Pé na Estrada
“La Verità” mostra um Salvador Dalí acrobático
“A Verdade” que emociona
Bell Bacampos
Os palhaços anunciam para o respeitável público o leilão de um pintor “famosíssimo”, o “Francisco David”. O dinheiro arrecadado com a tela, acrescentam, será destinado à construção de um “asilo” para abrigar “decrépitos” artistas de circo, balé e teatro.
A fala do palhaço leiloeiro é irreverente e a sonorista troca de nomes – Francisco David no lugar de Salvador Dalí (1904-1989) – tem toques surreais: o pintor famosíssimo é Salvador Dalí, não é Francisco David, um ilustre desconhecido. A tela anunciada no leilão é nada mais, nada menos a que traz as figuras dos amantes Tristão e Isolda, pintada por Dalí, para servir de cenário a “Tristan Fou”, balé exibido na cidade de Nova York em 1944.
Em 2013, essa tela original, de 15 metros de largura por 9 metros de altura, do pintor surrealista Dalí, é usada como cenário e inspiração, em “La Verità”, espetáculo que mistura elementos de circo, teatro e balé para contar a história do leilão da obra, mas ele nunca acontece.
No palco, um primeiro impacto visual: estar diante da pintura original do mestre catalão. Embora “La Verità” não conte nenhuma história sobre Dalí, as referências às obras do artista aparecem no espetáculo.
Rinoceronte vestido com renda
As muletas presentes em quadros de Salvador Dalí são usadas em um balé acrobático. Elas estão ali mesmo no painel de “Tristão e Isolda”. Os cactos, frequentes na obra do pintor catalão, aparecem em “La Verità” em um número cômico e de equilíbrio. A flor de “Cactus” está em cena tanto no cenário quanto nas mãos da trupe.
A cabeça de um touro está acoplada a um carrinho de mão que forma o corpo do animal – o objeto está retratado no painel de “Tristão e Isolda” – em uma tourada imaginária. Pesquisadores contam que Salvador Dalí não apreciava o esporte sangrento.
Os rinocerontes fascinavam o pintor catalão e formam a cabeça de integrantes da trupe. Os bichos estão em uma das mais famosas esculturas de Dalí, que pesa quase três toneladas, o “Rinoceronte Vestido com Puntillas” (renda), de 1956.
Asas nos pés
As formas geométricas do pintor catalão transformam-se em aparelhos circenses para números aéreos que proporcionam voos acrobáticos no palco. O encenador e diretor de “La Verità”, Daniele Finzi Pasca, gosta de dar asas aos pés e afirma que “o corpo está grudado no chão” e, por isso, é preciso “dançar gestos que nos fazem voar”.
No palco, Pasca mistura o lírico e o estranho. É o caso do contorcionista paraguaio Felix Salas e de sua acompanhante inanimada: uma grande boneca que ganha movimentos por meio da articulação de três títeres vestidos de preto e com os rostos cobertos. O público não espera que Salas faça o que faz com o corpo, que parece não ter ossos. Seu contorcionismo é surreal.
As tiradas surrealistas de Finzi Pasca são sucessivas: é o caso de um artista circense careca, vestido com o traje vermelho de uma bailarina com saia de tule – ele faz malabarismo com pequenas bolas brancas na companhia de um pierrô.
Ou o número do cancã que mistura homens e mulheres com o mesmo traje e que coreografam os mesmos passos, como o de pernas para o alto e de costas para o público mostrando os fundilhos rendados no conhecido balé dos cabarés franceses.
Em cena que parece misturar o sonho de Finzi e Dalí, uma figura de branco aparece e faz movimentos com um tecido preso nos seus braços como se fossem duas grandes asas. De cada uma de suas asas surge um palhaço. Eles trocam de roupa num piscar de olhos, como no tradicional número circense “Quick Dressing”, ou melhor, eles surgem com novos trajes a cada batida de asas do grande pássaro branco.
Sinfonia com taças
A poesia e a delicadeza também entram em cena no caso de uma sinfonia tocada a partir de taças (de vidro ou cristal). Ao intercalar sombras e efeitos de iluminação, o diretor Daniele Finzi Pasca cria belas imagens.
“Os dois têm gogó”
Os atores acrobatas realizam movimentos impressionantes com arcos, barras, varas, bolas, laços e roldanas e são constantemente aplaudidos. Os palhaços também arrancam risos quando evocam a cultura popular brasileira como a canção “Assim Você me Mata”, de Michel Teló. Ou quando fazem referência a problemas políticos. Eles repetem em cena o refrão “o povo acordou”, que tomou as ruas de São Paulo no mês de junho de 2013. Será que acordou mesmo?
Diante do painel de Salvador Dalí, os palhaços tentam adivinhar qual é a figura feminina já que os dois personagens têm gogó – pomo de Adão. A dupla brinca com a ambiguidade sexual dos amantes.
Próprio do universo circense, o espetáculo não tem uma história com princípio, meio e fim bem delineados. Os palhaços escalados para leiloar a tela são também os responsáveis por ligar o público ao trabalho de Dalí, assim como aos demais números da peça.
Não existe uma organização linear para a narrativa da montagem. “E isso se encaixa perfeitamente à própria lógica do surrealismo”, ressalta o diretor, encenador e palhaço (clown) Daniele Finzi Pasca. “O sonho, que é umas das formas mais poderosas de nos comunicarmos com nós mesmos, também não é linear.”
Sua intenção, admite o encenador, é construir um espetáculo que provoque mais pela emoção.
E “La Verità Va”. A verdade que emociona.
Turnê
“La Verità” estreou em janeiro em Montreal, no Canadá, passou por Montevidéu, no Uruguai, e em sua temporada nacional por Curitiba, Porto Alegre, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo, em junho, julho e agosto. Vai circular por mais oito países na América Latina e Europa até março de 2014.
A tela do espetáculo
Criado por Salvador Dalí em 1944, o painel foi desenhado sob medida para ocupar o palco do Metropolitan Opera de Nova York destinado à encenação do balé “Tristan Fou”, cuja coreografia, criada por Leonide Massine, tomava como inspiração a ópera “Tristão e Isolda”, de Wagner — composição que acabou dando nome também à tela.
“É uma obra criada para estabelecer um tipo específico de inter-relação com o espectador, foi pensada para ocupar as dimensões de uma caixa cênica”, diz Finzi Pasca ao jornal “O Globo”.
Descoberta em 2010 por uma fundação de arte europeia após estar desaparecida durante décadas, a tela foi oferecida à companhia de Finzi Pasca para que desenvolvesse um trabalho artístico inédito.
A montagem requer pelo menos dez profissionais para o transporte da tela e sua colocação no palco. Um deles tem a função exclusiva de observar as condições de conservação da pintura.
Verdade e mentira
“La Veritá”, “a verdade” em italiano, é uma pista para quem pretende desvendar parte do mistério da criação na trajetória de Finzi Pasca. É que a verdade e mentira são aspectos importantes para o grupo e surgem ainda mais embaralhados em “La Verità”.
“Se tomarmos a física contemporânea, percebemos que tudo aquilo que tomamos como verdadeiro pode ser discutido de outra forma”, diz o diretor, encenador e palhaço (clown) Daniele Finzi Pasca. “No teatro, um ator não pode morrer em cena porque a morte verdadeira é outra. A gente representa e a representação é, às vezes, mais forte do que a verdade propriamente dita.”
Diretor, encenador e palhaço
Nascido em Lugano, cidade ao sul da Suíça, onde se fala o italiano, Daniele Finzi Pasca estudou artes circenses.
Tornou-se conhecido por sua vocação para criar plasticidade cênica. Sua linguagem mescla circo, teatro e dança. Ele traz no currículo realizações que combinam arte e entretenimento e foram premiadas e bem-sucedidas comercialmente. É o caso de “Rain” (2003), que consagrou o diretor com o prêmio Drama Desk, em Nova York; de “Corteo” (2005), desenvolvido para o Cirque du Soleil; e “Donka” (2009), encomendado pelo International Chekhov Festival, de Moscou.
“Continuo a me surpreender com convites tão diversos, com a crença dos outros de que sou a pessoa certa. Não falo nada, porque fico encantado com as possibilidades que me oferecem. Mas espero o dia em que vão se dar conta de que não estavam procurando a mim”, brinca em entrevista à mídia brasileira.
Para o ano que vem, o diretor, encenador e palhaço tem outra encomenda de fôlego: duas cerimônias dos Jogos Olímpicos de Inverno na Rússia.
Elenco
No espetáculo, ao longo de duas horas e 30 minutos, os artistas de formações diversas se revezam em apresentações áreas e terrestres. Entre uma e outra cena, os irreverentes mestres de cerimônia acrescentam graça ao que poderia ter um tom sério. No elenco, há atores do Canadá, Argentina, França, Itália, Austrália, Espanha, Paraguai, Suíça e Brasil.
A única brasileira em “La Verità” é Beatriz Sayad. A atriz é antiga parceira de Daniele Finzi Pasca. Durante oito anos esteve envolvida com o Teatro Sunil – outro projeto do diretor. Em 2010, participou da turnê mundial de “Donka”. “O jogo que ele [Danielle Finzi Pasca] cria com os clowns é justamente uma maneira de dessacralizar a relação com a tela de Dalí”, afirma Beatriz Sayad.
Fotos: Divulgação
Postagem: Alyne Albuquerque