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Cirque Plume questiona “O tempo foge?”
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Espetáculo mostra que o tempo voa nos trapézios, nos saltos mortais e fica de cabeça para baixo pendurado na corda
Mônica Rodrigues da Costa, especial para Panis & Circus*
“Tempus Fugit? Une Ballade sur le Chemin Perdu” (o tempo voa? Uma viagem pelo caminho perdido, em tradução livre) acerta quando elege a música para falar do tempo, levando por meio de todos os suportes estéticos aos ritmos que elenco e melodia impõem.
O espetáculo esteve em curta temporada no Teatro Alfa, na capital paulista, e aborda as dimensões temporais nas artes: o teatro, a música, o risco no circo, a dança, a performance, volátil em princípio. O tempo na forma de experiência dramática. O tempo voa nos trapézios e nos saltos mortais e fica de cabeça para baixo pendurado na corda. Foge no sopro das flautas, cornetas e trombones e se perde nos delicados sons aquosos-metálicos da trilha sonora.
É sutil a semântica da dramaturgia, ela nasce dos movimentos dos multiartistas, que realizam suas técnicas com apuro e correm contra o tempo.
Em primeiro plano, a música e a dança comparecem em todas as cenas e a música é executada com diferentes formações da orquestra, que tocam desde música excêntrica, com instrumentos inventados ou com combinações criativas, até a música circense tradicional.
O espetáculo, do Cirque Plume, tem enredo aberto, dependente da interpretação dos espectadores, mas é fácil de entender porque apresenta com teatro físico (sem palavras) as atrações de picadeiro: malabarismo, trapézio, mastro, arame, corda, corda marinha, acrobacias de solo e aéreas, aliadas a números de dança, teatro de sombras, números de música ao vivo.
As intervenções dos palhaços, que em geral ocorre nos intervalos no picadeiro convencional, alongam-se em “Tempus Fugit?…”, constituindo atrações com o mesmo peso das outras e, em algumas aparições, os palhaços ganham espaço e tempo bem maiores do que as demais atrações.
Uma performance de destaque é a de um dos palhaços com uma bola vermelha. Ela se transforma em esfera ao ser projetada num filme em que se movimenta conforme o palhaço real, em sincronia, por sua vez, com as imagens da tela, joga a bola para cima, quica, levanta, joga a bola para baixo, para os lados. As acrobacias variam e depois diminuem até a bola vermelha se tornar o nariz do personagem, que aparece em uma pintura – o retrato de um palhaço. O número então se desdobra no palco, quando o palhaço faz equilibrismo em cima de uma bola gigante.
A música mistura instrumentos eruditos, de música popular e os inventados, explode em curto circuitos elétricos que emitem barulhos e tem trechos gravados.
Em uma das cenas musicais excêntricas, a orquestra, com técnica infalível, combina essa música exótica com dança e coreografias de ginástica de solo ou números aéreos.
O conjunto musical é numeroso e toca muitos instrumentos em incessante recombinação – bateria, marimba, trombones, corne francês, trompete, piano, acordeão, eufônio, sousafone, violino, alaúde, guitarra elétrica, corneta, saxofone soprano e tenor, clarinetes, baixo elétrico e acústico, duduk.
O elenco faz música com o corpo. Os multiartistas executam façanhas em mastros, caminham e correm no arame tenso e se envolvem em redemoinhos em que giram as saias rodadas e coloridas das mulheres.
Como no espetáculo “L’Atelier du Peintre” (2009), o Cirque Plume é mestre em interações entre linguagens. Em “Tempus Fugit?…”, o tema é o tempo no circo teatro, que é a música, o risco e a leveza dos voos nos passos dos dançarinos.
Fabulação do tempo
O espetáculo começa com um piano pendurado no alto, que desce devagar, com o peso das plumas que caem sobre o instrumento. Em primeiro plano um pêndulo de vidro atrás de uma lona não armada. O vaivém representa a ideia do ciclo. Caixotes compõem cenas reais, de teatro de sombras, digitais e também projetadas nos filmes que entram e saem na cenografia mutante.
No chão, uma mala da itinerância, enquanto soa a voz rouca de um cantador de blues, que depois é imitada por uma voz feminina ironicamente aguda.
Há barulhos ambientes, que aumentam até se instalar uma ventania no palco com bela coreografia de resistência ao vento. A cena é atravessada por um curto-circuito relâmpago ruidoso.
Em atmosfera – a peça é escura, o que faz o tempo parecer pouco definido – sombria e com os traços dos personagens dissolvidos na semiescuridão, surge uma traquitana de três andares trazendo a orquestra e os atores, que armam a cena.
Volta e meia um narrador dá explicações, mas elas não auxiliam tanto assim o espectador a compreender o que vê, apenas a pensar.
Há então o número de trapézio de uma eficiente e graciosa bailarina, que mistura sapateado com giros no ar.
Atores entram e saem de aparelhos como tonéis, o que representa a sucataria sofisticada da cenografia circense.
Em dado momento um ator fecha as cortinas em pleno número e inaugura um abrir e fechar de cortinas. Algumas delas são as telas de projeção de filmes e para o teatro de sombras.
As palhaçadas são universais e o público se diverte. Um dos palhaços cai da cadeira e a conserta com cuspe. Outro faz uma mímica com a voz que se repete ao longo do tempo de duração do espetáculo, um tipo de “grulogruloglo”. Esse ator realiza o número clássico do chapéu, levando-o para o lado do corpo que bem entende.
Uma orquestra com instrumentos prateados, integrada aos aparelhos metálicos da parada de mão, contribui para a ginasta bailarina mostrar que sabe o que faz.
É seguida por um grupo de atores que fazem música com o corpo. Na vez do palhaço, o personagem rege o público e realiza um show de diversidade sonora. A plateia toda participa. Entra o narrador para ressaltar o risco no circo: o salto mortal da juventude.
O número auge é o do músico violinista, que sai voando com a partitura também voadora com a orquestra ao vivo. A ilusão especial concretizada na ação do tempo musical.
30 anos
O presente espetáculo foi montado para comemorar os 30 anos de existência da companhia francesa Cirque Plume, que se originou do teatro de rua do interior da França. Apresentou no Teatro Alfa, em São Paulo, “Plic Ploc” (2006) e “L’Atélier du Peintre” (2012).
Apesar da destreza, o espetáculo é longo – quase duas horas. Ficaria mais agradável se alguns números fossem encurtados.
Ficha técnica
Texto, direção, cenografia e direção artística: Bernard Kudlak. / Composição, arranjos e direção musical: Benoit Schick, com colaboração de Robert Miny. / Figurinos: Nadia Genez. / Criação de luz: Fabrice Crouzet. / Sonoplastia: Jean-François Monnier. / Invenções e máquinas: Yan Bernard. / Treinamento gestual animal: Cyril Casmèze. / Elenco: Nicolas Aubin, Marie-Ève Dicaire, Grégoire Gensse, Mick Holsbeke, Sandrine Juglair, Pierre Kudlak, Alain Mallet, Maxime Pythoud, Diane-Renée Rodriguez, Molly Saudek, Benoit Schick, Brigitte Sepaser, Laurent Tellier-Dell’Ova.
*Mônica Rodrigues da Costa, jurada do Prêmio São Paulo de Teatro Infantil e Jovem, crítica do “Guia da Folha e editora do selo Publifolhinha.
Postagem – Alyne Albuquerque