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Governos são os principais agentes da censura
Por André Miranda, de O Globo
No embate entre liberdade de expressão e controle político, é difícil encontrar uma história mais cheia de significados do que a vivida pela cubana Tania Bruguera no ano passado. Artista performática reconhecida internacionalmente, Tania já lecionou nas universidades de Chicago e de Veneza e tem entre suas conquistas uma bolsa da Fundação Guggenheim. Porém, em dezembro de 2014, ela estava em Havana, visitando sua família, na mesma época em que os governos de EUA e Cuba anunciaram que reatariam relações diplomáticas. Foi aí que Tania teve uma ideia que a marcou pelos oito meses seguintes.
A artista programou, para 30 de dezembro daquele ano, a performance ‘‘Tatlin’s whisper #6’’, em que instalaria um microfone na Praça da Revolução, em Havana, permitindo que as pessoas expressassem seus pensamentos sobre o futuro do país. Mas nada disso foi possível: na madrugada, a polícia cubana foi à casa de Tania e a levou para interrogatório. Ela foi detida, teve seu passaporte apreendido e só pôde deixar Cuba em agosto de 2015.
— A obra não tinha uma matiz política específica, as pessoas poderiam ser a favor ou contra. Para a minha arte, não fazia diferença — conta Tania.
Hoje a artista está em Nova York e trabalha nos preparativos para o lançamento de seu Instituto Internacional de Artevismo Hannah Arendt, um órgão que será sediado em Havana para incentivar projetos artísticos e cuja inauguração é esperada para setembro:
— Eu já tinha apresentado a mesma performance na Bienal de Havana, em 2009, e senti os efeitos: não era autorizada mais a expor em Cuba. Eles até me proibiram de entrar no Instituto Superior de Arte (ISA), onde estudei e fui professora por dez anos.
No relatório ‘‘Arte sob ameaça’’, apresentado esta semana pela organização internacional Freemuse, não só Cuba aparece numa incômoda posição de destaque, como a ação de governos para calar críticos é descrita como o principal motor de censura à arte em 2015. Ao lado de Cuba, países como China, Irã, Rússia e Egito são vistos como exemplos de Estados cujas autoridades tentam limitar a liberdade criativa.
DOCUMENTO FOI ASSINADO POR 53 DOS 197 PAÍSES
O problema ficou mais evidente em setembro, na 30 Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, quando foi preparada uma declaração conjunta pela liberdade de expressão nas artes. O documento, contudo, só foi assinado por 53 dos 193 países que integram as Nações Unidas — outros quatro referendaram o texto mais tarde, elevando o número para 57. Os estados citados acima, mais Argentina, Venezuela, Bolívia, Índia e Marrocos foram alguns dos que ficaram de fora. Já entre os signatários estiveram Brasil, Alemanha, Portugal, Estados Unidos, França, Israel e Uruguai.
A declaração da ONU cita as obras sobre guerra de nomes como Pablo Picasso e Wilfred Owen, lembra a luta de artistas nas ditaduras da América Latina nas décadas de 1970 e 1980, e ratifica que ‘‘as reações a trabalhos artísticos controversos devem ser expressas através do diálogo, não da violência’’.
— Em estados autoritários, a luta de artistas por direitos humanos e Justiça será sempre presente — afirma a britânica Julia Farrington, diretora de campanhas do grupo teatral Belarus Free Theatre e também produtora associada da Index on Censorship, organização com sede em Londres que busca promover a liberdade de expressão na mídia e nas artes.
O Belarus Free Theatre é um exemplo dos efeitos da perseguição política. O grupo surgiu na Bielorrúsia em 2005, com um primeiro espetáculo intitulado ‘‘4.48 Psychosis’’, sobre doenças mentais e suicídios. Logo de cara, a apresentação foi proibida em teatros administrados pelo governo, porque, para o presidente Alexander Lukashenko, no poder há mais de 30 anos, não haveria distúrbios mentais na Bielorrússia e a encenação poderia trazer consequências negativas para a cabeça do povo.
É claro que o grupo não respeitou muito a decisão e levou a peça para bares e palcos independentes. Mas não sem consequências.
— Eles se mantiveram fora da máquina do Estado, o que na prática os tornou ilegais. Tiveram, então, que deixar a Bielorrússia para se refugiar na Inglaterra, mas seguem se apresentando escondidos, avisando seu público através de mídias sociais poucas horas antes do início dos espetáculos — explica Julia.
Ali ao lado, na vizinha Rússia, os ares das artes não são menos abafados, como vem sentindo desde 2012 o grupo punk Pussy Riot. Crítica ao presidente Vladimir Putin e às tradições conservadoras russas, a banda teve três de suas integrantes presas e processadas depois de um show de protesto dentro de uma catedral ortodoxa, sem aprovação das autoridades. O caso incentivou manifestações contra o governo russo em Moscou e embaixadas no exterior, mas ainda assim elas foram condenadas. As Pussy Riots saíram da prisão apenas no fim de 2013, por uma anistia, mas até hoje sofrem perseguições de grupos ligados a Putin.
Mais ao oriente, também reverberou com força a perseguição política promovida pelo governo chinês contra Ai Weiwei. O artista multimídia está hoje em Berlim, mas durante anos foi proibido de deixar a China e chegou a ser preso. O governo insistiu que a motivação para a prisão não teve relação com a arte crítica de Weiwei, mas sim com sonegação fiscal. Num país cujas autoridades baniram 120 músicas por ‘‘imoralidade’’ em 2015, sendo 17 delas de um único grupo de rap — o IN3 —, ninguém acreditou.
— Em situações de censura política, podemos seguir o caminho da pressão internacional para que algum artista seja solto. Mas alguns governos, como o da China, não estão nem aí — diz Ole Reitov, diretor executivo da Freemuse.
Reitov lembra, ainda, que ao menos na Europa é possível levar os países que violem a liberdade de expressão à Corte de Direitos Humanos do continente. Em março do ano passado, o órgão condenou a Turquia a pagar 4.250 euros por ter prendido o cantor Ferhat Tunç durante três meses. O delito de Tunç foi criticar o governo turco durante um show. Só que a prisão do artista ocorreu em 2003, e o processo na Corte Europeia foi aberto em 2005. Foram necessários, portanto, mais de dez anos para que se fizesse Justiça.
O DILEMA DOS ARTISTAS IRANIANOS
Em todos esses casos, o grande problema é a dificuldade em se garantir a Justiça quando o inimigo é um governo com todo sua influência à disposição. A poeta iraniana Hila Sedighi foi detida no aeroporto de Teerã, ao voltar de uma viagem, no último dia 7 de janeiro. Segundo seu relato, não lhe foi informado o motivo da prisão, mas ela acredita que foi preponderante o fato de ter ganho fama ao recitar poemas políticos em público nos meses dos protestos contra o então presidente Mahmoud Ahmadinejad, entre 2009 e 2010.
— A arte se tornou uma forma de expressão importantíssima para os jovens iranianos, e isso faz com que aumente a tentativa de controle do governo — avalia Hadi Ghaemi, diretor executivo da organização Campanha Internacional para os Direitos Humanos no Irã. — Da forma como as coisas são feitas hoje, ou os artistas iranianos se apresentam em locais escondidos, ou deixam o país.