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Pé na Estrada

O dia em que o circo chegou a Moçambique.

 

Circo estreia no “Thlanganissa” – festival de artes promovido pela AISM – American International School of Mozambique

Cafi Otta, especial para Panis & Circus

Em janeiro de 2015 recebi um convite inesperado de um querido casal de amigos brasileiros que vivem há bastante tempo em Maputo, capital de Moçambique. Era uma oferta de trabalho: dar cinco dias de oficinas de circo e fazer duas apresentações do espetáculo “Carlos Felipe em Apuros”, em que atuo.

A Escola Internacional Americana de Moçambique – American International School of Mozambique, AISM – promove, anualmente, o “Thlanganissa” – festival de artes que oferece aos seus alunos, alunos de escolas públicas e particulares de Maputo, cerca de 10 cursos rápidos de dança, teatro, música e artesanato. Esse ano o circo fez sua estreia no festival.

Aceitei o convite de imediato, afinal ofertas de trabalho fora do Brasil não caem do céu, ainda mais na África, ainda mais vindas de pessoas tão especiais.

 

Alunos durante a apresentação do final de curso na Escola Americana / Foto Divulgação

 

Como não se atravessa o oceano Atlântico todos os dias, o ideal é aproveitar chances como essa para conhecer o país de destino. Infelizmente, nem sempre dá pra fazer o ideal. Dessa vez a viagem precisou ser curta – apenas oito dias, contando ida e volta, ou seja, 24 horas dentro de aviões e saguões de aeroportos.

O Grupo Namakaca, do qual faço parte, está no meio do processo de montagem de um novo espetáculo, com estreia marcada para o final de junho, e não dava pra deixar os parceiros e a equipe na mão. Assim, o cronograma de trabalho foi apertado e intenso.

 

Plateia assiste ao espetáculo de fim de curso na Escola Americana / Foto Divulgação

 

Direto do aeroporto para a escola 

Saí de São Paulo numa segunda feira à noite, e depois de mais de 12 horas de voos, atrasos, filas, inúmeras medições de temperatura por causa do ebola e conexões demoradas desembarquei em Maputo, terça-feira, às 13h, horário local. Detalhe: são cinco horas de diferença no fuso horário. Do aeroporto fui direto para a escola americana, onde consegui pelo menos almoçar antes de começar minha primeira aula.

É uma delícia visitar um país de língua portuguesa. Não tenho nada contra as outras línguas, só que é uma sensação muito agradável entender e ser entendido do outro lado do mundo, e fica fácil sentir-se em casa mesmo estando a mais de 7.800 km de distância do Brasil.

Orgulho dos alunos

Pirâmide humana dos alunos durante a aula / Foto Divulgação

 

Recebi um verdadeiro presente. Uma turma de 10 crianças portuguesas, estudantes da Escola Portuguesa de Moçambique. Eles tinham entre 9 e 11 anos de idade e foram incríveis durante os cinco dias da oficina, com direito a apresentação no último dia de aula, no Teatro Avenida, um dos maiores teatros da cidade. Além deles havia também um brasileiro de 16 anos, aluno da Escola Americana, e dois moçambicanos de uma escola pública local, ambos com 14 anos.

As aulas tinham 2 horas e meia de duração, tempo relativamente curto para aprender técnicas circenses, principalmente, com uma apresentação agendada para o final do curso. Na prática, foram apenas quatro dias de aulas, de 16 a 20 de março, um deles dedicado aos ensaio para o espetáculo que aconteceu no dia 21/3.

 

Cafi Otta de camiseta branca na base da pirâmide humana / Foto Divulgação

 

Ensinei técnicas de malabares e manipulação de objetos, equilíbrio com bastões, pirâmides humanas e uma pincelada de técnicas de palhaço. Os números apresentados foram montados em conjunto com os alunos, que colaboraram com grande parte das ideias e fizeram questão de ensaiar até a  exaustão para que nada saísse errado na hora do show.

Fiquei cheio de orgulho dos meus pupilos, tanto pela apresentação, que foi linda, quanto pela relação que conseguimos desenvolver durante as aulas. Um prazer e uma honra ter sido seu primeiro professor de circo, e espero que continuem suas peripécias por aí. Eles apresentaram números de malabares, pirâmides humanas, equilíbrio de bastões e palhaço, todos marcados pela emoção de pais, amigos e também do professor coruja.

Plateias Misturadas

As duas sessões do espetáculo “Carlos Felipe em Apuros” aconteceram dentro da Escola Americana. O espetáculo foi montado há cerca de três anos e desde lá foi apresentado em diversos lugares do Brasil e agora tem sua primeira experiência internacional. Ele se baseia na relação entre o artista e a plateia e usa o circo como veículo para esta conexão. 

Não é comum ver brancos e negros juntos, ainda mais num ambiente escolar. As escolas particulares têm poucos alunos negros, como no Brasil. Nas escolas públicas, os brancos são raros. Por isso, foi uma honra me apresentar para essa plateia e  perceber que a arte mais uma vez cumpriu seu papel, ao proporcionar emoções sem distinção de raça. Durante as apresentações, pude me conectar com todos da mesma maneira.

Na segunda sessão, um fato especial. A maioria das crianças presentes eram deficientes auditivas, e percebi, claramente, que a falta de um sentido aguça muito todos os outros. Nesse caso, eles estavam atentos a cada movimento que eu fazia, a cada respiração mesmo, uma dádiva para qualquer artista que gosta de falar pouco em cena. Ainda não sei dizer quem se divertiu mais.

Fuzil e enxada

Lago na cidade de Namaacha / Foto Divulgação

 

Em Maputo, não dá pra deixar de notar as condições de pobreza da população, da falta de saneamento, de abandono e descaso,  tudo isso em um país cuja bandeira estampa um fuzil e uma enxada. Enfim, problemas que encontramos de monte no Brasil, mas que lá são parte da paisagem, não estão escondidos nas áreas mais pobres das nossas grandes cidades.

 

Mulheres caminhando a beira da estrada / Foto Divulgação

 

Estação ferroviária construída pelos franceses / Foto Divulgação

 

Outra cena que me chamou a atenção foi que enquanto esperava o avião ser carregado no aeroporto de Joanesburgo, na África do Sul – não existem voos diretos para Moçambique, sendo necessário fazer escalas na capital sul-africana – pude ver pela janela que todos os funcionários do aeroporto que tinham algum contato com as malas, colocando-as ou tirando-as das aeronaves, eram revistados por outro funcionário antes de seguirem para o próximo avião, quando eram revistados novamente ao final do trabalho, tudo feito ali, na pista, ao lado do avião lotado de passageiros. Uma situação no mínimo constrangedora.

 

Mercado municipal de Maputo/ Foto Divulgação

 

Viagem a trabalho, mas nem tanto

Tive apenas um dia de folga, o domingo antes da volta pra casa, que foi aproveitado ao máximo. Passamos o dia na cidade de Namaacha, distante cerca de 1 hora de Maputo, na fronteira com a Suazilândia. A cidade é famosa por suas fontes de água mineral, e cheia de paisagens deslumbrantes. Visitamos, e nadamos, num lago maravilhoso. Na hora de entrar fiquei com muito medo do que poderia se esconder embaixo d’água. Cobras, crocodilos, hipopótamos. Só relaxei quando alguns moradores locais, aos risos, me garantiram que era seguro nadar ali. Ainda bem, porque o calor de quase 40o à sombra não estava moleza.

À noite, de volta a casa dos amigos, um delicioso jantar de despedida marcou o fim de mais uma aventura pelo mundo. Que venham as próximas!!!

 

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