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“Sou um palhaço que ganhou o Nobel”
Ele morreu aos 90 anos, em 13/10, em Milão.
Ivy Fernandes, de Roma
Na cidade de Milão, o mundo cultural, artístico, político e institucional prestou homenagem a Dario Fo na sexta-feira 14/10, no foyer do Teatro Piccolo, local em que Fo festejou, em março, os seus 90 anos.
Seu filho Jacopo, poucas horas depois da morte do pai, afirmou: “agora, muitos, indevidamente, estão prontos a desfilar e a prestar homenagens. Mas, meus pais sofreram injustiças ímpares: foram perseguidos, ameaçados, afastados, censurados e passaram por enormes dificuldades. Meu pai superou tudo e marcou por 70 anos a vida cultural do país.”
A homenagem bem-vinda de seus inúmeros e queridos admiradores aconteceu no sábado 15/10: uma cerimônia laica no seu palco favorito – a grande praça da Catedral de Milão, Piazza Duomo, que reuniu mais de 7 mil pessoas, e foi transmitida pela TV italiana Raí e durou 40 minutos. Apesar da chuva e do vento, o público permaneceu na praça, literalmente, coberta por guarda-chuvas coloridos, para dar adeus ao inesquecível palhaço e dramaturgo.
Durante o funeral, Jacopo Fo, seu único filho, chorou e se disse comovido com a presença de tantos admiradores fiéis à arte de seu pai. Ele não deixou também de homenagear o humor de Dario Fo traduzida na frase de irreverência religiosa: “Deus é uma fantástica invenção criada por ele mesmo”.
Até o arcebispo de Milão, o austero cardeal Scola, se rendeu a arte de Fo, e cedeu o espaço da Catedral para a que fosse realizada a cerimônia lacaia em homenagem a um homem que sempre proferiu sua fé no ateísmo.
O acompanhamento musical da cerimônia teve toques mágicos que flertaram com o surrealismo. A “Banda de gli Ottone”, um grupo mambembe com capas plásticas pretas, tocou com seus trombones e sax, em estilo de balada, a canção famosa da esquerda européia, ‘Bella Ciao’ – e se foi um dos momentos mais comoventes da cerimônia – espécie de cortejo circense a acompanhar Dario Fo em sua última viagem.
A notícia do seu falecimento, na manhã de quinta-feira 13/10, no hospital Sacco, de Milão, provocou um curto- circuito nos ambientes culturais e nas redações do mundo inteiro.
A Prefeitura de Milão informou que o nome de Dario Fo vai ser dado ao Palácio Liberty, que foi palco de seu grupo teatral “La Comune”, entre 1974 e 1980.
Em sua última entrevista para a TV Raí, Canal 3, há um mês, Dario Fo sintetizava as encruzilhadas de sua vida extraordinária ao afirmar:
“Não estava nos meus planos chegar aos 90 anos, mas estou contente por ainda estar aqui. Não penso na morte, ou melhor, evito pensar, vivo com equilíbrio e trabalho constantemente. Não sou religioso, não acredito no paraíso, na vida depois da vida, mas continuo a me surpreender com as coisas mais simples e maravilhosas, como o céu azul, o sol, o vento, o mar, a música e as obras de arte. Poder ver e apreciar tudo isso é estar no paraíso. Eu fui premiado: sou uma pessoa freneticamente ativa, com energia e fúria para me dedicar a realizar várias coisas e de inventar e reinventar a minha própria vida. Esse frenesi de fazer, realizar, montar, desmontar, criar, recriar, se jogar dentro da vida, literalmente, me acompanhou sempre. Uma energia quase elétrica que eu, na verdade, nunca soube de onde vinha. Fui um homem de sorte e sempre dizia a Franca (a atriz Franca Rame, sua mulher) que nós dois vivemos mais de três vidas, num eterno caleidoscópio”.
Na porta de sua casa em Milão, a frase do pintor Matisse: “não se pode evitar o envelhecer mas sim o se tornar velho.”
Essa sua forma compulsiva de interpretar a vida como a eterna construção e reconstrução o acompanhou até a morte. Tão logo se sentiu melhor – após ter dado entrada no hospital, com dificuldade respiratória, doze dias atrás – ele começou a pintar um quadro diretamente na parede do quarto em que estava internado.
A direção do hospital, rigorosa sobre o horário das visitas, decidiu liberar a entrada, tal o número de pedidos de parentes, amigos e colegas para visitar Dario Fo.
O falecimento de Dario Fo causou grande impacto não apenas na Itália, mas, no mundo inteiro.
Possolo: Humor de Fo para enfrentar o fascismo cotidiano do País
Em seu artigo na Folha de S.Paulo, em 14/10, Hugo Possolo, palhaço, dramaturgo e diretor do grupo Parlapatões, escreve: “no mundo que retrocede onde a estupidez conservadora à direita chega a ser considerada produção de pensamento, a perda de Dario Fo é ainda mais dura. Mas como ele não cederemos. Não ficaremos sem sua obra dramatúrgica nem sem suas importantes reflexões sobre o ator cômico e, principalmente, não ficaremos sem seus ensinamentos de como enfrentar com humor, esse fascismo cotidiano que anda tão cheio de si.”
E acrescenta: “Fo não subia ao palco para se exibir, mas para dividir sua visão de mundo e assim ríamos de nossas misérias.
Minha memória guarda “A Tigresa”, com Maurice Vaneau; Osmar Prado se fazendo em mil em “O Fabuloso Obsceno” e meus amigos Fernando Sampaio e Domingos Montagner me fazendo gargalhar em “Misterio Buffo”.
São peças que reforçaram a potência do humor ao interferir no pensamento de uma sociedade retrógrada.”
Clique aqui e leia a íntegra do texto de Possolo.
Menezes: “Misterio Buffo e a verve dos palhaços Domingos Montagner e Fernando Sampaio”
Maria Eugênia de Menezes, crítica de teatro, em seu artigo no Estadão, em 14/10, destaca em Dario Fo “a sátira social, a ironia mais cortante, o riso como forma de subversão. Vencedor do Nobel de Literatura, em 1977, e o maior nome do teatro recente de seu país, o italiano Dario Fo valia-se da gargalhada como meio e como método para chegar ao que lhe interessava: a verdade. Morto nessa quinta-feira, em Milão, onde estava internado, o escritor de 90 anos encontrou na alegoria a forma de expressar as contradições que tanto o incomodavam: os absurdos da política, o ridículo da religião, a face patética e prepotente de líderes recentes como Sílvio Berlusconi, que ele transformou em tema do espetáculo O Anômalo Bicéfalo.
“Eu sou um palhaço que ganhou o Nobel”, comprazia-se em dizer.
“Escreveu cerca de cem obras teatrais, além de inúmeros livros. Em muitos deles, contou com a colaboração da atriz Francis Rame, sua mulher e parceira de cena, morta em 2013. Casados desde 1954, dividiam a militância pelo teatro e pela política e, juntos, escreveram a autobiografia Una Vitta all´Improvvisa”. (…)
Clique aqui para ler a análise de Maria Eugênia de Menezes.
Misterio Buffo, considerada a peça de Dario Fo mais famosa, coloca em cena uma linguagem medieval e revolucionária, ou seja, a mistura da língua falada na Padana, região do norte da Itália, com o “Grammelot”, linguagem arcaica e ao mesmo tempo contemporânea relacionada a gestos e mímica.
História de Dario Fo
Dario Fo nasceu em março de 1926 na cidadezinha de Sangiano, no norte da Itália, perto do “Lago Maggiore” – lá ele dizia ter crescido entre pescadores, pecadores e contrabandistas.
Filho de um ferroviário, decidiu muito jovem mudar para Milão para estudar na Academia de Belas Artes de Brera. Depois, entrou na Faculdade de Arquitetura. Com menos de 20 anos, abandonou os estudos para tentar a vida artística e passou a ser apresentar, gratuitamente, em bares e restaurantes.
Dario Fo se identificou imediatamente com o público e descobriu que tinha o dom da comunicação – a chave de toda a sua carreira artística. Desde o início de sua carreira, a sátira social esteve presente. No começo dos anos 50, encontrou a atriz Franca Rame, com quem formaria uma parceria na vida conjugal e artística. O amor dos dois durou a vida inteira e atravessou fases muito difíceis: humilhações, invejas, calúnias, falsidades, até mesmo o estrupo (de Franca) e a prisão do casal por desacato à autoridade na Sardenha.
Envolvidos com a política, casaram-se em 1954 e o único filho do casal, Jacopo Fo, nasceu um ano depois.
Em 1959, criaram a companhia teatral (Dario Fo-Franca Rame) e, em 1963, conseguiram um contrato com a televisão estatal italiana Raí TV – única rede naquele período. Mas não durou muito: foram despedidos por não aceitarem censura do texto e a “linha política adotada pela empresa que não compartilhavam”.
Começou um duro período: as portas da TV e dos teatros foram fechadas para eles. E aí Fo, sempre pronto a tirar o coelho da cartola, passou a se exibir nas praças públicas. E descobriu nova dimensão da sua arte. Era livre. Seu teatro e sua literatura traçam o retrato de um homem livre.
Dor profunda
Ligados à esquerda, em 9 março de 1973, passaram por um trauma que marcou a vida do casal para sempre. Franca Rame foi violentada por cinco agressores fascistas por horas. Acabou no hospital. Esse capítulo, dos mais trágicos da vida de Dario e Franca, foi transformado em peça teatral.
A Itália, muitas vezes injusta com seus filhos mais célebres, acabou por reconhecer o grande valor artístico, cultural e social de Dario Fo. Mas, alguns setores da política e da cultura ainda são reticentes sobre a dimensão de sua arte. Continuam a criticar sua mudança de partido político. Nos últimos anos, Fo se colocou ao lado do Movimento de Beppe Grillo, Cinco Estrelas, e o PD, partido de esquerda, não aceitou a mudança.
No mesmo dia da morte de Dario Fo, Nobel de Literatura em 1997, Bob Dylan ganhava o prêmio Nobel de Literatura de 2016. A capa do La Repubblica sintetiza a arte em dose dupla.
Tradução da entrevista de Dario Fo dada ao Fanpage, em março de 2016 (vídeo acima)
Caros amigos do Fanpage.
Hoje completo 90 anos e tem uma frase que sempre me acompanhou desde que eu era criança: “se você não sabe de ontem vem não saberá onde quer chegar”.
Nasci nos arredores do Lago Maggiore e tive a sorte de encontrar um grupo de garotos com quem brincava que era proveniente de diversos países – especialmente do sul da Europa. De qualquer forma, nós tentávamos nos comunicar com palavras novas e não apenas por meio de gestos. Criávamos sons como ‘patratac’ que significava cair, romper. Isso foi fundamental para o meu futuro porque verifiquei que a comunicação não se baseava apenas em gestos mas em outros movimentos e sons – simples, diretos e essenciais.
Fala de Franca Rame, sua mulher:
Naquela época éramos ambos muito jovens e ela era muito bonita e muito cortejada. Nunca pensei que teria uma chance e me consolava afirmando a mim mesmo: ‘não é para você, deixa para lá’. Nós trabalhávamos no mesmo teatro e um dia, atrás das cortinas, ela se aproximou e me beijou. Ali começou tudo, e foi ela quem tomou a decisão.
Vejo Franca, nos meus sonhos, sempre jovem e sorridente, repetindo frases: ‘não procure o sucesso a qualquer preço’.
É verdade que ganhei o Nobel, mas, às vezes, me esqueço e só me lembro quando alguém diz: ‘não é sempre que se pode conhecer um ganhador do Nobel’.
Fala sobre os jovens e a falta de emprego para eles
São milhares de jovens que não encontram trabalho. Não é verdade que são preguiçosos e não têm vontade de trabalhar. Isto inventaram os velhos e os mentirosos. Estudem, digo, o conhecimento é a chave para o futuro trabalho.
Equipe do Fanpage: Maestro, o que lhe provoca o maior medo? (paura)
Dario Fo: Não é um jogo de palavras, mas tenho medo do medo. Do medo dos desesperados usado pelo rádio e TV com a desculpa de dar a palavra (entrevistar) a eles – na realidade, utilizam as desgraças dos outros em suas transmissões e ganham com isso, o que é horrível. Mas não é novo, porque os antigos romanos já diziam: ‘me dê um inimigo e eu o farei um imperador’.
Não creio na vida futura, no eterno, no paraíso, sou um ateu rigoroso. Amo muitíssimo a vida e repito uma canção que diz: ‘me desagrada morrer’ (mi dispiace morrire).
Os jovens me exaltam e sempre dizem: ‘vá em frente e nos faça rir’.
Dario Fo, no final do vídeo, fala em ‘gramelot’ – uma língua cheia de sons criada por ele
Postagem – Alyne Albuquerque