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A arte de Domingos

 

Domingos Montagner e Fernando “Sampaio em “A Noite dos Palhaços Mudos”

 

Mônica Rodrigues da Costa especial para Panis & Circus* 

A crítica paulista deve um ensaio analítico sobre o trabalho de artista de Domingos Montagner (1962-2016), morto em 15/9/2016, menos dispersivo do que as notícias ligeiras das revistas de TV e cadernos Bês. A contribuição de Montagner abrange o teatro de bonecos, a atividade de palhaço e de ator, cenógrafo e diretor. É certo que Domingos atingiu seu objetivo como artista ético que sempre foi e, como o herói clássico, nunca se desviou de sua missão, conforme ele declarou em entrevista neste site, Panis & Circus: “A visibilidade que alcancei por fazer televisão gera interesse de pessoas que não tinham conhecimento de meu trabalho na La Mínima ou no [Circo] Zanni. Esse impacto é positivo, porque continuarei fazendo o mesmo discurso para pessoas que talvez não o ouviriam de outra forma. […] Você percebe que o personagem do palhaço consegue ter mais eficácia se você fala de maneira literária, textual, e com comicidade, porque o palhaço tem uma simplicidade de alcance popular, ele se aproxima do público, que é seu igual”.

Domingos Montagner começou sua carreira como bonequeiro, ator e manipulador no grupo Pia Fraus em 1989, com Beto Andreetta e Beto Lima (1957-2005), já conquistando o público pela contribuição criativa das marionetes articuladas e de vários tamanhos e texturas orgânicas, que o trio construía sob a batuta de Lima, o artista plástico da companhia, e a partir da diversidade de repertório, que teve como frutos a experimentação, a renovação da temática popular no teatro de bonecos e a retomada da arte circense, para afirmar aqui alguns dos mais importantes deles.

A experimentação estética com mistura de gêneros era marca do grupo Pia Fraus (criado em 1984), em especial, no caso de Montagner, que introduziu na companhia técnicas do circo. Ele também batizou o grupo em 1991 com a inteligente expressão “Pia Fraus”, que em latim significa algo como arte-mentira feita para divertir.

Com atuação internacional premiada e especializada no teatro físico, baseada na semântica gestual e na economia de palavras –o teatro das imagens, conforme Domingos preferia definir–, a Pia Fraus apresentou montagens inesquecíveis, como “Olho da Rua” (1993), o primeiro trabalho de Montagner com a companhia, “Olhos Vermelhos” (2003), adaptação da Antígona de Sófocles, e “Flor de Obsessão” (1996), inspirada na obra de Nelson Rodrigues e dirigida pelo excelente Francisco Medeiros. Esse último espetáculo, preparado em um galpão e sem nenhum dinheiro, foi construído, segundo Montagner, “com coisas achadas na rua, cenário e bonecos”. 

Depois vieram “O Malefício da Mariposa” (1998, García Lorca, com direção de Carla Candiotto), o espetáculo de rua “Ouénoé, uma Cosmogonia” (1998), “Os Navegadores” (1999), peça realizada na piscina do Sesc Consolação e adaptada da Odisseia, de Homero, e “Frankenstein” (2000), inspirado na obra da escritora inglesa Mary Shelley (1797-1851).

Esta crítica que vos fala conheceu o teatro da Pia Fraus ao assistir a  “O Vaqueiro e o Bicho Froxo”em 1997 e desde então acompanha os trabalhos desses artistas. A peça tinha três miniaturas de igrejas mineiras como cenário e encenava lendas do Jequitinhonha usando pernas-de-pau, mamulengos e bonecos de luva, parecia uma brincadeira folclórica com traços da cultura pop. Na época, escrevi na Ilustrada, da “Folha de S.Paulo”: “A peça consegue reunir folclore e ação dramática e por isso mesmo empolga a platéia infantil”.

Inquietos, os três atores da Pia Fraus interferiam no teatro paulista em movimentos em defesa do teatro, seja no coletivo Arte contra a Barbárie, seja na parceria com outras companhias de qualidade inquestionável, como o XPTO e os Parlapatões, com o qual apresentaram “Farsa Quixotesca” (Hugo Possolo foi o diretor), adaptação ímpar do romance “O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha”, de Miguel de Cervantes (1547-1616), em que seis heróis chamados Quixote e Sancho faziam acrobacias no palco para seduzir Dulcineia e vencer batalhas estapafúrdias. Domingos Montagner e Fernando Sampaio eram os astros que desafiavam o trapézio em nome da utopia e da loucura quixotesca. 

“Frankenstein”, de 2000, foi o último espetáculo com Domingos Montagner na companhia Pia Fraus. Domingos vestia uma roupa escamada de borracha e farrapos para interpretar o protagonista e era de impacto a presença dele em cena.

La Mínima

Depois de 11 anos com a Pia Fraus, quando, muitas vezes, como dizia Domingos Montagner em entrevistas, os integrantes “vendiam o almoço para pagar a janta”, apesar do sucesso de crítica, Domingos e Fernando Sampaio formaram o grupo La Mínima, em 1997, que começou como teatro de rua.

Fernando e Domingos se conheceram no Circo Escola Picadeiro em 1989, onde tiveram aulas com o palhaço clássico Picolino II (Roger Avanzi) e onde se tornaram acrobatas cômicos, exercitando mais experimentações estéticas. Nasceram daí os palhaços Agenor (de Domingos) e Padoca (de Fernando) e uma série de montagens que foram sucesso e ajudaram a consolidar a comédia no picadeiro de um circo revisitado, reinterpretado, o conhecido circo contemporâneo.

No primeiro espetáculo da nova companhia, “La Mínima Cia. de Ballet”, eles usavam os objetos clássicos dos palhaços, como mala, chapéu, bengala, luvas, mas abandonavam paulatinamente o nariz vermelho, primeiro porque atrapalhava os exercícios acrobáticos e depois porque adotaram procedimentos do circo de vanguarda, que dispensava o nariz de plástico. Ficou célebre o espetáculo “La Mínima Cia. de Ballet”, e hoje o antológico número paródico das bailarinas recebe homenagens de craques como os do grupo Os Irmãos Sabatino.

Domingos e Fernando trabalharam com os diretores convidados Leo Bassi e Chacovachi, entre outros, o que proporcionou ao La Mínima especialização e excelência.

Em “À La Carte” (2001), os personagens da dupla de palhaços Domingos Montagner e Fernando Sampaio são dois mendigos esfomeados da periferia, que vivem de restos em um cafofo cheio de tralhas. Nesse trabalho, crítico da sociedade capitalista, ambos consolidam o que viriam a ser como atores, mestres nos erros e nas emoções exageradas dos palhaços, desde a alegria da piada até a amargura da tristeza em forma de caricatura. A peça teve direção do italiano Leris Colombaioni e roteiro de Paulo Rogério Lopes. Carla Candiotto assinou a direção de ator.

A história clássica “O Médico e os Monstros”, do escocês Robert Louis Stevenson (1850-1894), ganhou versão de circo teatro, de Mário Viana e La Mínima, com direção de Fernando Neves, em agosto de 2008.

Em um cenário eficiente –uma caixa giratória que se transformava em vários ambientes–, criado por Montagner, o espetáculo representa os conflitos entre o criador, o médico Henry Jeckyll, e a criatura, fabricada pelo médico, da perspectiva circense e do teatro mudo e físico.

A dupla também conseguiu, ao lado de Laerte e do diretor Alvaro Assad, dar vida a personagens de história em quadrinhos cuja montagem ganhou o título de “A Noite dos Palhaços Mudos”, o que rendeu a dupla, Domingos Montagner e Fernando Sampaio, o prêmio Shell de melhor ator (2008).

Explicou Domingos o espetáculo: “É quase cartum e praticamente uma história em quadrinhos, é encenado dessa forma, os recortes de luz, as cenas que se passam como se fossem tirinhas. A gente armou a movimentação sempre assim, fez referências diretas aos quadrinhos, mantendo a atmosfera, a energia, a característica dos palhaços personagens. A gente procurou manter o grafismo da HQ, porque Laerte é um mestre do traço”. Ao iniciar sua carreira como ator de televisão, com a novela “Salve, Jorge”, Domingos foi substituído por Marcelo Castro nesse espetáculo.

Em 2012, Fernando Sampaio e Domingos Montagner apresentaram “O Mistério Buffo”, com texto de Dario Fo e dirigidos por Neyde Veneziano, pesquisadora do circo. Os palhaços Montagner, Sampaio e Fernando Paz deram um show de interpretação. As parábolas da Bíblia e do Evangelho, em forma irônica e crítica, são antológicas.

Sampaio, Montagner e Fernando Paz em “Misterio Buffo”/Foto Asa Campos

 

Essa dupla de palhaços também fundou Circo Zanni, ao lado de mais sete sócios artistas. Montagner era também o diretor artístico. Trata-se de um picadeiro em formato tradicional, mas com música contemporânea e números clássicos reinterpretados. São nove artistas fixos e convidados, que se apresentam anualmente em São Paulo.

Para Domingos Montagner, o Circo Zanni representava uma espécie de síntese de seu trabalho de artista e teve o papel de recolocar o picadeiro de lona em circulação.

 

Domingos Montagner com a trupe do Zanni/Foto Asa Campos

 

Na novela da Globo “Velho Chico”, Domingos Montagner mostrou-se em plenitude e maturidade no papel de Santo dos Anjos, tendo chegado a excelência em seu trabalho de ator, com um sotaque nordestino suave e pouco caricatural, apesar do estilo naturalista que adotou, seguindo com competência as fórmulas de atuação televisiva.

Domingos Montagner intepreta Santo, seu último papel /Foto Globo 

 

Essa novela foi seu 12º trabalho bem-sucedido na TV, antecedido pelo seriado “Mothern”, do GNT, em 2008, quando estreou nessa mídia e, em 2010, na minissérie “Divã”, da Globo. No ano seguinte foi a vez de estrear em novelas, como “Cordel Encantado” (2011), “Brado Retumbante” (2012) “Salve Jorge” (2012) e “Sete Vidas” (2015), entre outras. No cinema, o ator estreou em 2012 e trabalhou nos filmes “Gonzaga – de Pai Pra Filho”, de Breno Silveira, “Vidas Partidas” (2016), de Marcos Schechtman, “De Onde te Vejo” (2016), de Luiz Villaça, e “Um Namorado para Minha Mulher” (2016), de Julia Rezende, entre outros.

*Mônica Rodrigues da Costa, jornalista frila, professora e poeta, doutora em comunicação e semiótica (PUC/SP) e crítica de teatro e circo.

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