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Molière à tucupi com guaraná
A adaptação dos Parlapatões de O Burguês Fidalgo, comédia de costumes apresentada à corte do rei Luís XIV, traz painel de referências ao mundo moderno e à realidade do Brasil.
Janaína Leite
Dizem os princípios da física que dois corpos não podem ocupar simultaneamente o mesmo lugar no espaço. Por isso um ator em cena é quase um milagre – ao emprestar-se à personagem, permitindo a coexistência do criador e da criatura, quem se apresenta faz o espectador vislumbrar o potencial humano de agir diferente. Os dias atuais, porém, tendem ao ceticismo. Com exceção dos grandes musicais e das peças estreladas por alguma celebridade, os paulistanos parecem cada vez menos dispostos ao teatro. Para despertar o interesse dos pagantes, só mesmo uma fórmula infalível: texto reconhecido, adaptação ágil e debochada, excelentes atores. É o caso de “O Burguês Fidalgo”, escrita por Molière e dirigida por Hugo Possolo, que esteve em cartaz no Espaço Parlapatões, até 27 de outubro.
“O Burguês Fidalgo” conta a história do Monsieur Jourdain, homem rico de origem simples, obcecado com os títulos e o requinte da nobreza. Para ascender à fidalguia e conquistar uma marquesa como amante, Jourdain gasta rios de dinheiro. Entre aulas inúteis, roupas espalhafatosas e banquetes nababescos, ele acaba cercado de pessoas com caráter duvidoso, algo que exaspera sua prudente esposa, Madame Jourdain, e ameaça o possível casamento de sua filha, Lucile. A peça estreou em 1670, apresentada na combinação de balé e comédia à corte do Rei Luís XIV. Satirizava, de um lado, o desejo de aceitação da burguesia inculta; de outro, o pedantismo de uma aristocracia decadente.
A montagem dos Parlapatões é ousada. Reduziu e se apropriou do texto do comediante francês com voracidade antropofágica, transformando a comédia de costumes em um vasto painel de referências ao mundo moderno e à realidade do Brasil. As risadas se sucedem rapidamente sem que a plateia adivinhe o que virá na próxima fala. Tudo motiva a ironia: do poder às gírias da periferia, de piadas com referências sexuais a canções dos anos 80, das redes sociais ao comportamento dos frequentadores da Praça Roosevelt, conhecido reduto dos atores na capital paulista.
É uma corrida maluca em que intérpretes afiados, tanto na improvisação quanto no humor físico, passeiam por técnicas circenses, truques burlescos e chicanas musicais. Expõe-se, assim, pela vertigem, o absurdo comportamental do qual ninguém está livre – atire a primeira pedra aquele que nunca quis parecer mais elegante do que é, ou quem jamais riu às escondidas da idiotice alheia.
Oriundo da arte circense, Hugo Possolo, assim como seus companheiros, consegue um efeito conhecido, mas sempre eficaz, o de revelar e esconder a ilusão que está sendo mostrada no palco. Em alguns momentos do espetáculo é possível divisar os atores desfilando em seus figurinos bastante originais quase que separados de suas respectivas personagens, divertindo-se com as ações delas, numa pureza desconcertante e súbita, típica de quem domina a arte dos clowns.
Questionado sobre o perigo de inserir tantas referências brasileiras e contemporâneas ao texto original, servindo ao público uma espécie de Molière ao tucupi com tubaína, o diretor ri. “O artista que não se arrisca quer fazer parte de um jogo”, resume. “A minha essência e a dos Parlapatões tenta buscar o que é fundamental. No momento, achamos que isso tem a ver com uma classe C emergente, com o ufanismo das manifestações de rua que ainda não foram sequer compreendidas, com o culto a muitas celebridades vazias.”
Segundo Possolo, que interpreta a personagem principal de “O Burguês Fidalgo”, foram necessários dois anos de estudo do texto, incluindo três meses de ensaio no palco, para chegar ao formato atual da apresentação. O grupo nunca tinha montado uma peça de Molière, renascentista tido como o pai do teatro francês. “Ele fazia esse teatro popular, dançante, físico e de sedução, onde tudo estava muito misturado”, diz. “Cuidamos para que houvesse respeito ao texto clássico, mas não o respeito ao formalismo, e sim à intenção do autor.”
Os tentados a assistir deverão levar em conta o peso dessa palavra: popular. A montagem que está na Roosevelt talvez não agrade a puristas, nem a adeptos do humor estritamente refinado e dialógico. Na maior parte do tempo, a história se desenrola a partir do escracho. A audiência que só conhece o teatro de musicais e grandes salas também pode estranhar a economia de elementos no cenário.
Seja como for, levando-se em conta o critério mais importante, a satisfação do público à saída, os Parlapatões conseguiram. Na apresentação do último dia 4, a maioria das pessoas deixou a cadeira sorrindo, num claro resquício da gargalhada que rebentara há pouco, diante da patetice de Monsieur Jourdain e sua turma.
Janaína Leite é jornalista, com passagens pelas maiores redações do país, e passa a partir dessa edição a escrever para o Panis & Circus.
Serviço:
Texto – Molière
Parlapatões: “O Burguês Fidalgo” /Sextas e sábados – às 21 horas/Domingo – às 20 horas – Praça Franklin Roosevelt, 158/ Tel.: 3258-4449
www.espacoparlapatoes.com.br
Ingressos: R$ 30,00 (inteira) – R$ 15,00 (meia)
Fotos: Asa Campos
Postagem: Alyne Albuquerque
Tags: Espaço Parlapatões, hugo possolo, Janaína Leite, Molière, O Burguês Fidalgo, parlapatoes
Reprodução do Facebook dos Parlapatões…
“Molière ao tucupí com tubaína”
Janaína Leite e sua visão sobre O Burguês Fidalgo. Texto impecável traduz a essência do novo espetáculo dos Parlapatões.
https://www.facebook.com/pages/Parlapat%C3%B5es/192822424109895