora.
Hugo Possolo representou o secretário municipal de Cultura, Alê Youssef, na abertura da festa e falou que estava emocionado com as comemorações, “por toda a simbologia que tem e neste momento em que a cultura está sendo tratada com algo ruim, quando ela é a esperança que a gente pode ter. Enfim somos fazedores de cultura e [fazemos] um movimento contrário ao que está acontecendo no plano federal. A gente tem de fazer coisas boas, bonitas e fortes. Zé Celso simboliza tudo o que Oswald trouxe, [cujas ideias] Zé Celso planta desde ‘O Rei da Vela’ e que reverbera até hoje com o sentido de devorar a cultura, que abre espaço para nossas linguagens tão vivas e coloca em pauta essas discussões dos movimentos que estão aí, o movimento antirracismo, o movimento feminista para mostrar que a gente não está sendo engolida, a gente vai resistir e existir com a força do significado da nossa arte. Viva o circo, viva o teatro, viva a alegria”, finaliza.
José Celso Martinez Corrêa montou a peça de teatro escrita por Oswald de Andrade “O Rei da Vela” em 1967 – um dos marcos do modernismo de 22. O espetáculo foi remontado em 2017 pelo próprio José Celso.
O artista Zé Celso fala da luta de manter o Teatro Oficina, projetado por Lina Bo Bardi nos anos 80, fala do legado da antropofagia oswaldiana e comenta a política brasileira: “Moro tem projeto de combater o crime e ignora o tráfico de drogas, é cego, é caipira, não leu Foucault e só sabe punir. Cabe a nós artistas e à arte o poder ter a consciência… [Bolsonaro] é Mito que virou Mico.”
“Palhaço é o papa dos atores”
Zé Celso afirma que o palhaço é o papa dos atores: “Qualquer parte do mundo tem palhaço, é uma coisa natural o palhaço, é da cultura internacional. É muito forte tudo isso, faz uma cultura e uma maneira de ser. Quando a cultura está ameaçada as artes ganham uma importância extraordinária”
O tropicalista do teatro diz personificar a Tropicália (movimento estético dos anos 60), estética herdeira da Antropofagia, e diz ser ele próprio palhaço. Conta que a bisavó índia era palhaça e dava cambalhotas, era uma velhinha doida que ensinou muitas coisas a ele e então define o Brasil como misturado e mestiço. Explica a antropofagia: “É o fermento da grande revolução cultural brasileira, [com o lema] só me interessa o que não é meu. Oswald de Andrade foi o primeiro poeta antropófago pós-moderno do mundo”.
Reflexões sobre o modernismo
A professora Maria Augusta explicou à plateia o que representa o Modernismo de 1922, como esse movimento revoluciona a arte feita no país até a década de 20, e como dá origem à Poesia Pau-Brasil (1924) e ao Manifesto Antropofágico (1928), estes últimos inventados pelo poeta Oswald de Andrade.
Após contextualizar a Semana de Arte Moderna como manifestação de artistas burgueses em rebeldia contra sua própria classe social e esclarecer o papel de muitos dos participantes, como Villa-Lobos e Menotti Del Picchia, a professora rememorou do início ao fim a relação do palhaço Piolin (Abelardo Pinto; 1897-1973) com os modernistas e, em especial, com Oswald de Andrade, sobre quem Maria Augusta escreveu o livro “Palhaço da Burguesia” (esgotado).
A professora e pesquisadora destacou que a Arte Moderna brasileira valoriza o cotidiano e a linguagem coloquial não pomposa e as riquezas culturais nacionais, celebra nossos índios antropófagos, que comiam em rituais a carne do inimigo para tomar emprestados deles qualidades como coragem e sabedoria.
As relações de parentesco, matriarcais, dos indígenas brasileiros inspiraram Oswald de Andrade para considerar o Brasil utópico como o Matriarcado de Pindorama. Augusta cita a explicação metafórica de Oswald, que propõe esse novo modelo social e ideológico: “Sem prostituição. Sem penitenciárias. No Matriarcado de Pindorama”.
Maria Augusta afirma que o “Festim Antropofágico” homenageia o palhaço Piolin “buscando nele a rebeldia de uma cultura popular no começo da década de 20, representada por Oswald de Andrade no Manifesto Antropofágico de 1928. É uma reviravolta do pensamento. Os modernistas trazem a linguagem popular para a arte, por isso conseguem a valorização da cultura popular. Trazem o desrecalque, a aceitação de nossa origem miscigenada, a mistura de todas as línguas e culturas e a projeção da arte circense para desmontar o pensamento rígido oficial”.
Maria Augusta rememora a ideia inicial da Antropofagia, quando a pintora Tarsila do Amaral presenteia a Oswald de Andrade, em janeiro de 1828, o quadro “Abaporu”, que significa “o homem que come” em tupi. “Assim nasce a metáfora da mastigação – que representa deglutição com o [slogan] ‘só interessa o que não é meu’. Piolin vem de outra classe social, os modernistas querem trazer sua assimilação para melhor crescimento do indivíduo e da tribo e essa é a grande homenagem a Piolin em 1929”, explica a palestrante.
Circo como inspiração
Após os debates, o site Panis & Circus pediu uma opinião sobre as comemorações ao ator Pascoal da Conceição, que já interpretou o modernista Mário de Andrade em seriado global e foi personagem da série da TV Cultura em “O Castelo Rá-Tim-Bum”: “O Doutor Abobrinha é muito inspirado no circo. Uma das minhas referências para criar o personagem foi o circo. Na minha gênese de ator eu misturei Mário de Andrade e o Doutor Abobrinha. Zé Celso fez uma crítica dizendo que os críticos de hoje não veem essas coisas, o Piolin é um artista que faz o crítico ver o que eles não estão vendo. Isso que é bonito do artista, dizer o que tem de artístico, e a palestra foi bonita por causa dessas coisas”.
Onde fica o Centro de Memória do Circo
Centro Cultural Olido – Av. São João, 473, centro de São Paulo. Telefone: 11 2899-7377. E-mail: memoriadocirco@gmail.com.
Ficha técnica do evento e institucional
Produção – Letícia Coura, Roberta Castro, Paula Torrecilha, Camila Montefusco, Henrique Vasques, Guilherme Figueiredo, Alberto Tangará, Paloma Pedroso. Comunicação – Paula Torrecilha e Sylvio Novelli. Concepção e direção geral – Verônica Tamaoki. Realização – Centro de Memória do Circo / Centro Cultural Olido / Secretaria Municipal de Cultura – secretário, Alexandre Youssef; secretário-adjunto, Aldo Luiz Valentim; chefe de Gabinete, Carlota Mingolla. Departamento Teatro e Centros Culturais – coordenação – Pedro Granato. Centro Cultural Galeria Olido – coordenação – Sulla Andreato. Centro de Memória do Circo – coordenação – Verônica Tamaoki.
Clique aqui para ler a respeito da montagem de O Rei da Vela feito pelos Parlapatões
*Jornalista frila, crítica de teatro no Guia da Folha (Folha de S.Paulo) e comentarista de circo