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“Vizinhos”: desmiolações do cotidiano
Espetáculo em estilo poético tem trilha sonora sofisticada
Mônica Rodrigues da Costa, especial para Panis & Circus
Com direção de Lu Lopes, a palhaça Rubra, “Vizinhos” traz uma história sobre a vida a dois, em estilo entrecortado e poético, explorando o teatro físico, o de objetos e atrações de equilibrismo e acrobacias.
A aramista Maíra Campos e o acrobata Daniel Pedro são os atores e circenses do espetáculo, conceberam a dramaturgia e assinam a trilha sonora junto com Lu Lopes.
A trilha — sofisticada e por isso mesmo, em algumas cenas, nova para o público – é agradável e dá o clima ambíguo entre a história do circo, que trazia novidades como o jazz, e o circo novo, atual, igualmente sincrético, aproveitando a novidade e a canção que toca no rádio e está na cabeça de todo mundo.
O repertório sonoro mistura canções com letras e música instrumental. “Summertime”, do popular e eterno George Gershwin (1898-1937), é apresentada no número do prólogo e em outro de acrobacias. Ela é uma das canções mais célebres interpretadas no espetáculo e é parte da ópera “Porgy and Bess”. “Em Vizinhos”, recebe uma versão instrumental executada pelo jazzista Sidney Bechet (1897-1959).
Algumas passagens do espetáculo são acompanhadas por música instrumental e outras, por canções populares.
Em número de equilíbrio, o artista Daniel Pedro sustenta uma cadeira em seu queixo ao som de “Funeral March for a Marionette”, de Danny Elfman, canção tema da série televisiva “Alfred Hitchcock Presents”. O curioso é que o artista manipula um objeto banal – não mais o fantoche tradicional das histórias lineares –, em aparente contradição com o tema sugerido pela música.
Com bom ritmo de cena, a peça retrata o cotidiano de um casal. Explora situações triviais dentro de uma residência, em seu avesso, por vezes absurdo, em outros momentos, de modo crítico.
A interpretação cômica e irônica dos atores e as letras das canções questionam o enredo e contribuem para seu desfazimento. O espectador se pergunta, ao ver o espetáculo, qual é o sentido da vida a dois, da vida em sociedade.
No palco, a dupla se aventura em desmiolações do cotidiano com a arte do risco e do corpo. Fazem números de ginástica solo e em dupla, equilíbrio no arame, acrobacias, danças e coreografias.
Os artistas manipulam objetos e interagem com eles, como cabides, peças de roupas, cabeças de touro e de coelho, cama e mesa giratórias.
O espaço da encenação é uma residência ampla, que permite ao mesmo tempo situar a narrativa e apresentar as atrações do picadeiro.
“Vizinhos” apresenta números clássicos de circo para montar o relacionamento do casal, com pouquíssimas palavras. Ao fundo do espaço cênico, há o fio tenso da aramista, seu aparelho.
Nesse cenário, ao lado do quarto, a dançarina equilibrista faz sua performance, traçando o fio dos dias em idas e vindas no arame, passos em falso, quase quedas, ou flui de uma ponta a outra, como se deslizasse no ar ou em saltos e gestos premeditados.
Dança com roupas travestidas de personagens e vice-versa. O jogo do circo dentro do teatro. Não se tem certeza de onde está a personagem, já que a exibição da atração põe em suspenso a narrativa sequencial dos dias.
Um dos números no arame é acompanhando da música “Life and Death”, do Balenescu Quartet, considerado contemporâneo de vanguarda.
A cenografia da ginástica acrobática de Daniel Pedro se funde com a sala de visita, que aborda o mesmo cotidiano da aramista em seu quarto.
O acrobata senta-se, pula, dá saltos mortais em cenas que confrontam os hábitos, como se sentar na poltrona para ler um livro depois do trabalho. Em um passe de ilusionista, o livro queima nas mãos dele e se refaz em seguida.
O desenvolvimento dos números circenses dá-se de modo linear e conta o que ocorre com o casal através de ginástica e equilibrismo.
A dançarina do arame entra, arruma a mesa do jantar e pendura roupas no varal. As atrações abordam ainda a contabilidade doméstica e a crítica do relacionamento. Em uma atração, aparecem os filósofos existencialistas e escritores Jean-Paul Sartre (1905-1980) e Simone de Beauvoir (1908-1986), sua mulher.
Em sucessão, os personagens exploram cada objeto do cenário e cada utensílio se torna aparelho de um número circense meio sem lógica, ou melhor, com a lógica (desmiolada) do deslocamento poético em que mesa vira palco, cama se transforma em aparelho de ginástica e ações comuns são fundidas à exibição de acrobacias, equilíbrio no arame e cadeira e outros objetos.
“Vizinhos” propõe à linguagem do circo a temática urbana, seja nas partes líricas ou emotivas, quando entra “Summertime”, seja nas partes cômicas, o que ocorre na cena da coelha, personagem nonsense, ao som de “Piel Canela”, com Eydie Gorme e o Trio Los Panchos. A máscara de pelúcia da coelha remete aos desenhos animados.
A letra da canção conduz a comédia:
“Me importas tu, y tu, y tu
Y solamente tu, y tu y tu
Me importas tu, y tu y tu
Y nadie mas que tu.
Ojos negros piel canela
Que me llegan a desesperar
Me importas tu, y tu y tu
Y nadie mas que tu.”
A estética circense está presente em “Vizinhos”, só que fundida à arte conceitual e à popular, como na cena da ginasta dançarina com a cabeça de touro, com coreografia ao som do sertanejo, meio forró, “Você Não Vale Nada”, de Dorgival Dantas na versão da cantora Tiê.
Uma briga de casal com final feliz finaliza o espetáculo e o resultado é uma chuva de plumas, originária de uma guerra de travesseiros ao som de “He Venido”, com Los Zafiros, evocando o circo dos anos 1960 e 1970.
Maíra Campos e Daniel Pedro são sócios do Circo Zanni, que busca a linguagem clássica do picadeiro – sua trupe completa dez anos em 2014. A peça dá prosseguimento a essa pesquisa de linguagem. “Vizinhos” é o primeiro trabalho da companhia Artinerant’s, dos dois artistas.
“Vizinhos” é concebido como teatro de rua, mas foi apresentado em espaço aberto do Centro Cultural da Juventude Ruth Cardoso, na cidade de São Paulo, em setembro de 2014, e terá apresentações em 29 e 30/10 e 1º e 2/11 em Guarulhos, Santos e Jundiaí.
Ficha técnica
Direção: Lu Lopes. Elenco: Daniel Pedro e Maíra Campos. Cenografia: Flavia Mielnik. Figurino: Maíra Campos. Iluminação e som: Paulo Souza. Trilha sonora: Daniel Pedro, Maíra Campos e Lu Lopes. Produção: Marina Felipe Ferreira.
Agenda
Circuito Cultural Paulista
29/10 – Guarulhos (1 ou 2 apresentações ProAC ICMS)
30/10 – Guarulhos (01 ou 2 apresentações ProAC ICMS)
1º/11 – Santos (2 apresentações ProAC ICMS)
2/11 – Jundiaí (2 apresentações ProAC ICMS)
Quando há duas apresentações os horários são 16h e 19h.
Fotos: Cenas do espetáculo
Foto 1: Divulgação
Fotos 2 a 8 /Asa Campos
Postagem – Alyne Albuquerque
Tags: daniel pedro, lu lopes, Maíra Campos, palhaça Rubra, Vizinhos
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