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“O mundo encantado de um palhaço”
RIO — “Marcio Libar tem o mesmo par de sapatos há 20 anos. Ao abrir a maleta de seu palhaço Cuti Cuti, a primeira coisa que ele tira de dentro são os calçados de couro com bico grande e arredondado, feitos por um velho sapateiro da Praça da Bandeira. Há pouco tempo, ele reencontrou o homem, chamado Ernesto, e com ele consertou parte do bico. O solado original, duro feito pedra e cheio de desníveis, foi mantido em sua imperfeição.
— Repare como é torto. Quando eu o calço, já entro no desequilíbrio, já sei onde escorregar, como cair. Ele me leva ao mundo encantado — conta, aos 48 anos, com a voz rouca e os dreads sobre os ombros.
Libar gosta de coisas tortas e imperfeitas, de pessoas que escorregam e caem. Como palhaço, aprendeu a não levar a vida tão a sério, “já que ninguém sairá vivo dela”. Afirma ser medíocre e preguiçoso a maior parte do tempo. Não dirige, não fala inglês e pena para enfiar um prego na parede. Ao admitir fraquezas — “teria saído com mais delicadeza da vida das pessoas, teria usado drogas por menos tempo” —, ele encontra amor dentro de si. Mas também sabe que a confissão deixa à vontade as pessoas ao seu redor. Faz parte do seu show.
No palco de Libar, o palhaço Cuti Cuti cedeu espaço a uma figura um tanto temível: o Messiê Loyal. É com esse personagem, de fraque vermelho e cartola, um antigo monsieur dono de circo, que Libar vem formando uma discreta legião de seguidores. São pessoas que participam do jogo-oficina criado por ele há três anos. Trata-se de um reality game em que todos são aprendizes de palhaço — e o objetivo é ser aceito no Gran Cirque du Messiê Loyal.
Anônimos e famosos se misturam a cada workshop, sempre com 13 pessoas. Taís Araújo, José Mayer, Stenio Garcia, Leandra Leal, Luana Piovani e Reynaldo Gianecchini são alguns dos globais que já participaram — e entraram para a Liga Extraordinária dos Idiotas, versão bem-humorada de uma sociedade secreta que já conta com mais de 800 membros. Eles respeitam os segredos do jogo e não falam sobre o que acontece no Grand Cirque. A oficina custa R$ 750 reais e dura um fim de semana (uma vez ao mês, na Fundição Progresso).
Libar não trata os famosos de modo especial. Em alguns casos, faz questão de fingir que não os conhece durante o trabalho. Ficou olhando para Gianecchini, por exemplo, e no segundo dia soltou: “Você poderia ser modelo”. Para José Mayer, escolheu um codinome provocador: Antonio Fagundes. Tony Garrido era Carlinhos Brown. Mas a brincadeira é coisa séria. Muitos participantes derramam rios de lágrimas, especialmente no momento final, quando enfrentam o picadeiro.
— É nessa hora que eu mudo a vida das pessoas. Uso a arte do palhaço em toda a sua potência. Como as regras do jogo são minhas, consigo fazer com que as pessoas tirem as máscaras. O palhaço não representa: ele brinca, joga e aceita quem ele é. E o difícil nesse mundo é ser quem se é.
ENCONTRO COM A FILHA
Muitas vezes, o palhaço chora por dentro enquanto, por fora, faz os outros sorrirem. Um episódio do passado atormentou Libar durante anos. Todo dia 23 de maio, ele sabia que sua única filha fazia aniversário. Fruto de uma relação meteórica, Giuliana cresceu sem saber quem era o pai. Não podia imaginar que ele e sua mãe se conheceram como figurantes do clipe “Eu queria ter uma bomba”, pouco antes de Cazuza deixar o Barão Vermelho. Apaixonaram-se e ela engravidou aos 17 anos. A família quis o aborto, a menina disse não. O patriarca italiano, velho e bravo, chamou Libar para conversar.
— Estávamos na Praia de Copacabana, em frente à Rua Belford Roxo. Nunca esquecerei aquelas palavras: “Você não vai assumir sua filha; você vai é sumir. Minha neta não precisa de um pai negro e pobre”. Chorei muito, me senti um merda, incapaz de ser pai, de ser qualquer coisa. Só me restava ser palhaço — recorda.
O primeiro abraço de pai e filha veio apenas há dez anos, depois de ele fazer um mapa astral e decidir — com o entusiasmo que os astros lhe deram — procurar a jovem. Ajudado pelo irmão, encontrou Giuliana na rede social Orkut. Emocionou-se ao ver suas fotos pela primeira vez: os mesmos olhos de ressaca, o mesmo sorriso, os cabelos de Bob Marley.
— No primeiro Dia dos Pais, ele estava em turnê na Europa, mas pegou um avião e veio ficar comigo. Depois, voltou para Lisboa — recorda Giuliana, de 28 anos, a quem Libar chama de filhote. Hoje, ela é o braço direito dele em todos os seus projetos.
FAZENDO GRAÇA EM MÔNACO
O único professor de interpretação que Libar teve foi Carlos Wilson, o Damião, figura lendária do Teatro O Tablado. Na primeira aula, no Centro de Artes Calouste Gulbenkian, Damião apresentou-se à sua maneira: “Eu sou zonasulzérrimo e meu sotaque é o ipanemês”, disse, para uma plateia atônita. Criado na Abolição, Libar não frequentava a Zona Sul até então. Estava apenas começando a nascer para o mundo. Anos depois, em 1986, fundou com amigos uma das companhias teatrais mais longevas do Rio — Teatro de Anônimo, sediada na Fundição Progresso.
Foi se entregando ao tal mundo encantado, até que a palhaçaria tomou conta de sua vida. Conheceu alguns dos maiores palhaços brasileiros e estudou também com estrelas da palhaçaria clássica, entre elas o italiano Nani Colombaioni, representante de uma tradicional família de palhaços e artistas de circo. No filme “I Clowns”, de Federico Fellini, a família Colombaioni concebeu a cena final, do funeral do palhaço. Libar e o ator João Carlos Artigos aperfeiçoaram com Nani o número “Um, two, trois”, uma comédia sem fala que foi selecionada para o Festival Internacional de Circo de Monte Carlo, em 2006. Competindo com palhaços do mundo inteiro, eles venceram dois dos quatro troféus em disputa: o Nariz de Prata e um prêmio especial do Cirque du Soleil.
— Quando a princesa Stéphanie de Mônaco subiu ao palco para entregar o troféu, me lembrei da música “Olhar 43”, do RPM — recorda, antes de cantarolar: “Stéphanie de Mônaco aqui estou, inteiro ao seu dispor!”.
Ele se lembrou também da pessoa mais importante de sua vida: o avô, Seu Boliva, que ajudou na sua criação após a morte do pai, quando tinha 6 anos. Seu Boliva apresentou aos netos o Centro do Rio, o carnaval, o Maracanã. Na Cinelândia, o velho dizia: “Ali é o Teatro Municipal. Tem ópera, tem balé, as pessoas vêm muito bem vestidas. Ali é a Biblioteca Nacional. Você entra com a sua caderneta da escola, pede um livro, se senta e lê à vontade”, lembra Libar, com uma voz muito diferente, as palavras saindo devagar. Sua mãe acha que ele se parece cada vez mais com o avô, morto em 1988. Libar sonha com ele até hoje.”
Postagem – Alyne Albuquerque
Tags: Leandra Leal, Messiê Loyal, palhaço Cuti Cuti, Reynaldo Gianecchini, Taís Araújo