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“Confissões e Cozinha”: preparação de pratos em meio a acrobacias
Ivy Fernandes, de Roma
É fantástico e original o novo espetáculo “Confissões e Cozinha” do grupo canadense Les 7 Doigts de la main em turnê na Europa. No momento, eles estão em Cannes e vão percorrer a França e depois seguir na primavera europeia (março a junho) para a Hungria. E no verão (junho a setembro) atravessam o Atlântico para uma longa turnê nos Estados Unidos – que começa por Boston.
No final do ano passado, o grupo apresentou-se em Roma, no Teatro Brancaccio, com lotação esgotada para todos os espetáculos (de 25 a 29/11/2015), dentro do RomaEuropa Festival. A exemplo do Cirque du Soleil, a companhia Les 7 doigts de la main também nasceu e cresceu no Canadá, em Québec, e se tornou um dos grupos de grande destaque ao misturar as artes circenses (equilibrismo, malabarismo e acrobacias) com teatro, música e dança.
Participou dos espetáculos de aberturas de três edições dos Jogos Olímpicos de Inverno: em Turim, em 2006, em Vancouver, em 2010 e em Socchi, na Rússia, em 2014.
Acrobacia do cotidiano
A característica principal do grupo “é criar um circo que busca retratar os sentimentos, as relações pessoais que permeiam as cenas cotidianas. Eles dançam e fazem acrobacias e mostram fases da vida de cada um – nem sempre rosa nem sempre cinzenta”. Nessa linha está “Cuisine & Confessions”, criado por Shana Carroll e Sébastien Soldevila. Trata-se de um espetáculo dos mais surpreendentes da cena internacional. Um misto de circo-teatro com nove integrantes (13 no total, se houver necessidade de substituições) provenientes de várias artes: circo, teatro, música, ginástica e dança. E são de diferentes nacionalidades: Argentina, Canadá, Rússia, Estados Unidos, França, Chile e Espanha. Eles relatam ao público as experiências pessoais que passaram em sua vida artística e emotiva.
As “Confissões” são envolvidas com números aéreos e acrobáticos, em tecido e mastro chinês, ao som de canções e recordações de sabores e odores gastronômicos dos países de origem dos artistas.
Les 7 Doigts de la main carrega a determinação de criar um circo singular – autoral – desde a sua criação em 2002. E de acordo com seus princípios, derruba fronteiras entre as artes em uma mistura de estilos, na busca de mostrar as faces do ser humano.
Sem cortina
A primeira surpresa quando se entra no teatro para assistir “Confissões e Cozinha” é que não existe cortina, o cenário está aberto e os artistas conversam em cena.
O cenário é uma grande cozinha com todos os equipamentos e utensílios: fogão, geladeira, armários, mesa, cadeira, liquidificador, batedeira, panelas e talheres, entre outros. E o mais importante, os alimentos – ou seja, os ingredientes necessários para a preparação de uma ceia.
Os artistas conversam entre si, alguns descem até o público como se fosse uma reunião bastante informal. As surpresas não terminam aí. Durante o espetáculo, entre números de equilibrismo, acrobáticos e de danças frenéticas, os artistas preparam, em cena aberta, uma ceia completa que, ao final, é servida aos espectadores – que são convidados a subir no palco e jantar com os artistas/cozinheiros em um verdadeiro “happening artístico/gastronômico”.
Receitas e lembranças dos artistas
Interessante, novo, surpreendente são alguns dos adjetivos utilizados para definir o espetáculo pela plateia presente.
Cada artista contribui com sua receita favorita, transmitida de geração a geração, e que mistura lembranças da infância e de sua trajetória pessoal, artística e afetiva. Algumas cenas provocam impacto emocional como os que recordam os tempos amargos da ditadura militar latino-americana.
As lembranças tristes se alternam com momentos de deleite como o do primeiro beijo com sabor de merengue e chocolate na sala escura do cinema de subúrbio. Ou do sabor dos insuperáveis biscoitinhos
Acidente no Soleil
Os sabores e os odores da cozinha são autênticos e se misturam com as nuvens de farinha de trigo (ingrediente essencial para bolos e cremes) e que se espalham pela plateia.
As confissões dos artistas são verdadeiras como é o caso da trapezista americana Caroll, que é da Califórnia, e que durante anos foi estrela do trapézio no “Cirque du Soleil”, no espetáculo “Saltimbanco”. Depois que ela sofreu um acidente, decidiu mudar o rumo da sua vida. “Achei que o grupo canadense era o que mais tinha a ver com a minha formação, que integra o circo com dança e teatro.”
Ela explica que “a cozinha é um local que frequentamos desde pequenos. É o ambiente ideal para evocar lembranças e confissões – o que acontece não só no palco mas a plateia também se vê envolta em suas memórias. Esse é um dos pontos fortes do espetáculo”.
Melvin, outro americano, ele é de St. Louis, é bailarino acrobata, músico e recorda com afeto o sabor delicioso, das rabanadas que sua mãe preparava e o cheiro bom do açúcar no fogo, e que o ajudaram, menino que cresceu sem conhecer o próprio pai, a achar que a vida tinha também um lado doce, que o motivou a dedicar-se a estudar e ir para frente.
O público se entusiasma com o espetáculo e se envolve de tal forma que não hesita em subir no palco, sentar, conversar e provar dos pratos na ceia servida.
“Confissões e Cozinha” agradou tanto aos italianos – famosos por sua culinária – que assumiu o compromisso de voltar para uma nova temporada o ano que vem.
PSY
Um dos espetáculos de maior impacto do grupo foi “Psy” – em que apresentava extravagante sessão de psicanálise. Os artistas contavam com leveza e humor a neurastenia da vida cotidiana: insônia, amnésia, medo, paranoia, alucinações, psicose e mania de perseguição.
Enfim, apresentavam a lista completa dos problemas da vida moderna com ironia, em meio a acrobacias e aéreos, e rindo de si mesmos.