Arte em Movimento
Mr. Chocolat: o 1º clown negro da Belle Époque; Festival da Itália mostra Arlequim de Tim Robbins
Filme é estrelado por Omar Sy e James Thierrée
Ivy Fernandes, de Roma
Inspirado na biografia do primeiro clown negro, Rafael Padilha, de origem cubana, o filme descreve a vida de “Chocolat” e a trajetória da dupla formada por ele e o clown branco, “George Footit”, na Paris da Belle Époque.
A história começa num pequeno e empoeirado circo de província, onde os dois artistas trabalham cada qual com sua função. Um belo dia, o clown branco propõe que eles formem uma dupla, que poderia funcionar bem no picadeiro, com seus contrastes de cor e estilo; o que acaba por atrair o público.
Da província, eles seguem para o Grande Circo de Paris – após terem sido descobertos por um empresário parisiense do show business. Em poucos meses, a dupla conquista a capital francesa da Belle Époque e entra em um turbilhão de cores e fantasia – sucesso que envolve a elite parisiense e se estende por um longo período.
Infelizmente, a carreira de “Chocolat” começa a declinar por causa de jogos, bebidas e drogas, somados à discriminação racial – ele fora escravo na infância – e que acabam por comprometer sua amizade com o clown branco e o sucesso da dupla.
Apesar dos problemas, “Chocolat”, sem sombra de dúvida, marcou capítulos importantes da vida artística francesa e o filme é um reconhecimento ao seu talento.
Sy e Thiérrée vivem os clowns negro e branco
“Mister Chocolat”, dirigido por Roschdy Zem, tem como protagonistas Omar Sy, ator negro francês, de origem senegalesa, conhecido por sua atuação na comédia “Intocáveis” – sucesso internacional, lançado em 2011. Nesse filme, ele contracena com o ator François Cluzet – e interpreta um enfermeiro informal de um homem paralisado da cintura para baixo, depressivo e melancólico. A relação entre o enfermeiro informal e o patrão progride para amizade e os dois passam a viver emoções inesperadas. Por sua interpretação, Omar Sy ganhou o “César” como melhor ator do cinema francês.
James Thiérrée é um ator suíço, filho de Victoria Chaplin e Jean Batiste Thiérrèe – artistas circenses, fundadores do “Cirque Invisible” – e neto de Charles Chaplin. Ele interpreta o clown branco, “George Footit”, e ao lado de Omar Sy, o “Mister Chocolat”, forma a dupla irresistível do filme, que abriu o “Rendez-vous” – Festival de Cinema Francês, na Itália, de 6 a 11 de abril e que teve como madrinha a atriz Catherine Deneuve.
Diretor de “Mister Chocolat” fala do filme em coletiva em Roma
“Para dizer a verdade eu não conhecia a história e a trajetória artística de “Chocolat”. Mas fui apresentado a ele por meio do roteiro dos irmãos Eric e Nicolas Altmayer, e a partir daí quis rodar o filme, que se passa na Belle Époque, em Paris. Mais ainda por ter protagonistas tão originais”, afirmou Roschdy Zen, durante coletiva em Roma, que contou com a presença do Panis & Circus.
O segredo principal do sucesso de “Chocolat”, como afirmou o diretor Zem, foi a escolha dos protagonistas.
“Era fundamental a interação entre os dois protagonistas – entre a dupla de clowns”.
Os dois artistas têm origens diversas, relata o diretor.
“James Thiérrée é herdeiro da família artística mais famosa do mundo, nasceu, cresceu e viveu nos bastidores de Chapiteau (lona), acompanhando seus pais – os artistas circenses, Victoria Chaplin e Jean-Baptiste Thiérrée que fundaram “Le Cirque Invisible”. Da família aprendeu o rigor no exercício da arte em busca da perfeição. “James é um ator completo, cria seus próprios espetáculos – cenário, iluminação, montagem, vestuário e direção”.
Clique aqui para ler a reportagem sobre o “Cirque Invisible” – especial para Panis & Circus.
Por sua vez, Sy tem em seu currículo, acrescenta Zem, o filme de sucesso “Intocáveis” – que fala da trajetória de um inválido e de seu ‘enfermeiro’ informal – papel de Sy. E na sequência com o filme “Samba” – história de um imigrante como a sua família (seus avós vieram do Senegal) – Sy ganhou mais entusiastas de sua arte. “Mas Sy nunca teve comportamento de “star” – sempre foi simples e direto nas filmagens. Estudou a fundo o personagem e o resultado foi surpreendente”, afirma Zem.
“Dei sinal verde para ambos atores, encorajando a criatividade e a liberdade de interpretação – sem qualquer restrição. O resultado foi que eles se divertiram muito.”
Sy conta como aceitou viver “Chocolat” nas telas
“Eu estava rodando a comédia “Dois agentes muito especiais”, quando o roteirista Nicolas Altmayer veio me procurar para propor o filme baseado na vida de “Chocolat”. Eu não conhecida a vida de Rafael Padilha, o clown negro que encantou Paris da Belle Époque, mas me interessei logo pelo assunto e comecei a fazer pesquisas. Li o livro de Gerard Noiriel, “Chocolat, le clown négre”, fui fisgado e meses depois iniciei as filmagens.
Um personagem como “Chocolat” não acontece todos os dias na carreira de um ator. A alegria e a dor, o vertiginoso sucesso e a irreversível decadência do personagem me envolveram totalmente. É uma comédia que vira drama. Padilha era um menino com vontade de brincar, se divertir, enfim, passar por cima do fato de que era filho de um ex-escravo e que ele mesmo, no início da vida, teve o mesmo destino. Pensei como era difícil carregar por toda a vida aquele peso e que Padilha conseguiu superar e renascer com uma nova identidade, fabricada no palco com luzes brilhantes, riso, alegria, música e divertimento. Aplausos, tantos aplausos.
Infelizmente ele não soube manobrar o barco no mar aberto do sucesso, que acabou batendo nas rochas da inveja. E terminou seus dias como começou – num empoeirado cirquinho de província, mas não mais como artista mas como lixeiro.”
“Sorte foi encontrar James Thiérrée: o clown banco”
“A nossa sorte”, continua Sy na entrevista coletiva, “foi encontrar James Thierrée – que interpreta o palhaço branco George Footit.
Ele faz parte de uma das famílias mais ligadas ao mundo do circo representada pelo avô, Charles Chaplin, os pais, Victoria e Jean Baptiste. James conhece muito bem os segredos da arte circense – o que me ajudou muito. Ele me ensinou os movimentos do corpo do clown, o ritmo, o “timing” preciso na arte de envolver o público na magia do circo. Enquanto que para ele, o personagem de “Footit” já estava construído por sua vivência, eu precisei preparar o meu clown e estudar todos os detalhes em quatro semanas. Foram vários desafios: interpretei, pela primeira vez, um filme de época e também um personagem que começa jovem e termina velho.
Não é raro que um personagem aplaudido por multidões acabe por se transformar no inimigo número 1 de si mesmo. E foi o que aconteceu com “Chocolat”, quando desafiou o próprio destino e abandonou o circo, no auge do sucesso, para tentar a carreira como ator dramático, interpretando “Otelo” de Shakespeare. Encontrou a rejeição do público e esse fracasso empurrou-o para sua descida ao inferno”, finaliza Sy.
Escândalo: Chocolat provoca divórcio da branca Marie
A vida íntima de “Chocolat” era acompanhada pelo público. E foi considerado um escândalo a sua união com Marie – interpretada pela atriz Clotilde Hesme – jovem e branca enfermeira que dedicava sua vida a cuidar de crianças doentes. Marie se apaixonou por ele, divorciou-se e foi viver com “Chocolat” enfrentando o desprezo, a ironia e as dificuldades da discriminação racial.
Cuidados com o cenário e o vestuário
No começo das filmagens, foi preciso equacionar um problema técnico relevante, ou seja, rodar um filme de época no meio das ruas de Paris. É preciso estar atento para que no fundo da cena não apareça um carro moderno ou um edifício do século 21, destaca o diretor Zem.
Mas a decisão foi mesmo por Paris, acrescenta Zem, porque dava para aproveitar ângulos naturais da cidade – locais em que era montada a cenografia. “Dessa forma, tivemos mais tempo para dedicarmos aos figurinos e tecidos de época, inspirados em documentos e pinturas da Belle Époque, descemos mesmo aos detalhes.”
O diretor explica que baseou-se em “filmes históricos mais famosos e perfeitos: “La vie en Rose”, de Oliver Dahan e o insuperável “Barry Lyndon”, de Stanley Kubrick, onde cada detalhe, como um vaso de flores, é tratado como se fosse protagonista da cena. Também as cores dos costumes de cena, masculinos e femininos, foram estudados com dedicação e apuro, com luzes apropriadas para render o máximo efeito no filme.”
Espetáculo foi apresentado no Festival de Spoleto, na cidadezinha da Úmbria
Ivy Fernandes, de Roma
“Arlequim a caminho da liberdade” (Harlequino on go to Freedom) foi apresentado pela primeira vez na Itália, durante o 59º Festival de Spoleto no Teatro San Nicolò, na cidadezinha da Úmbria, de 6 a 10 de julho de 2016.
A comédia “Arlequim, servo de dois amos”, de Carlo Goldoni, escrita em 1745, foi adaptada por Tim Robbins, ator e diretor americano, vencedor de um Oscar. A adaptação de Robbins do popular Arlequim – personagem da Commedia dell´Arte – tem fortes ingredientes políticos com denúncias ao injusto sistema carcerário americano, ao racismo e à desigualdade social.
No início do espetáculo, os atores caminham do fundo da plateia em uma lenta procissão e entoam uma espécie de hino sagrado à arte teatral. O palco é invocado como local de troca de opiniões “e, portanto, ideal para o exercício das críticas e denúncias, e do uso da sátira como instrumento da liberdade de expressão”. Com esse prólogo, Robbins apresenta ao público o que aparentemente parece ser uma comédia. Na verdade, travestida de avaliação do gênero teatral, encontra-se uma sátira ácida contra a prepotência e o poder.
Segundo a crítica favorável a peça, Robbins teve a capacidade de reunir no mesmo palco a Commedia dell’ Arte, as tragédias de Shakespeare e as cenas da tradicional comédia americana colocando em primeiro plano o tema imortal da liberdade.
Em sua nova versão, o “Harlequino” é negro. Robbins acredita que a diferença entre servo e escravo é sutil, quase que imperceptível, e que o personagem, em sua origem, era um escravo vindo da África para servir aos patrões brancos. Interpretado por um ator branco com a máscara veneziana negra, o servo de Goldoni, se questiona: por que sou diferente? Por que tenho a pele escura? Por que não tenho vida própria, ambições, esperanças e futuro? Por que não tenho o direito a amar e ser amado? Por quê?
“Harlequino”, de Robbins, é diferente daquele que estamos habituados a ver representado em mais de 80 idiomas. Protesta e denuncia. É menos astuto, mais romântico e um tanto infantil. E atravessa o tempo, desde que foi criado por Goldoni, até chegar a 2016.
A Colombina é também menos servil aos amos e mais política: exige o direito de amar. O mesmo acontece com outros personagens criados por Carlo Goldoni: o inquisidor (Pantalone), o capitão (Spavento) e a bela viúva (e sua flha Isabella) – todos ligados à vida moderna e às questões profundas que atravessam os séculos.
A plateia nem tem tempo de avaliar o novo “Harlequino” quando se depara com mais um choque artístico: a trilha sonora criada por Tim Robbins mistura jazz, folk e vem acompanhada de danças frenéticas. No palco, os versáteis 19 atores – que compõem o elenco americano – organizam um verdadeiro “comício musical”.
Entre o público e o palco não existe barreira divisória: os atores, cantam, dançam, correm e relatam, quase sempre, no meio da plateia, as aventuras do casal de namorados de Goldoni, as manobras e intrigas de Pantalone – que quer casar com a rica viúva Bracantini e fazer seu primo casar-se com Isabella, a filha da bela viúva.
A peça de Robbins provocou polêmicas entre os tradicionais defensores da autêntica Commedia dell’Arte e os modernos, que defendem a adaptação sob o argumento de que foi dada nova vida ao personagem “Arlequim” – afinal àquela época a sociedade também estava permeada pela desigualdade, injustiça social, limites para a liberdade e a impossibilidade de mudança, de sair do lugar. Quem nascia servo morria servo o que, segundo Tim Robbins, continua a acontecer nos dias de hoje.
Para críticos, como Vittorio Sgarbi, é preciso relevar que se este “Harlequino” tivesse sido apresentado por um diretor teatral italiano, a Itália não aceitaria o personagem em versão tão revolucionária e política. Mas como é de autoria de artista americano, de fama internacional, com fortes opiniões políticas, o público lotou os espetáculos.
“O teatro sempre foi um espaço de reflexão, de crítica social, de política e, portanto, Robbins merece o extraordinário sucesso de público sobretudo porque deu vitalidade a um gênero teatral antigo,” afirma Sgarbi.
Tim Robbins: um ‘outsiter’ do sistema
Robbins é um ator que, apesar da fama ganha em Hollywood, sempre foi considerado um ‘outsider’ do sistema. Suas ideias vanguardistas e sua ligação com as questões sociais fazem parte de seu roteiro e percurso artísticos. Nascido em Nova Iorque, em 1959, filho de um cantor folk, Gil Robbins, foi atraído, ainda adolescente, pela carreira artística e apresentava-se em espetáculos de ruas do Village, em Manhattan, onde atuava, tocava violão e cantava. Aos 22 anos, decidiu mudar-se para Los Angeles, para frequentar uma escola de teatro.
Pouco tempo depois fundou na Califórnia, com alguns amigos, uma companhia teatral denominada Actor’s Gang – um grupo de jovens entusiastas da arte mas com pouca experiência teatral e sem qualquer capacidade de organização. Em 1984, durante as Olimpíadas de Los Angeles, assistiu a uma peça de Shakespeare, da companhia “Théatre du Soleil”, em turnê pelos Estados Unidos, que se inspirara na revolta estudantil de 1968 na França. Ficou encantado com o espetáculo e entrou em contacto com um de seus protagonistas, o ator George Bigot, que por sua vez, ao conhecer a Actor’s Gang, decidiu partir para Los Angeles. “Bigot nos ensinou a disciplina, a levar a sério o teatro, a estudar e a aplicar a nossa energia e entusiasmo para aperfeiçoar a arte teatral. E, também a entrar nos fantásticos labirintos da Commedia dell’Arte, a conhecer e estudar Carlo Goldoni, as máscaras, o vestuário, a linguagem e a engrenagem do teatro veneziano daquela época”, diz Robbins.
Palhaços continuam a desafiar o poder
Mas ele credita ao escritor, dramaturgo e palhaço Dario Fo, a mudança na sua carreira profissional. A entrega do Prêmio Nobel de Literatura a Dario Fo, em 1997, provocou um curto-circuito nas artes. O fato é que os clowns, palhaços, bobos da corte, sempre existiram e com teatros improvisados interpretavam cenas que divertiam o público. Era tudo “à la carte”, não existia enredo e representavam nas esquinas das ruas. Eles eram temidos, por alguns, porque relatavam o estilo de vida dos ricos, como eles gastavam o dinheiro e tratavam mal pessoas que os serviam. Falavam ainda da esperança de amar e ser amados e do que a ciência poderia vir a descobrir.
“Passaram-se séculos, mas os cômicos, humoristas e palhaços continuam a ameaçar os prepotentes. Basta lembrar os humoristas do Charlie Hebdo, assassinados na redação do jornal, no centro de Paris, porque os extremistas se sentiam ofendidos com suas sátiras. Essa é a prova concreta que os palhaços continuam a ameaçar o poder”, afirma Robbins
Em sua carreira, Tim Robbbins, hoje com 57 anos, protagonizou, entre outros sucessos, “Um sonho de liberdade”, em que contracena com Morgan Freeman, “Sobre Meninos e Lobos”, dirigido por Clint Eastwood, e o “Jogador” de Robert Altman. E dirigiu um filme polêmico, “Os últimos passos de um homem”, sobre a pena de morte.
De Hollywood para as prisões da Califórnia
Dez anos atrás, o ator decidiu ensinar arte dramática nas prisões de máxima segurança da Califórnia. “Foi um enorme desafio, mas a reação foi fantástica. Vários atores fazem espetáculos gratuitos nas prisões, recebem aplausos e depois viram as costas e fecham a porta mantendo sempre uma distância segura. Eu não queria fazer o mesmo, meu objetivo era outro. Era interferir na vida dos criminosos. Era fazer com que os presos deixassem, por algumas horas, a própria existência marcada por seqüência de erros e tragédias e mergulhassem no mundo do teatro. Aí montamos “Harlequino on go to Freedom” (Arlequim a um passo da liberdade).
Para ele “Harlequino on go to Freedom” é reflexo da desigualdade na América “onde a parcela mais fragilizada da população cresce com rancor, ódio, cercada por suspeita e desejos de vingança. Com o passar dos anos, esses sentimentos dilatam até provocar crimes que levam o indivíduo à condenação e à morte social. Nos Estados Unidos, 80% dos prisioneiros são negros ou de origem latina. A possibilidade de dar a estas pessoas, que jogaram fora a própria existência, momentos de alegria, por meio da arte, da dança, da música, foi e é para mim, muito importante”.
Esse projeto dedicado ao sistema carcerário foi reconhecido por sua importância pela Casa Branca e pelo Ministério da Justiça.
Em seus 35 anos de vida, a Actor´s Gang conquistou fama internacional e colocou em cena mais de 150 peças pouco convencionais e adaptações de textos clássicos sob uma perspectiva moderna, contemporânea. A primeira turnê internacional da Actor’s Gang foi, em 1989, no Festival de Edimburgo com “Carnage, a Comedy”. A partir daí, a companhia fez várias temporadas na Europa, Ásia, Austrália com produções como O Sonho de uma Noite de Verão, de Shakespeare, 1984, de George Orwell, Tartufo, de Molière e Embedded, uma sátira contra a Guerra no Iraque.
Postagem – Alyne Albuquerque