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Crianças estão se afastando da natureza, diz artista

 

Branca (Helena Cerello) em O Mundo de Hundertwasser / Asa Campos

 

Mônica Rodrigues da Costa, especial para Panis & Circus

 

Helena Cerello, artista e dançarina, com pegada circense, e Raul Barreto, dos Parlapatões, criaram o espetáculo “O Mundo de Hundertwasser”. Helena Cerello é atriz da companhia Le Plat Du Jour –na qual trabalha desde 2009–, das palhaças e atrizes Alexandra Golik e Carla Candiotto. Cerello fundou a própria companhia, a Cia. Va Da Bordo, e decidiu montar com Raul Barretto (com quem é casada e tem dois filhos)  “O Mundo de Hundertwasser”, espetáculo sobre a obra do artista austríaco Friedensreich Hundertwasser (1928-2000).

Esse é o segundo trabalho da nova companhia. A Va Da Bordo montou em 2012 a peça “Il Viaggio”, inspirada no roteiro inédito do Fellini IL VIAGGIO DI G. MASTORNA, segundo a atriz.

 

Cena de O Mundo de Hundertwasser / Asa Campos

 

 

Cerello falou que a ideia de produzir o espetáculo tem seis anos, mas disse que decidiu levá-lo logo ao palco devido às ameaças que o meio ambiente sofre no Brasil:

“O que nos motivou a montar uma peça sobre o Hundertwasser foi a possibilidade de trazer para o teatro a obra de um artista que sempre buscou um mundo de integração entre a natureza e o homem. O roteiro surgiu da necessidade de falar sobre a sensação de que estamos, sem perceber, afastando as nossas crianças da Natureza”.

 

Raul Barreto no papel do herói Hundertwasser / Asa Campos

 

O premiado parlapatão Raul Barretto faz o papel do herói de “O Mundo de Hundertwasserr”, ele interpreta um palhaço poeta e pintor, que pratica malabarismo e ilusionismo, conhece a natureza e a revela para a heroína, a garota Branca, representada pela atriz e dançarina Helena Cerello.

Helena conta que Hundertwasser trabalhava com o desenho das formas na natureza, que são arredondadas, simétricas, casuais. A atriz afirma que Hundertwasser dizia: ‘Conte quantas linhas retas têm a seu redor. Na floresta não há linhas retas.’ Ele não só buscou esse mundo nos seus quadros e obras arquitetônicas, mas também em manifestos e poemas.  

Entrar em contato com eles nos provocou a questionar: ‘Em que mundo queremos viver?’. E a notar que, sim, é possível trazer esse mundo mais orgânico pro nosso cotidiano, não trancando crianças em quadradinhos nem estabelecendo padrões de comportamentos e preconceitos”. 

Raul Barreto disse que o austríaco Hundertwasser tinha alma de palhaço, mesmo sem o artista saber disso. “Talvez não soubesse ou divulgasse, mas a alma do palhaço está impregnada na vida e na obra dele. Aí fica fácil pro palhaço-ator se inspirar nisso e se utilizar dos objetos dele para pintar poesias, brincadeiras, jogos e palhaçadas. E o palco fica impregnado dessas misturas.”

Raul define o artista Hundertwasser: “Sempre digo que é um Gaudí lúdico, atravessado por conceitos premonitórios de sustentabilidade. Um anarquista maravilhoso”.

Raul Barretto é fundador do Espaço Parlapatões em parceria com Hugo Possolo. Desde 2010 coordena o Curso de Humor da SP Escola de Teatro e foi um dos criadores do Circo Roda Brasil, dos grupos Parlapatões e Pia Fraus.

 

Branca (Helena Cerello) se prepara pronta para voar / Asa Campos

 

O motivo que acelerou a estreia para dezembro de 2018 foi, conforme Cerello, foi o contexto do Brasil contemporâneo: “De uns tempos pra cá, diante das mudanças no rumo do nosso país e as ameaças que pairam sobre nosso meio ambiente, resolvemos dar prioridade pro projeto”.

Helena disse que a peça “O Mundo de Hundertwasser” questiona o mundo urbano, carente de espaços lúdicos ao ar livre. “Se é verdade que ‘a gente só cuida daquilo que ama’, será que uma criança que não cresce em contato com a Natureza, só irá se importar com o ambiente quando for tarde demais? E se estivermos todos fadados a viver em uma realidade distópica, sem árvores, sem água, sem os povos originários da floresta que protegem a floresta?”

Foram as brincadeiras infantis da atriz em um corredor no qual ela ia e voltava durante horas que a ajudou a construir o “balé mecânico” de sua personagem.

 

Espetáculo questiona o urbano, carente de espaços lúdicos / Asa Campos

 

“Em uma parte da minha infância morei em apartamento e tenho a lembrança de brincar muito no corredor. Meus pais até insistiam pra sair. Mas eu era tímida e queria ficar. A maior liberdade que eu me permitia era andar de um lado para o outro de patins, e o máximo a que eu me arriscava era descer no play e andar nos corredores apertados do prédio. De algum jeito essa memória se mistura com a personagem e com o desejo que tenho hoje de mais liberdade”, narrou Cerello.

A atriz disse que a  personagem Branca “nasceu da percepção de que muitas crianças hoje estão criadas dentro de apartamentos ou de ambientes fechados, sendo estimuladas apenas por objetos eletrônicos. A pergunta que fica é, que adultos vão se tornar?”. 

 

Quadros de Hundertwasser contracenam com a protagonista / Asa Campos

 

Helena descreve a liberdade e os palhaços representados no espetáculo, inspirados pelo artista Hundertwasser 

“O desejo de ser mais livre nasceu depois que comecei a fazer teatro. Enxergo no palhaço essa liberdade. Esse ser transumano que se mistura com seu entorno de maneira não previsível, e mescla o tempo todo aquilo que faz rir ao mesmo tempo que faz chorar. Ao misturar busca rir do seu ridículo e transformar sua dor em poesia. E ao se permitir rir e chorar livremente, assim como as crianças fazem, cria uma atmosfera onde todos se sentem livres pra isso, e por alguns momentos passamos a viver em um lugar menos competitivo, menos robotizado. Mais humano.” 

 

Pincel que vai dar cor ao quadro branco / Asa Campos

 

“É uma busca. Não acho que é um lugar conquistado, pronto, certo. Estamos sempre sendo testados. Falhando, caindo e levantando. Mas é uma busca interessante. Vejo no Hundertwasser essa busca. Por um não racionalismo, por outro caminho que não o óbvio. Um homem que ousou escrever em Viena do século passado o manifesto da importância do cocô, manifesto do bolor, falou sobre as barreiras do belo, sobre pedreiros e arquitetos terem a mesma importância para a arquitetura, de fato, estava na busca de outros caminhos.”

 

Projeções da obra de Hundertwasser integram Branca às cores / Asa Campos

 

Helena acrescenta ao Panis & Circus que tem o privilégio de conviver nesses últimos 15 anos “com palhaços e palhaços de grupos experientes”. Esses artistas são como uma escola pra mim e grande referência pra minha geração: do Le Plat Du Jour, Parlapatões, Etc. e Tal (RJ), os meninos do La Mínima. Comenta ainda a atriz: “o aprendizado de assistir e assistir de novo de perto o trabalho de grandes palhaços e ter a possibilidade de criar junto, de entender o processo de criação de um palhaço, e de ir procurando esse palhaço dentro da atriz que sou, é muito rico. Principalmente por fazer parte de um grupo de atrizes mulheres palhaças, no caso o Le Plat du Jour.”

Para conhecer mais a obra do artista que é tema do enredo da peça, Helena sugere visitar o site “Hundertwasser.com”. A atriz adianta uma novidade para 2019, fará oficinas artísticas e atividades em espaços abertos com crianças e adultos sobre a obra de Hundertwasser.

  

* Jornalista frila, poeta e professora, doutora em comunicação e semiótica. Crítica de teatro e circo.

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