Pé na Estrada
Português com lindo sotaque
“Suavidade no falar o português tem a ver com o fato de o país africano ter recebido influência oriental”, diz o escritor Mia Couto.
Carmelita Benozatti, especial para Panis & Circus
Em dezembro passado, fiz uma viagem de trabalho a Maputo, capital de Moçambique, e como nos últimos anos tenho sido lexicógrafa e tradutora, gostaria de contar um pouquinho sobre minha impressão do português que ali é falado para os leitores do Panis & Circus.
Numa tarde, fui almoçar em uma espécie de padaria e doceira bem portuguesa, herança de uma colonização já quase imperceptível. Havia uma mocinha atrás do balcão e ao perguntá-la sobre a refeição servida naquele dia, ela não me entendeu e foi pedir ajuda a outro rapaz que também trabalhava ali. O rapaz dirigindo-se a mim perguntou o que eu queria. Eu, frustrada, disse: “Puxa, que pena, ela não me entendeu e falamos a mesma língua…” Ele poderia ter tido simplesmente que a mocinha não havia entendido o meu sotaque brasileiro, mas veio com uma das explicações mais poéticas que já ouvi: “ Ela não estava muito concentrada nas palavras e elas escaparam…”
Nesta mesma viagem, tive a sorte de me encontrar com o poeta e escritor Mia Couto, verdadeiro orgulho nacional e mestre em criar palavras novas em seus inúmeros livros, vários publicados aqui no Brasil (esteve várias vezes na Feira Literária de Paraty) e quando comentei esse episódio e perguntei se as pessoas falavam assim por “ beberem” de sua poesia, ele retrucou: “ muito pelo contrário, eu é que me aproprio da língua falada nas ruas”.
Os moçambicanos são suaves ao falar, falam baixinho, quase sussurrando- é um lindo sotaque para nós, brasileiros, quase uma mistura do carioca (sim, eles “ puxam” os “ ésses” e os “ érres”) e o português falado em Portugal. O próprio Mia Couto comentou que esta suavidade tem a ver com o fato desse país africano ter recebido muita influência oriental. Moçambique fica no lado oriental do continente africano, de frente para o Mar Índico, é o caminho das Índias, literalmente. Mumbai, na Índia, fica logo ali mais em cima no mapa.
Há 22 línguas faladas pela população e muitas não se entendem. Um moçambicano que aprende o português é como se aprendesse uma segunda língua. No caso de Moçambique, a própria língua portuguesa está sendo apropriada pelas pessoas. Uma grande parte das pessoas chegou ao português como segunda língua e traz uma língua que tem uma lógica diferente, uma lógica diversa que não tem a com o português nem com nenhuma língua europeia. Isso proporciona uma liberdade incrível porque vão para o português à vontade, apropriam-se dele, o tornam plástico e criativo.
Uma outra curiosidade do português falado em Moçambique, é que o gerúndio, tão abusado pelos brasileiros, não é muito usado. Como a pontualidade não é lá muito levada a sério, quando alguém é questionado sobre o atraso para um encontrou ou reunião, a frase usada é: “estou a chegar”. Soa bem mais suave (e bem menos atrasado) do que “estou chegando”, não?
Para dar mais um exemplo desse português tão criativo, quando perguntei ao Mia Couto como se sentia às vésperas de fazer sessenta anos, ele respondeu: “Acho que nunca estive tão bem.Simplesmente não me sinto velho, estou apenas guardando mais passado“! Não é lindo?
Postagem – Alyne Albuquerque