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Gabeira: “Diálogo com a tesoura”
Fernando Gabeira* – O Estado de S.Paulo
Quando ouço a palavra cultura, saco minha tesoura. É razoável que se pense assim num momento de crise aguda. Não entendo, porém, o fim do Ministério da Cultura.
É preciso que Temer mostre a sua visão para que seja um parâmetro para a crítica. O debate está todo concentrado no financiamento indireto de artistas, como se fosse o único tema.
O patrimônio artístico e histórico do Brasil vive momentos difíceis e ameaçadores. Digo porque trabalho também com ele, visitando de estátuas do Aleijadinho ao sítio de Burle Marx. Pode-se argumentar que nosso patrimônio não tem o mesmo valor do de países mais velhos. Mas é o nosso patrimônio, um fragmento no mosaico da diversidade humana.
Intelectuais como Mário de Andrade percorreram o Brasil colhendo expressões culturais, outros, como Rodrigo Melo Franco, lutaram para que os monumentos fossem preservados e vistos. Na confluência de Estado e cultura, o designer e pintor Aloisio Magalhães trabalhou para inventar um instrumento de gestão que atendesse a todos.
Acabar com o MinC e anexá-lo de novo à Educação, pôr tudo nas mãos de um deputado não familiarizado com o problema, é uma escolha problemática.
A TV estatal tem traço de audiência, dinheiro jogado fora. Por que não fazer dela uma incubadora de pequenas empresas culturais? Isso é só uma possibilidade. Sei que passível de condenação, sob o rótulo de mercantilismo. O mecenato é frágil. Fora do mercado, não há Estado que nos ampare. Ainda mais falido e com grandes problemas sociais.
Existem situações em que o Estado financia um grupo artístico. Mas grupos de reconhecido prestígio cultural, como é o de Pina Bausch, na Alemanha. Os americanos promoveram um tour mundial do Modern Jazz Quartet. Em plena recessão, comissionaram o escritor James Agee e o fotógrafo Walker Evans para produzir um belo livro: Vamos Elogiar o Homem Comum.
Tudo isso é calculado. No caso do Modern Jazz, como exercício do soft power, que também, dentro dos limites, podemos exercitar. No caso do livro, foi uma tentativa de levantar o moral, mostrando a força do homem comum na devastadora crise econômica.
Se o problema for só dinheiro, é preciso lembrar que se pode ter uma estrutura mais ágil e ampliar as parcerias com a iniciativa privada. E com boas ideias, em vez de apenas isenções.
É preciso vir mais devagar. Os novos dirigentes devem perceber que fecharam vários ministérios e só dois deram o que falar: os da Cultura e da Ciência. Espero que não confundam a cultura com um grupo de artistas. Ela envolve também milhares de trabalhadores na indústria e, sobretudo, o afeto de grande parte dos brasileiros.
No Brasil, muita coisa ainda gira em torno desta quase ficção: direita-esquerda. Se acham, por exemplo, que um Ministério da Cultura é algo de esquerda, lembrem-se de André Malraux no governo De Gaulle. Embora tenha lutado na Guerra Civil Espanhola, não era de esquerda. De Gaulle, muito menos.
José Serra assumiu a política externa. A cultura tem um papel econômico e simbólico em nossa relação com o mundo. Não conheço sua opinião, mas seria interessante saber como, para ele, cultura e política externa se entrelaçam, que instrumento é o adequado para o governo.
Por favor, saquem a sua tesoura, mas também algumas ideias. Não comecem cortando no pescoço.
*Fernando Gabeira é jornalista