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“Lá Mínima, El Máximo”
O jornalista e escritor, Oscar Pilagallo, comenta “La Mínima em cena”, livro que descreve o trabalho de Fernando Sampaio e Domingos Montagner
Oscar Pilagallo, especial para Panis & Circus*
Certo dia, em 1997, o dramaturgo Naum Alves de Souza, assistiu a uma apresentação circense de Domingos Montagner e Fernando Sampaio em São Paulo. Gostou tanto que os convidou para participar de um projeto de variedade que ele iria dirigir. A dupla ensaiou um número, com dança, acrobacia e um humor sem palavras, mas não se preocupou em lhe dar um nome. Naum precisava se referir ao trabalho de alguma maneira, e, dada a natureza do espetáculo, resolveu cravar “La Mínima Cia de Ballet”. Ele ainda não sabia, mas estava batizando um das mais criativas formações circenses brasileiras da virada do século.
Por que o trabalho de Domingos e Fernando se destaca na cena do novo circo?
O segredo da dupla é transformar o picadeiro em palco — e vice-versa. Para Mario Fernando Bolognesi, pesquisador dessa arte, os dois ambientes exigem interpretações diferenciadas. “No circo, a dimensão espacial demanda um alargamento dos gestos e dos movimentos, e induz a uma síntese interpretativa que condensa e alinha palavras e ação.” Tais características aproximam a plateia do jogo cênico e interferem no desenrolar do ato, estimulando a improvisação. Já o espaço teatral coloca a plateia na obscuridade e induz o público a se portar como apreciador de um produto artístico acabado. Para Bolognesi, o diferencial de Domingos e Fernando é que eles conseguem bom desempenho em ambas as situações.
Apesar das aparências, não há nada de ingênuo do trabalho da dupla. Eles criaram tipos que “operam dialeticamente por antagonismo e complementariedade”, explica Bolognesi na introdução do livro “La Mínima em Cena”, um registro do repertório das apresentações dos dois entre 1997 e 2012. “Domingos, o Branco, o escada, o clown, é o anteparo sóbrio, portador da razão, da ordem, da disciplina, da autoridade que quer se impor ao Augusto. Fernando, o Augusto, o cômico, o Tony, o bobo, insensato, desordeiro, indisciplinado, avesso à autoridade não se curva e aproveita das situações e limites que o parceiro lhe oferece para demonstrar toda a grandeza da ingenuidade, da brincadeira, da irreverência, que as aparente desrazão não consegue cumprir.”
“La Mínima em Cena” cataloga quinze apresentações nos quinze anos de vida da dupla, da primeira, que lhes deu o nome, à de 2012, “Mistero Buffo”, baseada em um texto do escritor, ator e dramaturgo italiano Dario Fo. São monólogos — travados à maneira dos jograis da Idade Média e adaptados à linguagem dos palhaços — que funcionam como parábolas do comportamento de quem exerce ou está submetido ao poder.
Oriundos do Circo Escola Picadeiro (naquela lona que por anos ficou armada na avenida Cidade Jardim, em São Paulo), Domingos e Fernando mostraram ser craques na adaptação de linguagens. O que fizeram com o texto de Fo é apenas um exemplo. Outro exemplo é o trabalho em parceria com o cartunista Laerte, com quem fizeram “Luna Parke”, “Piratas do Tietê, o Filme” e “A Noite dos Palhaços Mudos”. Sobre a conhecida tira “Piratas do Tietê”, diz Laerte: “A construção dos personagens pelos atores me deu outra dimensão deles, com a qual enriqueci minhas tiras. Ver meu trabalho […] se transfigurar em outro, onde a base é o tempo e onde nada se realiza sem o trabalho coletivo, é uma revelação”.
Para quem ainda não conhece o trabalho da dupla, eles dão uma palinha no YouTube. Não é muito, mas é o suficiente para concordar com Bolognesi: “La Mínima é o máximo”.
* Oscar Pilagallo é jornalista e escritor. Autor de “A história do Brasil no século 20”, em cinco volumes, “Brasil em Sobressalto”, “História da Imprensa Paulista” e “O Golpe de 64” – história em quadrinhos, entre outros.
A obra:
“La Mínima em Cena”
Coordenação Editorial: Maíra Ramos
Editora Sesi-SP (São Paulo, 2012)
192 páginas.