Clip Click
Prego na Testa comemora 27 anos dos Parlapatões
Mônica Rodrigues da Costa, especial para Panis & Circus*
Os Parlapatões, companhia de palhaços premiada internacionalmente, comemora 27 anos de teatro e circo em 2018, com 64 espetáculos e 12 anos de existência do Espaço Parlapatões, que interfere na cultura urbana multiplicando consciência crítica sobre o Brasil, com humor em modo irônico de desobediência civil do que seria o “politicamente correto”.
Em setembro, a mostra “Sortidos e Variados” em homenagem à companhia apresentou 9 montagens: “O Rei da Vela” (2018); “Prego na Testa” (2005); “Nada de Novo” (1993); “PPP@WllmShkspr.br” (1998); “Parlapatões Revisitam Angeli” (2013); “Eu Cão Eu” (2013); “Até que Deus É Um Ventilador de Teto” (2015); “Ridículos Ainda e Sempre” (2011), e “As Nuvens e/ou Um Deus Chamado Dinheiro” (2003). Em outubro estreou “A Cabeça de Yorick”, adaptação de “Hamlet, de William Skakespeare (1564-1616), a partir da visão dos palhaços.
Como é o espetáculo “Prego na Testa”
O espetáculo “Prego na Testa” integrou em setembro a mostra “Parlapatões: Sortidos e Variados” no espaço Parlapatões, na Praça Roosevelt, centro da capital paulista.
Trata-se de solo para único ator, que apresenta nove personagens e encenado pelo parlapatão Hugo Possolo (Prêmio Shell de 2016).
“Prego na Testa” (Pounding Nails in the Floor with My Forehead, 1993), tem texto do norte-americano Eric Bogosian e tradução, adaptação e direção de Aimar Labaki, estreou em 2005 e volta a cartaz em 2018 para marcar a trajetória de 27 anos do grupo Parlapatões, Patifes e Paspalhões, ou simplesmente Parlapas.
A marca dos Parlapatões, grupo dirigido por Hugo Possolo, é o humor circense, mas “Prego na Testa” se aproxima mais da comédia do teatro do que do picadeiro. Possolo abandona o nariz vermelho e usa figurinos (Kleber Montanheiro) tão sombrios quanto os dos malucos do centro da cidade.
Em forma de esquetes, o espetáculo apresenta com ironia e sátira problemas do dia a dia urbano por meio de nove personagens-tipo (eles se confundem) e comenta os aspectos trágicos do cotidiano da classe média e a vilania da política brasileira sem perder a picardia típica dos palhaços e sem desprezar a melancolia que persegue o gênero.
“Prego na Testa” expõe situações vexatórias de tipos humanos e as trata com crueldade e, ao mesmo tempo, comicidade trágica, por isso paradoxal. Os personagens são neuróticos: um mendigo megalomaníaco que se acha dono de um vagão de metrô; um sujeito inserido do mercado de trabalho que só fala de conquistas materiais; um fã de uma estrela qualquer; um machista viciado em virilidade que faz terapia de grupo; um depressivo que se distrai no supermercado; um chato e outros.
A cena inicial traz um poema sobre a explosão de uma bomba, provocada pelos terroristas de sempre, na descrição da poeta Wislawa Szymborska (leia abaixo). A ameaça da explosão dentro de quatro minutos suspende qualquer crença na humanidade. Um homem na motocicleta se salva, mas um careca volta ao local da bomba segundos antes para pegar suas “malditas luvas que esquecera” e…
Em seguida Possolo desenha com nitidez um mendigo que fala de solidão, de medo e de morte. Em dado momento, vomita. Em outro, sente o mijo quente escorrer entre as pernas ou repara que está sujo do sangue de um rato que espezinhou. O mendigo grita: “Sou piloto deste vagão!” (mas qual vagão, o da vida?)
Seria trágico se não fosse cômico, gênero imposto pelos trocadilhos inteligentes que provocam o riso, mesmo que aflitivo, e pelas falas do ator (Possolo), variadas e repletas de nuances e com 50 tons de zombaria.
Os diversos personagens entram e saem de cena e traduzem o mesmo ator Hugo Possolo com variações de contexto, dentro do ambiente kitsch que é a cultura popular circense.
Falam de carros e cuecas blindados, da água Fuji do Japão, e até da avó que fez teste de Aids. Contam longas histórias, como a de um Fernando, contaminado pelo medo. Querem desesperadamente compreender o mundo, e um dos personagens diz que o interpreta errado.
No solo ímpar de Possolo, o texto parece ter sido construído apenas para ele – palhaço melancólico e lírico. Também dá a impressão de que se dá uma inversão na estratégia brechtiana do teatro conhecido como épico: os personagens é que tomam distância do ator, a ponto de o ator abandonar convenções de marcações cênicas e o estilo clássico do palhaço.
De todo modo, o ator descreve e narra seus personagens, que veem televisão, curtem o Cesar Trali na TV aberta, as notícias da CNN. Um deles conta que colabora todos os anos com o programa da Rede Globo “Criança Esperança”.
Outro explica situações filosóficas e paradoxais: o copo está meio cheio ou meio vazio?
Os personagens estão sós em um palco quase hostil ao espectador, tamanha a agressividade cômica, direta. É tudo confuso e deprimente, praticamente escatológico sem escatologia, mas com a intenção perversa das obscenidades, da destruição da Terra.
No supermercado um dos personagens pega freneticamente os objetos de compra ao som de uma valsa de Strauss, salvo engano, “Vozes da Primavera”. É um super-homem no supermercado, com água Perrier, salgadinhos empacotados, pilhas AAA e pêssegos em calda.
A ironia e o desânimo face à vida atravessa o espetáculo do início ao fim e o espectador ri-chora.
A essa altura os personagens se confundem. Possolo agora interpreta um homem correto, que não suborna guardas de trânsito nem comete contravenções penais, além de acompanhar as notícias dos jornais.
Sua consciência é um copo cheio. Mas cheio de quê, parecem indagar os espectadores em meio a gargalhadas.
Ele se preocupa com o tufão Florence, com a situação dos refugiados da Venezuela e com os pobres coitados do Rio de Janeiro pela queda da ciclovia carioca.
Está angustiado com o tamanho pequeno de seu pênis, que observa durante o banho.
Lembra-se das surras que levava da mãe na infância, com o fio do telefone.
Questiona-se se é de fato um ser humano.
Satiriza o Datena, o general Mourão e o índio que virou recepcionista de hotel.
Soa na vitrola do teatro os versos hippies de John Lennon: “All We’re Saying Is Give Peace a Chance!”
Sem chances. Mais um personagem, agora de jaqueta e lata de cerveja, lenço e trancinhas no cabelo. As personas se embaralham. O sujeito conta sobre o ácido lisérgico que tomou na Serra da Canastra; do prêmio da loteria que abocanhou; de um certo churrasco; de uma mulher pelada.
Diversidade impressiona
A diversidade da dicção de Possolo impressiona, desde a fala em falsete, o sotaque com a língua presa até a voz chorosa-esganiçada. Sem falar de caras e bocas e da movimentação cênica exata.
A peça aborda todos os clichês possíveis e imaginados da classe média feliz, mas critica quem se vende pro sistema.
Ainda tem o personagem que é uma moça que estuda teatro nos estúdios de Wolf Maya, frequenta oficina de percussão corporal e faz performances para a galera! É engraçado.
Hugo Possolo problematiza o circo e a comédia com sua encenação irônica e demolidora e faz parecer que o texto foi escrito apenas para ser dramatizado por ele.
Fique de olho na agenda dos Paralapatões para conferir as próximas apresentações de “Prego na Testa”.
Ficha técnica de “Prego na Testa”
Texto: Eric Bogosian. Adaptação e direção: Aimar Labaki. Atuação: Hugo Possolo. Assistente de direção: Carlos Baldin. Cenário: Ulisses Cohn. Figurino: Kleber Montanheiro. Iluminação: Wagner Freire. Sonoplastia: Aimar Labaki. Edição da trilha sonora: Aline Meyer. Direção de produção: Raul Barretto. Produção executiva: Erika Horn. Assistência de produção e comunicação: Janayna Oliveira.
Poema que dá início ao espetáculo “Prego na Testa”
O poema reproduzido abaixo, “O Terrorista… Olha” é uma espécie de epígrafe ou introdução ao assunto de que o espetáculo “Prego na Testa” aborda nos tempos lúgubres do final do século 20 e início do 21. Foi escrito pela poeta polonesa Maria Wislawa Anna Szymborska (1923-2012), ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura em 1996 e traduzido por Júlio Sousa Gomes.
O terrorista… olha
A bomba vai explodir no bar às treze e vinte.
São neste momento treze e dezesseis.
Alguns conseguem ainda entrar,
alguns sair.
O terrorista passou já para o outro lado da rua.
A que distância ficará livre de perigo
e, quanto à vista, é como no cinema:
Uma mulher de casaco amarelo… entra.
Um homem de óculos… sai.
Rapazes de jeans… conversam.
Treze horas, dezessete minutos e quatro segundos.
Aquele baixinho tem sorte e senta-se na vespa,
mais um tipo alto que entra.
Treze horas, dezessete minutos e quarenta segundos.
Passa uma moça de fita verde nos cabelos.
Só que o autocarro oculta-a.
Treze e dezoito.
A rapariga desapareceu.
Se foi bastante estúpida para entrar ou não,
isso se saberá pelas notícias.
Treze e dezenove.
Parece que ninguém entra.
Há porém um careca gordo que sai.
Mas olha, parece que procura algo nos bolsos,
faltam treze segundos para as treze e vinte,
e ele volta a entrar em busca das luvas que perdeu.
São treze e vinte.
Como o tempo voa.
Deve ser agora.
Ainda não.
Sim, é agora.
A bomba… explode
*Mônica Rodrigues da Costa é jornalista amiga da criança, poeta e professora doutora de Comunicação e Semiótica, autora do livro de poesia “Perda Total” (no prelo).