Old
A difícil arte do equilíbrio
“Wallendas Voadores” desafiam a morte
por Janaína Leite
O mais difícil na vida, talvez, seja o equilíbrio. Encontrar a postura exata, o ponto certo que permite a harmonia, o centro. Impedir que acontecimentos ruins invadam os pensamentos e prejudiquem o desempenho nas horas cruciais. Não ceder, nem se exceder, mas transitar entre a realidade e o sonho mantendo em dia responsabilidades, emoções, desejos e objetivos. Exercer ao máximo o controle sobre as próprias ações. Estar inteiro no presente. Como isso exige. Como é para poucos.
Tais coisas passavam pela minha cabeça há alguns meses, enquanto eu lagarteava no sofá trocando canais da TV a esmo. Tudo fadado ao esquecimento, não fossem os meus olhos capturados de súbito por uma camisa negra esvoaçando contra o céu nublado. Somos metáforas uns para os outros, disse o filósofo, e ali, diante de mim, meus pensamentos materializaram-se na forma de um homem que caminhava sobre uma corda de aço esticada entre dois edifícios.
Um gênio do autodomínio. Um equilibrista.
Segurei a respiração. Ele levava consigo uma espécie de bastão, muito comprido, para ajudá-lo a não se curvar. A câmera fora instalada em uma das pontas da vara. Oscilava ligeiramente e deixava ao espectador a sensação de frio na barriga. Do outro lado do fio, uma mulher fazia um percurso espelhar. Vinha ao encontro do rapaz. Na casa dos cinquenta, talvez, usava cabelos compridos, jeans e algo próximo a uma bota. Parecia alguém com quem se cruza em qualquer esquina, mas não, era uma dona extraordinária. Marcava encontros em pleno ar.
Tentei me concentrar no que o narrador dizia, “100-foot-long, 121-foot-high”. Trinta metros de distância, trinta e sete metros de altura. Um abismo equivalente a uns dez andares. Apesar disso, os dois artistas estavam sem proteção no especial “Life On a Wire”, gravado pelo canal Discovery em 2011 na cidade de San Juan, em Porto Rico. Seus nomes eram Delilah e Nik Wallenda, mãe e filho, sétima e oitava geração de uma das mais famosas famílias circenses, “Os Wallendas Voadores”.
Comecei a tremer. Estar no lugar de um dos desafiantes dava medo, mas a ideia de expor uma pessoa amada ao perigo tornava as imagens praticamente intoleráveis. Para lidar com a ansiedade, meu cérebro optou por uma estratégia diversionista e se concentrou no sobrenome da dupla, Wallenda. Será que era o mesmo sujeito que em 2012 aparecera no mundo inteiro após ter cruzado as cataratas do Niágara em cima de um fio?
Sim, eu descobriria depois, era o mesmo Wallenda, que também andou por um fio sobre o Grand Canyon. No futuro ele gostaria de cruzar o espaço que separa o edifício da Chrysler e o Empire State, em Nova York, além de atravessar o Bósforo e se equilibrar entre as ruínas incas de Macchu Picchu. Algo para os lados da Torre Eiffel e as pirâmides egípcias também seria encarado com valentia.
Naquela noite, entretanto, eu não sabia de nada disso. Estava mesmerizada ao ver o instante em que Nik e sua mãe, Delilah, se encontravam no centro do trajeto. Sentada na corda, ela graciosamente se abaixou para que seu guri passasse acima de sua cabeça. Cumprida a tarefa, sob palmas e gritos de incentivo dos transeuntes, Nik se ajoelhou no cabo de aço e esperou, impassível, que a mãe se levantasse (numa das manobras mais assustadoras de todos os tempos). Então, seguiram ambos pelo cordão, ela com seus passos de gueixa; ele, um Nureyev dos movimentos retilíneos.
Parece assustador? Pode ficar mais. Em algum momento o narrador do programa explicara que outro integrante da família havia tentado fazer o mesmo percurso sem sucesso. Karl Wallenda (avô de Delilah e patriarca da família circense) morreu em San Juan, no ano de 1978, após perder o equilíbrio e se espatifar no asfalto. As imagens da queda circulam na internet até hoje, são impressionantes e desesperadoras. Clique aqui caso queira ver o vídeo da queda fatal de Karl Wallenda.
Vencer a distância entre os dois edifícios porto-riquenhos foi a maneira encontrada pelos novos Wallendas para homenagear Karl, tido como o mais impressionante artista da corda em seu tempo. Sua vida foi até tema de filme. Alemão, veio para os Estados Unidos no começo do século passado e ficou conhecido por criar a pirâmide com sete pessoas sobrepostas sobre o fio (até então, a mais alta contava com quatro equilibristas). O nome do grupo, “Os Wallendas Voadores”, teria sido dado por uma repórter depois de vê-los cair durante uma apresentação. Aos olhos dela, os astros eram tão fulgurantes em seu ofício, tão perfeitamente graciosos, que até na hora de desabar pareciam estar voando.
“A vida é estar por um fio, todo o resto deve esperar”, sentenciava Karl Wallenda. Por isso, não desistiu da vocação nem quando um acidente matou duas pessoas da trupe e deixou paralítico um de seus filhos. Louco? Para alguns, sim. Mas seus descendentes pensam da mesma maneira. Filhos, netos e bisnetos continuam vivendo nas alturas. Ampliaram a pirâmide, que agora conta com até dez integrantes. E se espalham pelo mundo realizando maravilhas, divididos em grupos de Wallendas, desafiando a lógica de quem não se arrisca, colhendo aplausos e espalhando coragem. Como isso exige. Como é para poucos.
Postagem: Alyne Albuquerque
Tags: Wallendas