Pé na Estrada
“Vizinhos”: circo contemporâneo em bela forma
Espetáculo é circo contemporâneo em bela forma
Luciana Gandelini, especial para Panis & Circus
Surpreendente, bem-humorado e bonito são adjetivos usados pelo público presente para referir-se ao espetáculo “Vizinhos”, apresentado na lona do Circo Daqui & Dali, instalada no Sesc Itaquera, num domingo, 31/6.
“Vizinhos” volta à cena em apresentações no Festival Paulista de Circo, em Piracicaba, em 3/9 (sábado) e no Sesc Santo André, em 4/9 (domingo) e 7/9 (quarta-feira – feriado), às 16 horas, e no Festival Sesc de Circo, em Santa Marina, no Rio Grande do Sul, em 10/9, às 15h e às 18h.
“Quando vi anunciado “Vizinhos”, no Sesc Itaquera, imaginei um espetáculo de circo totalmente diferente do que acabei assistindo. Fiquei encantada com a parte onde a mulher troca de roupa, em cima do arame. E fiquei pensando quanto tempo ela treinou para fazer isso”, afirmou a estudante Ana Clara Silva, 20.
A aposentada Maria Terezinha Castro, 60, também disse ter ficado “impressionada com o equilíbrio da artista em um fio de arame. Foi uma apresentação bonita de se ver!”
Já o estudante Felipe dos Santos, 20, que acompanhava Ana Clara, se divertiu mesmo com o número do sofá. “Foi muito engraçado ver o sofá engolindo o ator e depois ele pulando de lá para cá.” Por sua vez, o advogado Valdir Gonçalves do Rego, 59, acrescentou que “por ser circo, eu imaginava ver cenas de circo tradicional. Ao assistir o espetáculo, fiquei surpreso. Gostei do tema e das habilidades dos atores”.
“Vizinhos”, primeira montagem da Cia. Artinerant´s – arte em movimento – criada em 2013 por Daniel Pedro e Maíra Campos, que trabalham juntos desde 2003, no Circo Zanni, é um espetáculo que apresenta o cotidiano de um homem e uma mulher, em que objetos domésticos se transformam e assumem novas funções, flertando com o surrealismo. Com direção de Lu Lopes (Palhaça Rubra), mistura cenas de acrobacia e equilíbrio, com toques humorísticos e poéticos.
O público do Sesc Itaquera lotou a lona de circo, que contava com um cenário repleto de objetos como um sofá, cama, mesa, cadeiras e armários, remetendo a uma casa comum. Surge então o primeiro personagem da trama: um homem (Daniel Pedro) que inicia sua rotina diária de forma automática, tomando seu café, preparando-se para um novo dia. O público imediatamente é convidado a ser “voyeur” desta relação e observar a intimidade desses ‘vizinhos’.
A mulher (Maíra Campos) surge em seguida, com gestos também automáticos, cumprindo sua rotina de arrumação da casa, chegando a incomodar-se com o prato largado despretensiosamente em cima da mesa pelo vizinho.
Em movimentos antagônicos, os moradores da casa demonstram as ações do dia: ele come, ela lê, ele tenta ler o livro dela e ela tenta comer a comida dele. Trocam e destrocam os afazeres. Iniciam precisos movimentos circenses realizados a partir de objetos como cadeiras e mesas. O público se impressiona e ao final da cena aplaude o resultado da sintonia entre os dois performers, que seguiria até o término da apresentação.
A mulher se equilibra com perfeição de ponta cabeça, em um movimento de força e concentração. O homem senta-se na poltrona para ler e se diverte com a leitura. Por meio de ações cômicas conquista o público: de repente o livro desaparece e ele é engolido pelo sofá, que se transforma em um trampolim. Com diversos saltos, ele instiga os espectadores e arranca risadas.
Em dado momento, o varal de roupas situado no centro do cenário, passa a ser o arame no qual a mulher equilibra-se passo a passo, e gera apreensão ao trocar de roupa sobre o fio suspenso, utilizando apenas uma das mãos. Ela também realiza uma abertura total de pernas sobre o arame, “espacate” o que leva o público a aplaudi-la pela beleza técnica e estética com as quais realiza os movimentos.
Ao representar a traição e um grande conflito entre o casal, a trilha sonora surpreende com uma versão romântica e irônica de “Você não vale nada”, da cantora Tiê.
Os moradores vão demonstrando por meio de movimentos dançados e números de circo, situações cotidianas. Eles mesclam cenas leves e divertidas, a cenas conflituosas e até de puro “nonsense”.
O espetáculo é repleto de imagens de impacto, acrobáticas e de equilíbrio, e faz referência a uma gravação que fala da relação entre os escritores franceses Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Privilegia a ironia e brinca com a emoção.
Palhaça Rubra fala de “Vizinhos”
Em conversa com o Panis & Circus a diretora da montagem, Lu Lopes (Palhaça Rubra) fala um pouco sobre o espetáculo e sua relação com o grupo:
Panis & Circus: Como surgiu o convite para a direção deste espetáculo do grupo Artinerant’s?
Lu Lopes: Nós trabalhamos juntos em diversos projetos há anos e sempre tivemos vontade de nos unir pra criar uma obra juntos. Temos um olhar comum para caminhos estéticos e conceituais dentro do universo do circo. E sempre conversamos sobre sair da zona de conforto, de nos manter ativos nas descobertas e no desenvolvimento de novos estímulos criativos. Quando estruturaram um projeto da Cia. Artinerant´s me convidaram pra dirigir, e eu sempre digo que foi a desculpa pra ficarmos sempre perto. (Risos)
Panis & Circus: Na sua visão de diretora, quais as reflexões mais importantes que essa montagem propõe?
Lu Lopes: Essa montagem é essencialmente uma obra de movimento e imagem. Um movimento que leva a outro movimento, que leva a uma imagem, que leva a uma ideia. O público vai se conectando com o espetáculo em sua carga de sinestesia.
Atinge sensações e emoções delicadas e cômicas. Aflora nosso lado sensual com bom humor. Mas cria espaço para o público criar suas próprias percepções sobre a obra. Nós conduzimos a esse universo da relação de casal, mas não induzimos a reflexão ética. É uma obra onírica.
Panis & Circus: Os temas da montagem foram pré-estabelecidos ou se deram mais especificamente durante o processo de criação? Você poderia comentar um pouco sobre o processo de criação e referências (já que o espetáculo cita Sartre e Simone de Beauvoir)?
Lu Lopes: O processo criativo aconteceu pela via do reconhecimento. Partimos do reconhecimento das imagens internas, conectadas aos aparelhos circenses, para construir a dramaturgia. Quando surgia um estímulo temático, vinha sempre de um desejo interno profundo, uma brincadeira na hora do almoço, uma implicância entre a dupla, tudo ia virando possibilidade. Assim aparecia naturalmente uma trilha sonora que estava bem ali na frente, no iTunes, do computador (entre as músicas do espetáculo está “Você não vale nada”, versão da cantora Tiê), aparecia a imagem do acessório complementar, do figurino e assim por diante. Por exemplo, o áudio de Salomão Schvartzman (jornalista), falando sobre Simone de Beauvoir e Sartre, apareceu durante um café da manhã que fazia parte da nossa rotina diária. Tinha total sintonia com nosso processo e o que queríamos dizer naquele momento. Então reconhecemos o acaso e incorporamos ao espetáculo, criamos uma cena pra este áudio. Foi um processo fluente e que fez sentido do começo ao fim.