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Com acrobacia e com afeto
Beth Nespóli, blog de Circos*
“Balbúrdia é um daqueles espetáculos que provocam o pensamento sobre a permanência da arte milenar do circo no imaginário coletivo. Um trabalho que resgata a associação entre o corpo sublime do acrobata e o ancestral desejo de transcendência inerente ao ser humano. Em sua origem latina sublimis significa o que se eleva, se sustenta no ar, conceito que no caso da dupla de acrobatas Maíra Campos e Daniel Lopes pode ser aplicado no sentido literal e estético, este último como categoria artística que ultrapassa o belo atingindo quase à perfeição.
Tradicionalmente, o espetáculo circense contrapõe o sublime e o grotesco mobilizando em áreas profundas da psique tanto a pulsão vital de ultrapassar os limites do humano, como também o conforto de não estar sozinho na falha (tragicômica) desse intento. Sob direção de Lu Lopes – mais conhecida como palhaça Rubra – Balbúrdia (re)valoriza a expressividade intrínseca às artes do circo que têm o corpo como suporte.
Antes mesmo do espetáculo ter início, chama atenção o modo como estão montados os aparelhos na chamada Praça de Eventos do Sesc Pinheiros, na verdade um espaço bastante acanhado, uma espécie de varanda-passagem entre prédio e rua, cujo único aspecto positivo é o de deixar público e artistas muito próximos. Dois grandes mastros inclinados, cuja angulação remete à sustentação de antigas lonas circulares, servem de suporte para cordas suspensas na vertical. Neles estão presos ainda, na horizontal, rede e arame. Além da harmonia de cores e formas no arranjo dos aparelhos e objetos de cena, entre esses uma pilha de tábuas que desperta curiosidade da plateia, tal cenário deixa evidente a autonomia de deslocamento da trupe, não por acaso autonomeada Companhia Artinerant’s.
Balbúrdia principia contrariando frontalmente o significado de bagunça embutido no título. Maíra e Daniel se revelam exímios acrobatas executando evoluções não apenas com altíssimo grau de destreza e precisão, mas também com a leveza e graça. A resultante da articulação entre aparelhos, figurinos, movimentação e expressividade corporal da dupla atinge aquele grau de beleza capaz de provocar enlevo nas plateias.
Porém o deleite do espectador não advém apenas da expertise de Maíra e Daniel, ainda que tal qualidade seja essencial nessa proposição artística afinada com os princípios mais primordiais da arte circense. Num espetáculo alicerçado em sucessão de números, vale sublinhar a ausência de tempos mortos no intervalo entre eles. Também não há um roteiro de gagues ou trama à guisa de costura. Em vez disso, destaca-se uma dramaturgia sutilíssima, moldada com a matéria dos afetos que atravessam a dupla Maíra e Daniel.
Desde o acrobático número de abertura em que os corpos compartilham a rede suspensa no palco, o vínculo amoroso do casal vem à tona em uma abordagem que tem a sabedoria de privilegiar mais o companheirismo cotidiano, do que o enamoramento, sem desprezar esse último. Primeiro apenas em uma camada subjacente, aos poucos a construção cênica remete à convivência doméstica da dupla, numa sugestão de cotidiano trazida em especial na atitude de descontração dos corpos, cujo efeito é a instauração de um ambiente lúdico no palco.
Assim, em lugar daquele rufar de tambores que valoriza o feito acrobático, é como se a dupla compartilhasse com o público momentos de treinamento e brincadeira. Tal atmosfera, apenas sugerida inicialmente, vai aos poucos se delineando com traços mais fortes, e ganha o campo do humor explícito na reta final da apresentação, quando Daniel faz um trabalho de solda enquanto Maira realiza uma sofisticada e arriscada evolução na corda, lançando faíscas sobre ela. O troco virá no número final, aquele que justifica o título, quando ela, com máscara e gestos desajeitados, irá literalmente destruir o trabalho do partner.
Parte da densidade de Balbúrdia deve-se à pertinência na escolha da trilha sonora que interfere na expressividade dos números sem se sobrepor a eles. Eclética vai do clássico ao jazz passando pela música pop. Entre elas, As quatro estações, de Vivaldi; Sposa son Disprezzatta, de Francesco Gasparini e Preparando o Salto, uma das pescadas no álbum Avante, do brasileiro Siba, pelo visto um compositor caro à dupla.
É possível perceber a importância do papel da direção nesse trabalho, aquele olhar de fora, capaz de potencializar elementos pré-existentes, que poderiam permanecer invisíveis, quando não abafados por um roteiro imposto e inadequado. De certa forma, também nesse aspecto do vínculo afetivo, transmutado em poética da cena em Balbúrdia, essa dupla de artistas se conecta com a tradição, uma vez que as trupes circenses sempre foram unidas por graus de parentesco.
É mais uma fronteira que parece se diluir entre os ancestrais saltimbancos e o chamado Novo Circo, cujos integrantes são formados em escolas, como é o caso de Daniel e Maíra, esta última tendo completado sua formação na Bélgica. Como diria Guimarães Rosa, sapo pula por necessidade, não por boniteza. Maíra foi buscar no exterior o que ainda falta no Brasil: instituições superiores de ensino de circo. Oxalá por pouco tempo.”
*Beth Néspoli é editora, jornalista e crítica.
Beth Néspoli, Kil Abreu, Maria Eugênia Menezes e Welington Andrade acompanharam Circos – Festival Internacional Sesc de Circo em São Paulo. Segundo Néspoli, trata-se de “uma escrita feita em tempo exíguo, mas com forte investimento afetivo, sempre buscando lançar um olhar sobre as obras que possa contribuir com elementos para análise de espectadores e criadores. É o intento, ao menos. Ver A O Lang Pho, por exemplo, um espetáculo vietnamita, foi um maravilhamento, em especial ao perceber pontos de contato entre a cultural brasileira e a de um país geograficamente tão distante. Também foi uma experiência de fruição incrível acompanhar a apresentação de Balbúrdia, da trupe Artinerant’s.”
Abaixo, o link para o blog que traz não apenas as críticas, mas também entrevistas, reportagens, e informações sobre espetáculos e encontros, debates e filmes que integraram o evento.