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Cafi Otta e os saberes circenses
Apesar de ficar um tantinho envergonhado, o menino já entra no picadeiro
Cafi Otta, especial para Panis & Circus
No circo tradicional, pais, mães, tios, tias, avôs e avós ensinam às crianças da família aquilo que sabem. Essa deve ser provavelmente a maneira mais comum de transmissão de conhecimento dentro dos circos pelo Brasil afora. Artistas incríveis se formaram dessa maneira, sem nunca terem frequentado uma escola de circo formal. Mas com o advento das escolas de circo a informação se espalhou para fora dos picadeiros, permitindo que pessoas como eu, que não são de famílias circenses, pudessem entrar nesse universo fantástico.
“Quando era criança pequena lá em Barbacena” (bordão imortalizado por Antonio Carlos Pires, o Joselino Barbacena da Escolinha do Professor Raimundo), Minas Gerais, tive a sorte de frequentar muitos circos, desde aqueles bem pequenos, só com pano de roda, até os maiores circos do Brasil na época, como o Circo Garcia – no dia que eu fui, Os trapalhões se apresentaram! Independentemente do tamanho, todos tinham uma coisa em comum: as crianças no picadeiro. Essa lembrança é muito forte até hoje, ver aqueles pequenos artistas sempre sorrindo, felizes por fazer parte do espetáculo, fascinados com os aplausos que arrancavam aos montes do público, que ficava embasbacado com aquelas crianças dependuradas lá nas grimpas, como dizia minha mãe. Lembro também da cara dos pais daquelas crianças, que as exibiam orgulhosos, certos de que o futuro do circo estava garantido, que essa tradição milenar se perpetuaria.
Da plateia para o picadeiro
Quando eu tinha 10 anos de idade minha mãe me sugeriu, na verdade me obrigou, a fazer aulas de circo com um casal de amigos dela. Meio a contragosto eu troquei minhas férias de julho em São Paulo por um mês de aulas com mais um bando de crianças que eu nunca tinha visto na vida. Bastou um dia de aula para eu me apaixonar completamente pelo circo, pelos professores, pelos novos amigos. O que começou como uma imposição de mãe, passou a ser um grande prazer e depois de algum tempo e muito, muito treino, virou profissão. Nas primeiras apresentações pude sentir aquele mesmo prazer que as crianças dos circos sentiam, e minha mãe com certeza sentiu o mesmo orgulho.
Quando soube que teria um filho, logo veio essa sensação de continuidade, uma vontade louca de ensiná-lo a fazer malabares, a andar de monociclo, um desejo de transformá-lo num grande artista, cheio de habilidades, pensando que quanto antes ele começasse melhor para ele, mais chances ele teria de ser melhor que o pai. Os psicólogos chamam isso de projeção, se não me engano. Mas durante a gestação comecei a questionar isso tudo. Será que ele teria vontade de aprender circo? Será que não seria o caso de esperar ele nascer, e quem sabe até crescer um pouco, pra ver o que faria seus olhos brilharem?
Pois bem, ele nasceu, e começou a avalanche de presentes ligados ao circo: roupas bordadas com palhacinhos e ursos malabaristas, quadros de trapezistas, livros às toneladas, sempre com a mesma temática. Estava claro que ele não precisava que o pai o apresentasse ao universo circense. Com o passar do tempo outra coisa ficou bem clara, o circo faria parte da sua vida de qualquer maneira, já que nossa casa tem monociclos pendurados nas paredes, bolas e claves entrando e saindo de sacolas, sapatos de palhaço no armário, figurinos secando no varal, e aquele falta de rotina típica de nós, artistas. Além de tudo isso, ele me acompanhou, e ainda me acompanha, na grande maioria das apresentações, ou seja, sem precisar jogar nada para cima ele já é um especialista nas artes circenses.
Agora, também não caberia a mim proibir o pequeno de aprender algumas coisas, desde que partisse dele esse primeiro impulso, o que aconteceu de maneira muito natural. Desde bem pequeno fazemos pequenos truques de acrobacia em dupla com segunda altura – quando um fica de pé no ombro do outro – pé na cabeça, piruetas e afins. Uma coisa tão natural que nem percebi que estava ensinando circo através das nossas brincadeiras.
Já pro palco moleque, só que não!
Em 2012 criei meu espetáculo solo, “Carlos Felipe em Apuros”, e durante a confecção do figurino, surgiu a ideia de fazer um figurino para ele, igual ao meu. Havia sobrado tecido e a costureira quis fazer um agrado para ele. Assim que ele viu a roupa, perguntou: “eu vou fazer o espetáculo também?”. Respondi que se ele quisesse, poderia fazer sim, mas só se realmente tivesse vontade. Ele disse que estava em dúvida, mas que era melhor ensaiarmos um número caso ele resolvesse se apresentar comigo. Assim o fizemos. Aquelas brincadeiras de pai e filho acabaram ganhando uma sequência relativamente lógica, com leves pitadas de humor, e virou um número, com trilha sonora e tudo. Mas restava a dúvida: será que ele vai fazer?
No dia da estréia do espetáculo, pediu para que eu colocasse o figurino na mochila, só para garantir, mas me disse que ainda não sabia se iria fazer o espetáculo. Faltando alguns minutos para o início veio ao meu ouvido e disse que estava com vergonha, mas também estava com muita vontade de fazer. Daí eu disse uma coisa que continuo dizendo até hoje: “filho, você só deve fazer se quiser realmente fazer, e tem mais, só vai fazer o que você quiser fazer. Se quiser mudar o número, é só falar. Faremos do seu jeito ou não faremos”.
Meia hora depois lá estava ele no palco, ao meu lado, quero dizer, em cima de mim, recebendo aplausos, suspiros e gritos de “fofo” da plateia, enquanto o pai babão olhava cheio de orgulho o surgimento de um artista. Na verdade não sei se ali surgiu um artista, isso quem vai decidir é ele. Ali surgiu um sentimento dentro dele, que vai ajudá-lo a ser uma pessoa melhor, artista, advogado, engenheiro, surfista, enfim, o que quer que o destino reserve para ele.
Antes de escrever este texto eu perguntei a ele o que achava de se apresentar comigo, e veio a resposta: “ah, papai, eu gosto bastante, mas tenho muita vergonha. Mas acho que tá na hora de aprender a fazer malabares e a andar de monociclo. Vamos treinar amanhã?”.
Parece que ele está se divertindo, né!? Ufa.
Postagem – Alyne Albuquerque