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Nerino: o histórico palco-picadeiro do circo-teatro
Trajetória do circo, descrita em livro, é comentada pelo jornalista e escritor Oscar Pilagallo
Oscar Pilagallo
Na época em que ainda não havia televisão e que as artes cênicas não se afastavam muito dos grandes centros urbanos, era o circo que levava a cultura popular aos rincões mais remotos do país. E se uma companhia em particular deu uma contribuição significativa nessa área foi o Circo Nerino.
Fundado em Curitiba, em 1913, o Circo Nerino manteve sua lona estendida por mais de meio século. O último espetáculo foi realizado em setembro de 1964, na cidade paulista de Cruzeiro. Nesse período, a companhia rodou o Brasil diversas vezes, viajando de trem, navio, barcaça, jangada e nos caminhões da frota própria que levavam escrito o slogan: “O mais querido circo do Brasil”.
A história está contada em Circo Nerino, escrito por Roger Avanzi, filho do fundador, Nerino Avanzi (1886-1962), e pela atriz e pesquisadora Verônica Tamaoki, que fez entrevistas desde 1995.O livro, publicado em 2004, mostra que não é exagero dizer que o circo disseminava a cultura popular. O Nerino, afinal, era um circo-teatro: circo na primeira parte, teatro na segunda.
O teatro vingou depois de outras iniciativas frustradas. Nos anos 30, o Nerino realizou sessões de cinema, que não tiveram continuidade. A experiência com o rádio também não foi para frente. Mas o teatro provou ser um meio fértil para a trupe. O circo desenvolveu uma dramaturgia para o picadeiro, o palco-picadeiro, cujo ponto culminante foi a apresentação de A Paixão de Cristo, de Eduardo Garrido.
Em 1945, para citar outro exemplo, o circo estava em Fortaleza, no Ceará, e aproveitou a aproximação do fim da Segunda Guerra Mundial para montar a peça Os Sycários de Hitler. O figurino era caprichado. Não apenas a reprodução dos uniformes dos exércitos Aliados e do Eixo era fiel, como os atores usavam metralhadoras, baionetas e fuzis emprestados pelos soldados da região.
O Nerino também atraía a cultura local e abria espaço para jovens talentos. No início dos anos 40, o circo passava pela Paraíba, quando um senhor procurou Nerino Avanzi para propor que seu filho se apresentasse tocando sanfona. O proprietário concordou e permitiu que ele tocasse no intervalo. Na hora, porém, se surpreendeu com a pouca idade da criança (sentado numa cadeira no picadeiro, seus pés não alcançavam o chão) e com seu domínio do instrumento. O menino Severino Dias de Oliveira foi aplaudido de pé, e essa foi uma das primeiras apresentações daquele que mais tarde o Brasil conheceria como Sivuca.
Estruturada em torno de depoimentos, a obra, no entanto, deixa de explorar o contexto histórico. É ilustrativo o trecho em que Roger decide assumir o lugar do pai no papel do palhaço Picolino. Há uma rica descrição sobre a decadência física do pai, a oposição inicial da mãe (para quem o palhaço é “o prisioneiro do circo”), a dúvida do próprio autor sobre sua vocação circense, mas não há menção de que tudo isso ocorre num momento em que boa parte dos brasileiros ainda estava de luto pela morte do presidente Getúlio Vargas, ocorrida menos de dois meses antes da estreia de Roger no papel, em 16 de outubro de 1954.
Roger Avanzi nasceu em 1922, pouco depois da Semana de Arte Moderna, que homenageou o palhaço Piolim. Os palhaços estavam em alta e a estreia de Roger no circo se deu já no ano seguinte. Numa comédia tipo pastelão, os personagens discutiam de quem era o bebê. Mas na infância ele não levava muito jeito para palhaço. Uma experiência precoce e negativa no picadeiro o faria hesitar, décadas mais tarde, em se tornar palhaço. No fim, acabou aprendendo a técnica circense do pai. O estilo Picolino é bem tradicional: casaca preta, colarinho exagerado, calça com suspensório, chapéu coco e sapatos sobrando na frente.
A documentação iconográfica do Circo Nerino conta com a colaboração do fotógrafo e etnólogo francês Pierre Verger. Em 1947, Verger estava em Pernambuco quando a companhia passou por lá. Pediu para registrar o desmonte da lona no centro de Recife e, depois, a armação da tenda num bairro. A trupe topou sem conhecer o artista e ficou surpresa com a alta qualidade resultado, mais tarde publicado numa reportagem da revista O Cruzeiro. Reproduzido no livro, o material nem sempre é identificado por legendas, mas não é difícil imaginar — pelo enquadramento, pela textura, pelos objetos de interesse — quais são as imagens de Verger.
As fotos do francês são apenas parte do arquivo usado na obra. Sobre as primeiras duas décadas, o material iconográfico é ralo. Mas, a partir de 1937, por iniciativa do então jovem Roger, teve início a preservação da história do circo. Além de palhaço, Roger é um memorialista com gosto para o detalhe e montou um dos mais relevantes acervos sobre circo no Brasil, e que continua disponível ao respeitável público-leitor.
CIRCO NERINO
Autores: Roger Avanzi e Verônica Tamaoki.
Editoras: Pindorama Circus e Códex.
354 páginas
Oscar Pilagallo é jornalista e autor dos livros: “A Aventura do Dinheiro – Uma Crônica da história milenar da moeda” (Publifolha – 2000); “O Brasil em Sobressalto – 80 anos de história contados pela Folha” (Publifolha, 2002), Direito e Economia (Saraiva, 2008); “História da Imprensa Paulista” (Três Estrelas, 2012) e “Corrupção” (Campus-2013)
Postagem: Alyne Albuquerque
Tags: circo nerino, Curitiba, Oscar Pilagallo, roger avanzi, veronica tamaoki
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Agradecemos, eu e seu Roger, ao Panis et Circus por, mais uma vez, nos conceder espaço nobre em seu site e ao Oscar Pilagallo por ter se debruçado sobre nossa obra.
Não concordo que o livro deixe de explorar o contexto histórico. Isso não foi feito explicitamente, mas cada depoimento, cada peça gráfica, cada imagem foi colocada intencionalmente para ressaltar o contexto não só histórico, mas também político, artístico e cultural.
Aproveito o espaço para compartilhar outros comentários sobre o livro Circo Nerino publicados na ocasião de seu lançamento (2004).
Abraço a todos e Viva o Circo!
O Globo – 24 de Dezembro de 2004
Retrato de época
Cora Rónai
Houve um tempo, acreditem, em que não havia televisão; houve tempo, até, em que não havia sequer rádio ou cinema. As pessoas se distraíam lendo, contando histórias, fazendo a sua própria música. Iam ao teatro, quando havia teatro, e às apresentações das bandas nos coretos. Praticamente não havia cidade digna do nome sem uma banda e um coreto.
Mas a grande diversão, a festa que transformava a paisagem e alegrava os corações, era o circo. É difícil imaginar, no nosso mundo de entretenimento instantâneo e ininterrupto, o que representava a chegada do circo, sobretudo nas pequenas cidades do interior. A verdade é que já não há espetáculo, por grandioso que seja, capaz de superar, em impacto, a presença alegre da lona, que atraía igualmente a todos. O circo era a quebra da rotina, o grande assunto, a mágica que superava a imaginação. Não era à toa que o palhaço era ladrão de mulher, e que tanta gente fugia com o circo.
Durante 52 anos, entre 1913 e 1964, utilizando todos os meios de transporte imagináveis, o Circo Nerino, “o mais querido do Brasil”, viajou pelo país, armando a lona onde fosse possível, de largos e praças a terrenos baldios, passando até, em João Pessoa, por uma lagoa seca, abandonada pelos jacarés. Por precárias que fossem as instalações, porém, o público, fiel, garantia meses de aplauso, afeto e casa lotada.
Como tantos outros circos de cavalinhos, o Nerino nasceu da associação de meia dúzia de artistas, todos aparentados. Na época, circo ainda não era profissão que se aprendesse em escola especializada, mas destino de família; assim é que, pela árvore genealógica do Nerino, passam gerações de artistas, do palhaço Arrelia à atriz Renée de Vielmond. Licemar e Luciene Medeiros, da novíssima geração, nascidas já depois do Circo Nerino ter dobrado de vez sua lona, trabalham em Las Vegas, numa das equipes do Cirque du Soleil.
A vida era sonho… mas nem tanto
“Circo Nerino”, de Roger Avanzi e Verônica Tamaoki, é a empolgante saga desta aventura de cinco décadas. No livro, primorosamente documentado, a história familiar, que se confunde com a própria história do circo, mistura-se aos acontecimentos do Brasil e do mundo. Tudo é muito interessante, das viagens de navio no escuro, durante a Segunda Guerra, para evitar torpedos inimigos, ao final de uma seca no Ceará, em 1952, em que público e artistas abandonam o espetáculo para ir dançar, com alívio e prazer, debaixo da chuva que caía.
Roger Avanzi, de 82 anos, é filho de Nerino, de quem herdou ofício e personagem. Quando o pai ficou velho demais para fazer o palhaço Picolino, Roger, até então galã, virou Picolino II. Tomar a si a responsabilidade de assumir o papel principal do circo foi uma decisão delicada e difícil. “Nunca mais fui o mesmo”, confessa. “Talvez uma pessoa muito instruída, bastante sabida, consiga explicar essa transformação.”
Felizmente Verônica Tamaoki, a quem se deve a extraordinária pesquisa e o belo texto de “Circo Nerino”, sabe que certas coisas não se explicam. Equilibrista e malabarista, fundou a sua própria escola de circo em Salvador, a Escola Picolino, e criou o site http://www.pindoramacircus.arq.br, onde divulga notícias do picadeiro. Da sua intimidade com o universo circense nasce muito do encanto deste livro, em que o velho Nerino volta à cena com suas alegrias e tristezas, tragédias e atos de heroísmo, romances e desgostos. A poesia algo melancólica com que tantos de nós teimamos em pintar os circos dá lugar a uma vida trepidante, cheia de trabalho árduo, problemas práticos e contas para pagar. Uma vida de sonhadores, com os pés solidamente plantados na corda bamba.
O livro não é bem um romance, não é só uma coleção de fotos ou apenas um conjunto de depoimentos; é um pouco disso tudo, e muito mais: “Desde o início, o livro assumiu a direção de sua criação”, escreve Verônica, na apresentação. “Foi ele que nos dirigiu, não o contrário. E quando começou a mostrar sua cara, descobrimos que pertencia à aristocracia dos álbuns de fotografias dos circenses”.
O Estado de São Paulo – 10 de dezembro de 2004
CircoNerino nasce como obra de referência histórica
Beth Néspoli
Livro narra a comovente história da trupe que percorreu o Brasil na primeira metade do século passado.
Feito a quatro mãos pelo palhaço Picolino II, Roger Avanzi, filho de Nerino Avanzi, o criador do primeiro Picolino, e pela pesquisadora Verônica Tamaoki o livro Circo Nerino (Editora Códex, R$ 80) tem 354 páginas fartamente ilustradas, com belíssimas fotos, entre elas dezenas feitas pelo francês Pierre Verger (1902-1996).
Pela amplitude da pesquisa e pela documentação reproduzida em suas páginas – recortes de jornais, cartas, anotações em livro de ouro, depoimentos de artistas, pinturas de Bajado – essa publicação é desde já historiografia de suma relevância para a arte circense.
Para além dessa importância documental, Circo Nerino é narrativa que se mergulha como num livro de aventuras, sem vontade de parar antes de chegar ao fim. Paixão, risos e lágrimas são os principais elementos da comovente narrativa da criação, apogeu e queda do Nerino. Amantes dessa arte, aqueles que ainda não tiveram o prazer de conhecê-la e até os praticantes de esportes radicais certamente ficarão boquiabertos – como se estivessem diante de um perigoso número de trapézio – com as primeiras aventuras desses artistas que viajavam de barco e trem, enfrentando enchentes e tempestades – e tome lona pelo chão, correria para salvar coisas – antes da compra dos caminhões próprios. Não que as coisas tenham mudado muito depois, afinal, vale lembrar, o Nerino bateu os quatro cantos de um Brasil de estradas de terra, que mal iniciava seu desenvolvimento, na primeira metade do século passado.
Sabe aquela expressão ‘deixe estar jacaré, sua lagoa vai secar?’, pois é, quem não conhece sua origem vai descobrir nas páginas desse livro, mais especificamente na de número 61, quando os autores contam como o circo foi instalado dentro de uma lagoa seca, em João Pessoa, na Paraíba. Há histórias de heroísmo coletivo, como quando o pessoal do Nerino ajudou a conter um incêndio de grandes dimensões na cidade de Ilhéus, na Bahia. E muitos casos em que o circo mudou o rumo de uma vida, como no caso do artista Pingüim, um menino raquítico, deformado pela subnutrição, adotado pela família Nerino no interior de Minas Gerais, que se tornou um artista amado pelas crianças.
O livro traz também algumas histórias trágicas, como o depoimento emocionado de Alice Avanzi Silva sobre a morte de seu pai, Minervino Silva (1909-1946), numa tarde de ensaio. “Ele fez o giro gigante com tanta velocidade que, na virada da mão, a barra lhe escapou. Ele voou e caiu junto de mim. Eu e o Villy tentamos ajudar, mas ele pediu para que não tocássemos nele…” Minervino morreu pouco depois. Na página seguinte a essa triste história, vemos em belas fotos William Avanzi Filho, o Villy, filho de Minervino, ensaiando números de equilíbrio. O show não pode parar. Como disse certa vez um artista popular, o dia que a arte acabar será o funeral de Deus. A lona do Nerino não está mais armada, mas sua história continua viva, agora não só na lembrança de quem o viu, mas para sempre, nesse depoimento apaixonado de Picolino, estímulo sem igual ao nascimento de outros circos e novos palhaços.
Folha de São Paulo – 08 de dezembro de 2004
Casa rica. Um banjo. 628 cadeiras
Marcelo Coelho
Há coisa de dois ou três anos, eu costumava passar perto dos estúdios de um canal de TV aberta, especializado em programas para as classes C e D. Às vezes eu topava com algum astro da emissora -um animador de auditório, uma apresentadora de programa feminino, esse ou aquele comentarista esportivo, sem contar as ocasionais modelos e chacretes procurando emprego.
Foi só mais tarde -num dia em que vi dois anõezinhos saindo do prédio da empresa- que atinei com um fato óbvio: muita coisa da televisão popular se origina diretamente do circo; quem sabe o que nos choca ver transmitido por satélite seja natural num picadeiro.
Pedro de Lara, Renato Aragão e Sérgio Mallandro, pelo que sei, vieram da carreira circense; Chacrinha tinha muito, é claro, de palhaço, e faço idéia que o figurino da Xuxa até que poderia ser o de uma trapezista, malabarista ou amazona.
Na avenida Francisco Matarazzo, perto de onde moro, há dois circos em funcionamento. Não poderiam ser mais opostos em concepção, público e estilo. Tinham me recomendado o Circo Zanni, mais moderno e alternativo; entrei por engano no Circo Espacial, que não custava mais barato, mas era popular até dizer chega.
Os números clássicos -palhaços trocando cusparadas, mocinhas suspensas pelos cabelos, rosas decepadas num estalo de chicote- ocuparam pouco tempo do espetáculo. Logo se organizou, supervisionada por um palhaço, uma gincana do tipo “qual é a música”, exatamente como nos programas de auditório. O show ainda teve, para minha surpresa, uma peroração à moda dos pastores da Record. Em resumo, o circo deixava de influenciar a televisão para ser, agora, influenciado por ela.
Na semana seguinte fui ao Circo Zanni, menor e mais sofisticado. Vi números clássicos também: o palhaço que pedalava na menor bicicleta do mundo, o beijo a pique do casal pendurado no trapézio, a moça de guarda-chuvinha branco medindo passo a passo a corda bamba. Tudo se tornara, entretanto, mais irônico e erudito; o número da dupla trapezista brincava com as convenções do tango argentino, a aramista usara antes um grande guarda-chuva preto de verdade, respingando água na platéia… de modo que uma ambigüidade entre suspense e riso, entre o literal e o alusivo, punha-se em jogo no espetáculo.
Claro, toda cultura erudita pressupõe uma platéia mais descrente, menos ávida de desafogo e de catarse. Vários artistas do circo Zanni pareciam vir da classe média alta -e isso se deve ao fato de que, hoje, há cursos de circo assim como de teatro, à disposição de quem quiser se matricular. Antigamente, era uma arte que se transmitia de pai para filho.
É provável que, com isso, duas modalidades diferentes de circo tendam a separar-se mais e mais, conforme as próprias divisões sociais dos artistas e do público: um circo mais “erudito”, com uma linguagem vinculada ao teatro e à dança modernos, e um circo “popular”, influenciado pela televisão e pela música sertaneja.
Tudo isso é especulação, claro; mas vale notar outra reviravolta de influências nesse processo. Se agora o teatro moderno inspira um tipo de circo, é verdade também que o circo passa a ocupar bastante os palcos de teatro -vide a companhia dos Parlapatões, ou as montagens de Cacá Rosset. Mais ainda: retribui-se com isso uma velha dívida. Penso em que medida, por exemplo, as peças de Nelson Rodrigues não se basearam nos dramalhões representados nos circos de antigamente.
O Circo Nerino, por exemplo. A editora Códex acaba de publicar um belíssimo livro, com quase quatrocentas páginas de grande formato, contando a história desse circo que, de 1913 a 1964, excursionou por todo o Brasil. A qualidade da documentação é impressionante. Roger Avanzi, o palhaço Picolino 2º, hoje com 82 anos, é filho de Nerino Avanzi, (o Picolino 1º), fundador do circo. O livro traz fotos e recortes do seu arquivo, além do extenso e comovente depoimento que prestou a Verônica Tamaoki.
Comovente não é bem a palavra, porque logo pensamos numa atitude melancólica, em condescendências com o declínio, numa poesia do precário e do mambembe. Ao contrário, o que nos conta o livro é uma vida aventurosa, empreendedora, várias vezes trágica, mas sempre apaixonada.
Acompanhamos, ao mesmo tempo, a própria história do Brasil. O circo, que antes da guerra viajava de barco e de trem, vai aos poucos se convertendo ao transporte rodoviário: até um trator foi comprado para ajudar nas estradas mais difíceis. Outras dificuldades tinham de ser vencidas com diplomacia: conquistar o apoio dos padres era essencial nas cidades pequenas, ao mesmo tempo em que gestos de entendimento tinham também de ser feitos para a comunidade dos maçons.
Casamentos, sucessos, acidentes, mortes, rivalidades, gastos, investimentos, tudo está documentado, e tudo vale a pena ler. O inventário do circo, feito em 1964, é transcrito na íntegra, e tem a eloquência angulosa de um poema modernista. Cito alguns itens apenas: “Cenários de pano (7 x 4,5m): Casa rica. Casa média. Casa pobre. Altar com anjos. Senzala. Guanabara. Casa de Sheik. Navio com a cabeça dos marinheiros aparecendo nas escotilhas”. Outros itens: “Tabuletas de preços e avisos. Postes de luz. Cadeiras: 628 unidades. Um trombone. Um banjo”.
O mais bonito, entretanto, são as fotos. Por vezes, vemos a lona do circo em vista aérea, ocupando vasto terreno numa cidade desértica; outras vezes é a companhia em traje de gala, em plena glória de artistas. Melhor que tudo, há as fotos do público, algumas pessoas espiando a câmera de soslaio; as outras, a maioria, reaparece nessas páginas com os olhos perdidos no espetáculo, perdidos no sonho e também perdidos no tempo.