E com Vocês...
Lógica de palhaço em Idiotxs Magnificxs
Mônica Rodrigues da Costa, especial para Panis & Circus*
“Idiotxs Magníficxs”, peça-improvisação de teatro, dança, circo e esquetes de palhaço, dirigida por Cristiane Paoli Quito, que também assina figurino e cenário em coautoria, tem um elenco de arrasar quarteirão de tão bom e uma viagem harmoniosa e criativa pelo mundo não-verbal e surpreendente da dança. Imagine agora isso ao encargo de palhaços.
Tem pouco mais de uma hora de movimentação e coreografias de 13 dançarinos que realizam esquetes de palhaços e atuam não necessariamente nessa ordem. Eles brincam com estilos e modos de dançar, fazem caretas, criam facetas engraçadas e inusitadas e se valem ainda da música e de uma quase mímica cômica para se comunicar com a plateia.
Recebem em troca respostas calorosas, de crianças presentes que interferem no espetáculo porque dançam imitando os artistas e fazem comentários que só crianças conseguem fazer. Os adultos riem e se divertem.
De forma veloz, leve e múltipla os atores e atrizes se repartem e preenchem com as cores de seus gestos e figurinos uma caixa preta, que é o ambiente cênico. Dançam e carregam pra lá e pra cá bancos, mesas, quadrados ocos de madeira pintada ou não, outros objetos com os quais interagem e que são a cenografia.
Durante uma hora e quinze minutos, ocorre esse vaivém, que é o encadeamento da dança entremeado com números de palhaço e ator. Os ritmos musicais e da dança variam bastante, e a iluminação acompanha (de Olivia Munhoz).
Em improviso calculado, às vezes um ator entra em cena de chapéu, outras vezes todos usam chapéus e dançam e interpretam aos pares ou em grupo canções e piadas. Em alguns momentos da brincadeira o elenco apresenta pontos de interrogação no rosto.
Eles dançam com as expressões faciais, com os pés, as mãos, paulatinamente, durante o começo do espetáculo, até o corpo todo movimentar-se entregue à música. Os dançarinos no palco fazem números que remetem a giros e saltos ou revezamento de pernas do balé clássico e do contemporâneo. O roteiro das cenas compõe uma tipologia de personagens, como os artistas de circo que eles fingem ser – e paradoxalmente são.
Fios condutores de “Idiotxs Magníficxs”, a coreografia e a música compartilham propriedades poéticas com o improviso, também com acrobacias. Eles inventam movimentos. Os fazeres do teatro e circo são as chaves para fruir o espetáculo.
Na caixa preta, palhaços, atores e dançarinos representam na dança atores que não sabem atuar, palhaços que ignoram como se joga o jogo deles e dançarinos que titubeiam ao dançar. Todos com posições trocadas. Tudo isso de forma cômica e quase sem palavras, dançando. Ao mesmo tempo os artistas estão à vontade em sua expertise.
O enredo de pequenas histórias adota o procedimento narrativo da fragmentação, com passagens narradas, outras faladas para o público e outras visualmente dialogadas ou dançadas em duplas e grupos seguindo ou não as coreografias.
Há uma cena de piada de palhaço com exercícios hilários de alongamento, conforme declamou um ator: “alongamento/ movimento/ dele me alimento…”.
Todos os personagens interagem nos números circenses de uma dupla de palhaços, por exemplo. Os atores questionam o atuar. O dançarino dá um passo em falso por pura ironia. O público entende tudo e participa com palmas ou palpites aos quais o elenco responde com esperteza, comédia e delicadeza.
Os 13 artistas têm em suas indumentárias algo em comum: calçam meias vermelhas sem sapatos, o que chama a atenção do espectador para o modo como o figurino é construído: com base no preto e no marrom, no azul e no branco, alguns paralelismos de listras e espécies de adivinhas de formas e cores.
O vestuário parece não seguir padrões além desses. A pouca uniformidade transpira liberdade. Um ator usa suspensórios, outro, gravata borboleta e mais um aparece de gravata masculina comum. Este pergunta a todos no espaço cênico enquanto realiza sua coreografia, pois se trata de um espetáculo de dança: O que é a vida? A vida faz shxiii, e o público repete a brincadeira do som até aparecer um jogo novo.
O que querem dizer? São surrealistas? Falam só em pedaços?
O encadeamento lógico, sintático, é do ritmo e do fraseado da dança. Os personagens tentam interpretar que estão divertindo a plateia, que é a função do ator de um drama padrão e do comediante, seja palhaço ou não.
O público acompanha cada transformação da dança, e há muitas cenas com múltiplas coreografias que conversam entre si, como uma das iniciais, a que tem a trilha “Let’s Do It (Let´s Fall in Love)”, de Cole Porter (1891-1964), carregada de ironia e crítica social.
A canção existe em versão para o português, do compositor Carlos Rennó, “Façamos (Vamos Amar)”. Confira aqui nas vozes de Elza Soares e Chico Buarque.
Memória de picadeiro
“Idiotxs Magníficxs” cumpre a função do teatro com dançarinos e atores, mesmo que palhaços, no palco italiano, mas dentro de uma caixa preta, espaço cênico usado na segunda metade do século 20 como lugar de experimentação.
Seria paradoxal se os não palhaços atores e os não dançarinos não representassem enredos curtíssimos, cujas peripécias levam a planos da coreografia, edificada com justaposições. O significado perde importância. Ficam as imagens de movimento, sonoras, cômicas, líricas, amorosas ou conflituosas.
A estética do fragmento substitui a linearidade do enredo na peça. O título refere-se ao gênero fluido de que todos os humanos participam desde os primórdios da vida na Terra e não é o assunto central do trabalho. Mas cada ator e atriz veste o que quer, procura dizer o espetáculo.
A dança segue sem interrupção e algumas cenas não têm trilha sonora. O dançarino realiza um movimento ao mesmo tempo que comenta comicamente a linguagem do palhaço no palco e vice-versa.
Por exemplo, artistas entram e saem de cena portando objetos, e ao mesmo tempo uma dupla de meninas contrapõe sons que se transformam em composições feitas com o corpo, no estilo Stomp, tiradas da caixa de ressonância física que são os seus corpos.
A cena descamba para uma hilária disputa entre as palhaças. As duas erram muito e ninguém vence – esquete clássica. O espectador mobiliza a memória do picadeiro e cai na risada.
Enquanto isso mais artistas entram, recitam poemas ritmados e saem para atrás das cortinas. As rimas falam, entram imagens de papagaio, avô e avó, velório, sem deixar de mencionar que um dos personagens tomou Frontal.
Em dado momento diz um ator ao público em um subgrupo do elenco: “Agora vou cortar seu coração” e dá início a uma cena de cirurgia cardíaca em velocidade acelerada em plena dança que virou uma sala da operação. Palhaçada das boas.
A improvisação, como a do elenco nesta montagem, está no jogo de justaposição e de combinação aleatória e criativa (chamada de bricolagem) de fatos comuns, ordenação, como tocar violão, concluir uma ação, e isso fascina o espectador, que aguarda a surpresa das próximas cenas.
Um dos atores imita o caminhar de Charles Chaplin. Outro imita drag de modo trash e mais outro – um gordinho de camisa listrada que dança como ninguém – interage com uma garota de saia rodada e igualmente listrada.
Um ator dispara: “Vou comer pão de queijo na coxia…” para rimar com sua tia, etc.
Cenas metalinguísticas assim se sucedem até a “hora do tchau”, diz um ator no final do espetáculo.
Diretora se sobressai
“Idiotxs Magníficxs” é mais uma experimentação de combinações de linguagens exploradas por Cristiane Paoli Quito (que dirigiu o espetáculo), que está na cena de arte paulistana desde a década de 1990 conforme o site do Itaú Cultural.
Paoli Quito trabalha com dança, teatro, circo e improviso. Integrou o Estúdio Nova Dança e a Companhia Nova Dança 4. É responsável por influenciar artistas do quilate de Lu Lopes e Gero Camilo. Vem da escola estética de Philippe Gaulier, mas tem pesquisa autônoma, autoral, estilística.
Quito ganhou muitos prêmios. Dirigiu o antológico espetáculo “A Cidade Muda” (1990) e o espetáculo de fôlego e beleza “Prometeu Acorrentado”, de Rodrigo Mateus (1993). Recebe o Prêmio Shell, em 2004, pela direção de “Aldeotas”, de Gero Camilo (1970).
Cristiane é professora e montou “Esperando Godot” (1999), de Samuel Beckett, com seus alunos da EAD, Escola de Arte Dramática.
Entre os trabalhos dedicados ao público infantil são exemplos “Meu Pai É um Homem Pássaro” e “Skellig”, adaptações de textos de David Almond. Em 2017 foi premiada pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) como uma das sete personalidades que se destacaram no ano na área de teatro para crianças e jovens, como diretora dos espetáculos “Skellig” e “Histórias de Alexandre”.
Serviço
“Idiotxs Magníficxs” tem apresentação em 25/1/2019, às 21h no teatro do Sesc Pompeia (rua Clélia, 93). Ingressos: R$ 9 a R$ 30. Duração: 1h15m. Classificação indicativa: Não recomendado para menores de 10 anos.
Ficha técnica
Direção: Cristiane Paoli Quito. Preparação corporal: Tarina Quelho. Elenco: André Cezar Mendes, Camila Cohen, Danilo Martins, Helio Toste, Lilian Regina, Luiz Felipe Bianchini, Maria Eduarda Machado, Marisa Bezerra, Mirella Façanha, Olivia Munhoz, Raquel Parras, Romario Oliveira, Walmick Campos. Cenário: Cristiane Paoli Quito. Figurino: Cristiane Paoli Quito, Silvana Carvalho e elenco. Iluminação: Olivia Munhoz. Operação de som: Dj Quito. Projeto gráfico: Jorge Ferreira.
*Jornalista frila, poeta e professora. Crítica de circo e teatro. Doutora em comunicação e semiótica.
Legenda da foto de Capa – Aquele abraço em cena de Idiotxs Magníficxs / Karla Brito