Pé na Estrada
Mostra Le Violon d´Ingress traz clowns de Fellini
Ivy Fernandes, de Roma
A exposição Le Violon d’Ingres, composta por desenhos de personalidades do cinema, teatro, literatura, música e ciências políticas como Frederico Fellini e Nelson Mandela vai deixar Roma, em 6 de fevereiro, e iniciar sua itinerância pela cidade de Bolonha.
Os desenhos de Fellini cedidos para a exposição fazem parte da coleção que está no Arquivo Federico Fellini, na Cinemateca da Prefeitura de Rimini. Eles mostram palhaços, mulheres voluptuosas, bailarinas e toda série de personagens dos filmes do cineasta.
A expressão Le Violon d’Ingres (Ter um Violino d’Ingres), criada pelo artista Jean-Auguste-Dominque Ingres, se refere a aquelas paixões ‘artísticas’ de personalidades menos visíveis publicamente.
Patrocinada pela Academia de França em Roma, a mostra apresenta obras que vão de desenhos, instalações, pinturas, tapeçarias a esculturas. O curador da exposição, Christian Boltanski, reuniu trabalhos produzidos na intimidade (sem o objetivo de exibição pública) por personalidades como Fellini, Victor Hugo, Guilhaume Apollinaire, Samuel Beckett, Jean Genet, Franz Kafka, Nelson Mandela, Pier Paolo Pasolini, Patti Smitt e Serguei Eisenstein.
A sedução do circo
A compulsão de Fellini pelo desenho o levou a produzir mais de 1.700 obras, segundo alguns especialistas. Boa parte delas se refere a outra de suas paixões, a vida circense. Os desenhos de trajes de palhaços, com suas cores fortes, encantaram o público romano.
O mundo circense surgiu muito cedo na vida de Fellini. Aos 7 anos fugiu de casa atrás do palhaço Pierino, quando ele se apresentava na sua cidade, Rimini. O encanto perduraria por toda a vida.
Para pesquisar sobre o mundo do circo, foi a Paris trocar ideias com Tristan Rémy, autor de um volume completo sobre os palhaços publicado em 2006. Por meio de Remy, Fellini conseguiu localizar e conversar com alguns palhaços do passado como Alex, Bário, Pere Loriot e Ludo.
Como resultado da incursão na vida circense, Fellini apreendeu e minuciosamente descreveu o mundo que cerca o picadeiro. O filme I Clowns (Palhaços), que o cineasta classificou como ‘paródia de documentário’, é uma mistura “sui generis” de ficção, documentário e depoimento pessoal. Com ele, o diretor documentou a arte do circo na Itália e na França. Durante a sua pesquisa com Remy, levantou também registros visuais (filmes, fotos, ilustrações) dos grandes palhaços do passado. Na obra, Fellini se vale de memórias da infância em cenas que lembram Amarcord e Os Boas Vidas.
O filme I Clowns (Palhaços) foi apresentado na 31°Mostra de Cinema de Veneza, em 1970, e recebeu vários prêmios em outros festivais. É justo que, ao relembrar os 25 anos de sua morte (1920-1993), a mostra dos seus desenhos focalize os momentos principais do seu trabalho e entre eles, Palhaços.
Desenhos: compulsão de Fellini
Fellini desenhava sem parar, em qualquer lugar que estivesse. Entre um almoço rápido, um café ou um copo de vinho, ele observava com atenção vizinhos de mesa, empregados e desenhava tudo o que lhe atraía. Depois colocava os papéis em uma pasta.
Quando lhe perguntavam a razão de anotar e de desenhar tudo – personagens, vestiário, cenários -, respondia: “É uma forma de lembrar de certos perfis, nariz, olho, boca, penteado, bigode, modo de andar, cruzar as pernas, falar, gesticular. Os acessórios como bolsa, gravata, chapéu, casaco, tudo isto me serve para completar e dar naturalidade a meus personagens. Desenhando, posso imaginar o filme que pretendo fazer. Observo os mínimos detalhes que podem parecer insignificantes, mas que ajudam muito na hora de criar uma imagem, dar corpo, voz, personalidade, um tique nervoso, aos personagens cinematográficos, exatamente como a composição de um quadro.
Um processo criativo que iniciei mesmo antes de começar a me ocupar de cinema. Ainda adolescente, no ginásio, gostava de fazer caricaturas dos colegas e professores, descobria sempre um lado cômico, grotesco. Aos 20 anos, comecei a colaborar como cartunista e desenhando sátiras com o tabloide Marc’Aurelio. Foi o início do início.”
A cidade Natal
Fellini nasceu na região da Romagna, no centro da Itália, na cidade balneária de Rimini, em 1920. Sua família era simples, de trabalhadores. A paixão pelo cinema foi tardia. Na verdade, o jovem pensava em seguir o jornalismo ou ganhar a vida como caricaturista.
Anos de estudos superiores (clássico) acentuaram a sua tendência artística e, mesmo antes de terminar os estudos, conseguiu publicar alguns desenhos humoristas, em jornais e revistas como Domenica del Corriere. Em 1939, em plena atmosfera do início da Segunda Guerra, resolveu se transferir para Roma, dizendo à família que pretendia cursar a faculdade de Direito. Na capital, seguiu outros caminhos, entrou em contato com o mundo da imprensa e conseguiu publicar suas caricaturas na principal revista satírica do momento, o Marc’Aurelio.
Encontro com o cinema
Da sátira ao cinema foi um passo. Começou a escrever enredos (copião) para alguns filmes de Erminio Macário.
Em 1941 começou no rádio e conheceu a jovem Giulietta Masina, com quem se casou em 1943, quando tinha apenas 23 anos. Ela se tornou a intérprete de inúmeros de seus filmes. Paralelo a esses empregos, abriu uma loja pequena em 1944. Ali fazia caricaturas para os militares americanos aliados da Itália. Nesse período, logo depois da guerra, encontra o diretor Roberto Rossellini com quem colabora nos copiões dos filmes Roma Città Aperta e Paisà. Um passo à frente e começou a trabalhar atrás das câmeras. Sua estreia como diretor-auxiliar foi ao lado de Alberto Lattuada, em 1950, com o filme Luci del varietà.
O primeiro filme que dirigiu foi o Sceicco bianco com Alberto Sordi e Giulietta Masina. Fez amizade como o compositor, Nino Rota que lhe acompanhou por toda a carreira com a trilha sonora dos seus filmes.
Em 1960 foi o ano do seu grande sucesso mundial com a Dolce Vita, filme que marcou definitivamente a vida de Fellini e, na época, provocou polêmicas infinitas, pois descrevia a Itália em contraste entre a decadência e o bem-estar econômico conquistado nos anos sucessivos à guerra.
Nem sempre foi fácil a vida de Fellini, muitas vezes não encontrava produtores dispostos a investir nos seus projetos, alguns os consideravam muito longos, complicados e sempre imprevistos sob o ponto de vista econômico.
Mas a sua filmografia é riquíssima de sucessos internacionais como Satyricon (1969); I Clowns (1970); Roma (1972); Amarcord (1973); Il Casanova (1976), um dos filmes mais caros com 30 vestiários de época, desenhados e realizados por Danilo Donati, outro colaborador precioso.
Pelos cenários e vestiário de Casanova, Danilo Donati recebeu o Oscar. Seguiram outros filmes: Prova d’orchestra (1979); La città delle donne (1980); E la nave va’ (1983); Ginger e Fred (1985). Seu último filme foi La voce della luna (A voz da Lua- 1990) com dois cômicos muito famosos, Roberto Benigni e Paolo Villaggio, que o próprio Fellini descreveu como “um elogio à loucura e uma sátira sobre a vulgaridade contemporânea da sociedade na época da política de Berlusconi”.
No início de 1993 recebeu o Oscar, o mais importante, aquele dedicado à carreira. Em outubro do mesmo ano, faleceu na sua casa no centro de Roma, via Margutta. Sua esposa Giullietta Masina morreu cinco meses depois. Fellini sempre foi fiel a uma de suas máximas: “Non perdete mai il vostro entusiasmo infantile per tutto il viaggio che è la vita” (Não perca nunca o entusiasmo infantil durante toda a viagem que é a vida).