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O diabo está nos detalhes… circenses
No espetáculo ‘‘Um Réquiem para Antonio’’, cenas irônicas debocham da inveja e daquilo que origina a inveja: a virtude do outro
Mônica Rodrigues da Costa
Especial para Panis & Circus*
“Um Réquiem para Antonio” é um espetáculo sobre a inveja que tem como mote e mito a relação entre o compositor italiano Antonio Salieri (1750-1825) e o músico austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791). O diretor da peça, Gabriel Villela, representa-a no teatro entre a morbidez e o escracho, simulando um picadeiro tipicamente brasileiro, mas felliniano, antropofágico, porém, mineiro.
Armado para dois atores e duas coristas, que também atuam e cantam. Com texto de Dib Carneiro Neto, o enredo mostra Salieri no leito de morte ao rememorar o relacionamento com Mozart.
Apesar de seis anos mais velho, revela o quanto a música de Mozart renovou sua própria obra. Eis aí o problema central do espetáculo: Salieri “morde a mão que o alimenta”. No livro clássico “Inveja e Gratidão” (1957), a psicanalista Melaine Klein (1882-1960), ao analisar esse provérbio, definiu a inveja como “[…] o sentimento raivoso de que outra pessoa possui e desfruta algo desejável – sendo o impulso invejoso o de tirar esse algo ou estragá-lo”.
É desse modo que Milos Forman explora no filme “Amadeus” o mito da inveja. Da mesma perspectiva, Villela trabalha a encenação, que usa, além do filme, muitas outras referências e não só temáticas. Às vezes o procedimento é plástico e formal. Man Ray** e as máscaras barrocas do teatro europeu.
O ator Elias Andreato apresenta-se como palhaço de nariz negro e compõe um moribundo que tosse em seus momentos finais. Entre um gesto e outro de corpo, como quando a angústia toma o personagem, Andreato muda o tom e o ritmo e vai da lamúria aos impropérios, escancarando o signo da inveja.
Ao mesmo tempo em que blasfema contra Deus, elogia a inventividade do jovem músico. O diretor acrescenta à cena ditos e cantigas interioranos.
Em um desses momentos, Salieri confunde a presença de Mozart e diz, debochado: “Assombração! O que queres de mim, criança infernal?”.
O jogo sério-cômico não é visto no filme de Forman, construído com a gravidade da verossimilhança durante a última confissão de um velho antes de morrer. A exuberância de ornamentos na decoração e nos vestuários em Salzburg e em Viena. Era moda usar perucas no século de Mozart.
Mais inventiva, a encenação de Villela desfia colagens do trágico sobre o terrível, deste com o cômico, cuja pegada circense ironiza a história, deixa-a kitsch como um filme de Hollywood.
Ao tratar dessa forma jocosa os mitos da tragédia, o espetáculo produz uma imagem que aos poucos amplia seu espaço e se desdobra. O espectador se esquece da trama tamanha é a interrupção épica durante o espetáculo, em especial, na visualidade e na música, tocada no piano ao vivo e que mistura o erudito, o popular, a MPB e a elocução dramática.
A ironia é sempre o procedimento em todos os planos: cenografia, trilha sonora, iluminação, figurino. O chiste, seja verbal, sonoro ou visual, mistura padrões, aromas e tecidos de cores diversas. Como se a matéria plástica, monstruosa por fugir do gosto burguês, ampliasse distorcendo, como os espelhos deformantes das feiras e parques de diversões no interior.
A atuação de Claudio Fontana é mais circense do que trágica, trata-se de um personagem imaginário e condensado no delírio em que se encontra o personagem de Andreato. O Mozart dele é um manipulador no duplo sentido: dá vida a um fantoche de luva e se instala multifacetado na mente de Salieri, argumentando contra os pensamentos do protagonista.
Fontana combina risadas empacotadas, que imitam o ator do filme, com jogo de bilhar, pilhéria e provocação. A imagem irônica está em seu figurino cheio de camadas, estilos de roupa em cima de outros gêneros, figurinos de épocas, como as qualidades do Mozart: imaturo, confuso, caótico. Dele brotam, explica o invejoso Salieri, a melodia mais delicada e alegre, o ritmo saltitante das danças nos salões aristocráticos e, o pior, ou melhor: a capacidade que suas composições tinham de cair no gosto e reconhecimento populares.
Nada mais acertado do que traduzir emoções assim para suportes estéticos seculares, como o circo, a igreja e a feira, em alusões entrecruzadas. O circo, dos horrores da dor da inveja e do aspecto bizarro do riso, onde tecidos multicoloridos se misturam: sedas, lenços orientais, pedaços de épocas, plásticos, jarro de planta contra o mau-olhado e cálices de aço inoxidável, quimonos e meias brancas de moradores urbanos em trajes de legging.
Significados se espalham pelo palco e estão nos corpos dos atores. Elias Andreato é o moribundo que a toda hora sai do caixão e conversa, no estilo de “…Brás Cubas”, de Machado de Assis, e de “A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água”, de Jorge Amado.
O espectador identifica a bricolagem de Villela em “Réquiem…”. O que ainda vê ele nessa peça? O tropicalismo, as cirandas de Minas Gerais, objetos particularíssimos e enigmáticos e o universal, lado a lado e sobrepostos. Muito mais, coisas que a gente nem consegue captar, mas sente. Essa forma justaposta da cultura é a mesma da poesia e dos palhaços. A música é um comentário à parte. De especialista.
Observação sobre circo e arquitetura da trama cênica
O palco é um círculo discreto porque acompanha a arquitetura do Tucarena e a movimentação propiciada pelo espaço é o pingo no “i”, revelador do procedimento do diretor da montagem. No alto das escadarias há dois púlpitos, perdão, balcões, o andar elevado de espaços onde ocorrem em geral algumas cenas no palco elisabetano.
Como representar a inveja, sentimento que nasce com a espécie, nato, inato, hereditário e genético, pesquisado por psicanalistas e objeto de estatísticas e receituários em revistas e pesquisando no Google.
O circo tem a sua versão: altera a cena que seria sublime, tornando-a chula e escrachada, como os musicais de teatro de revista e os picadeiros do interior e do passado, meio fantasmagóricos.
No segundo andar do teatro, na peça, ocorre a metamorfose da ironia no trágico e no cômico. O sentido se adensa. Enquanto no coro e no piano são apresentadas referências sacras e laicas, desde a Bossa Nossa, com Tom Jobim, e o canto das vozes femininas, até as trilhas de filmes e gêneros musicais.
Ficha técnica:
Texto: Dib Carneiro Neto. Direção: Gabriel Villela. Elenco: Elias Andreato, Claudio Fontana, Nábia Vilela e Mariana Elizabetsky. Figurino: Gabriel Villela e José Rosa. Cenário: Márcio Vinícius Adereços: Shicó do Mamulengo. Iluminação: Wagner Freire. Preparação vocal: Babaya. Espacialização vocal e antropologia da voz: Francesca Della Mônica. Direção musical e arranjos: Miguel Briamonte. Pianista: Fernando Esteves. Assistência de direção: Ivan Andrade e Daniel Mazzarolo. Produção executiva: Clíssia Morais e Francisco Marques. Direção de produção: Claudio Fontana.
Serviço:
UM RÉQUIEM PARA ANTONIO – Teatro Tucarena. rua Monte Alegre, 1024, Perdizes – São Paulo – tel: (11) 3670-8455. Sex. e sáb., às 22h; dom., às 19h. R$ 40 (sex.) e R$ 50 (sáb. e dom.). Classificação: 14 anos. Vendas online – www.ingressorapido.com.br. 300 lugares.
Klein, M. Inveja e gratidão e outros trabalhos (1946-1963). Rio de Janeiro: Imago, 1991, pág.212.
*Mônica Rodrigues da Costa é crítica de teatro para crianças no “Guia da Folha” e doutora em comunicação de semiótica pela PUC/SP.
** Main Rain (1890-1976) – fotógrafo e pintor norte-americano vanguardista.
Tags: Antonio Salieri, Dib Carneiro Neto, Gabriel Villela, Um Réquiem para Antonio, Wolfgang Amadeus Mozar
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