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“Pelo Cano” é a arte da transformação

 

Paola Musatti como a palhaça Manela, no espetáculo "Pelo Cano"/Foto João Caldas/Divulgação

 

A revolução dos objetos transtorna o cotidiano e provoca gargalhadas

As atrizes Paola Musatti (Manela) e Vera Abbud (Emily), do Programa Doutores da Alegria, executam gestos tão expressivos para contar as aventuras de duas palhaças que não precisam mesmo de palavras ou piadas verbais no espetáculo “Pelo Cano”, que esteve em cartaz no Espaço Parlapatões, no centro paulistano e que deve voltar qualquer hora dessas aos palcos.

Seus truques deixam à vista os procedimentos de construção do espetáculo. O público tem a sensação de que a dupla improvisa, tal é a sucessão de cenas que nascem umas das outras em ritmo ágil na direção da desconstrução de significados inteligíveis.

Mas a linguagem é controlada e se vale da transformação de uma cena em outra por meio da mudança de sentido dos objetos cênicos e do cenário. Se o biombo do palhaço, signo da precariedade do artista, está presente, a ele é somada a criatividade da geração de sentidos novos.

Por exemplo, o biombo negro no fundo do palco é índice do estilo do palhaço improvisador, que desenha o círculo e começa a criar, reinventando números clássicos, mas, em “Pelo Cano”, é um anteparo para esticar os braços e as pernas das palhaças quando elas ficam atrás do biombo para trocar de figurino ou competir pela piada mais engraçada.

Atrás do biombo, tudo acontece e é transmitido aos espectadores pelo ponto de escuta, como definiu Arlindo Machado ao estudar a trilha sonora do cinema. Ouvimos uma delas fazer xixi durante um tempo longo. Objetos são atirados atrás do biombo e vidros se estilhaçam.

É certo que a graça das palhaças consiste na ação clássica de errar o número e provocar o riso, mas não apenas isso. Elas esvaziam a significação cotidiana dos objetos, que perdem a função corriqueira e ganham novas identidades para enriquecer a percepção da plateia.

As duas palhaças entram no palco como dois anjos musicistas e passam o chapéu para ganhar uns trocos. Desce do céu como um passe de mágica – na real, desce do teto da caixa do teatro de forma evidente – uma nota de cem reais. Felicidade. As duas dividem o dinheiro, partindo-o ao meio e repartindo-o tantas vezes que a nota perde o valor. Ao tentar recuperá-lo com o auxílio da fita adesiva, acabam fazendo um boneco de papel.

De forma que surpreende a plateia, o biombo logo depois é desmontado e vira um balcão para manipular o boneco criado num teatro de animação.

O biombo é repartido mais uma vez e, ao tentar colá-lo, com a mesma fita adesiva, as palhaças constroem um picadeiro de circo de pulgas. Eis que a fita se transforma no fio de arame onde o boneco feito de dinheiro apresenta um número de equilibrista, anda de monociclo e salta das alturas.

Momentos assim se sucedem e os espectadores elevam a temperatura e soltam o riso.

As atrizes ainda manipulam figurinos, dois canos de onde tiram música e outras engenhocas engenhosas. Cabeça boa.

Paola e Vera trabalham com o que o semioticista (pesquisador de signos) Jean Baudrillard chama de arranjo dentro do sistema de objetos do mundo. É um feliz reconhecimento à metalinguagem, a linguagem que comenta a si própria.

 

Vera Abbud como a palhaça Emily em "Pelo Cano/Foto Divulgação

 

Ficha técnica

Criação e direção: Paola Musatti e Vera Abbud. Supervisão: Fernando Sampaio (da cia. La Mínima). Elenco: Paola Musatti e Vera Abbud. Manipulação de objetos: Edu Amos. Cenografia: Marisa Bentivegna.

(Mônica Rodrigues da Costa)

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