Arte em Movimento
A hora e a vez de Carla Candiotto
Em tudo que Carla Candiotto faz há a estética do circo. Sua formação como atriz a conduziu por esse gênero de arte popular, que no século 20 teve a característica de se misturar a outras linguagens.
Com vários espetáculos em cartaz na cidade de São Paulo, o currículo da diretora e atriz Carla Candiotto é extenso. Ela foi palhaça por sete anos no grupo Doutores da Alegria e atuou até em cinema, como no filme “Bens Confiscados” (Carlos Reichenbach, 2005). Também trabalhou no Teatro sem Fronteira (Théâtre Sans Frontière).
Para Carla, a liberdade é o maior mérito do picadeiro: “Há uma liberdade absurda no circo, eu não tinha vivido isso. Primeiro de tudo, o círculo lhe dá uma lente de aumento”.
No grupo Le Plat du Jour, que Carla e Alexandra Golik criaram em 1992 em Paris, desde o tempo em que estudavam na Europa e nos Estados Unidos até hoje, Candiotto explora técnicas de palhaço e o teatro físico, que priorizam a poética gestual cômica e economiza palavras, em peças para adultos e, principalmente, para o público infantil.
Em Paris, atuaram na peça “Coup de Chance” (de Jean Henri Blumel) e criaram “As Filhas de Lear”, com direção de Gabriel Chamé Buendía e depois também dirigida por Roberto Camargo.
As comediantes formam uma dupla de palhaços e trocam de papéis o tempo inteiro. Candiotto disse que se trata do “idiota com o imbecil: deixa que eu decido que você decide que eu decido”.
A peça de maior sucesso do Le Plat du Jour é “Chapeuzinho Vermelho”, agora encenado por jovens atrizes enquanto Candiotto e Golik se aventuram em direção teatral. Com direção de Fernando Escrich, “Chapeuzinho Vermelho” foi premiado pela APCA 2001, como o melhor espetáculo infantil, e participou do Festival Teatrália em Madri (Espanha).
Alexandra acaba de inaugurar o próprio teatro, Viradalata, com investimento pessoal de pelo menos R$ 4,5 milhões.
“Chapeuzinho” é o espetáculo preferido de Carla, que disse que explorou mais o roteiro de ações do que o enredo. Por que esse conto de fadas? Em 2005, Alexandra Golik respondeu a um jornalista da “Folha”: “Clássicos são eternos e é possível fazer muitas leituras, além de nunca saírem de moda”.
Sobre “Chapeuzinho”, diz Candiotto: “A gente faz a peça com uma propriedade tão gostosa, muito legal. Alem de já ter entendido como representar os personagens, a gente faz o espetáculo cuidando do público”, ou seja, fazendo a plateia entender que se trata de um momento lúdico, de faz de conta.
Como diretora, Candiotto disse que observa a habilidade do elenco para criar os espetáculos: “Dirijo uma peça com o que tenho, com meus ingredientes. Nunca tenho uma ideia antes. Preciso do vocabulário físico dos atores e parto do movimento. Pegue o Beckett [1906-1989], de “Fim de Festa”, é só movimento. É ela com ele, os dois, esperando a relação. ‘Esperando Godot’ é só movimento”.
É possível ver Candiotto e Golik em “Os Três Porquinhos”, no Sesc Belenzinho, até 07/07/2012, realizando muitas palhaçadas, sob direção do ex-parlapatão Alexandre Roit, que atualmente integra o Condomínio Cultural, espaço que abriga vários grupos jovens paulistas. “Os Três Porquinhos” foi vencedor do Prêmio APCA 2003 e do Panamco Femsa de Teatro 2003.
Seção Anote:
O grupo Le Plat du Jour ainda apresenta, no Teatro Folha, até o final de setembro, a peça “Alice no País das Maravilhas”.
Link do teatro:
Recentemente, Candiotto ganhou o prêmio FEMSA 2011 pela direção de “Histórias por Telefone”, da Cia. Delas, e o prêmio APCA 2011 por “Histórias por Telefone”, “A Volta ao Mundo em 80 Dias” e “Sem Concerto” (do Circo Amarillo) na categoria de Melhor Direção.
Seu mais novo trabalho de direção, Jucazécaju” (2012), tem enredo inspirado no livro “As Asas de Crocodilo”, de Gilles Eduar, e aponta como candidato aos prêmios de 2012. Trata-se de parceria com Rodrigo Matheus, marido de Carla, também diretor, que é ator, acrobata e o fundador do Circo Mínimo.
Carla disse que teve a preocupação, nessa peça, de falar ao repertório da criança de três anos, por isso, fez questão de marcar a sucessão narrativa com um grande sol, no fundo do palco, para que o público alvo entendesse o passar do tempo de forma concreta.
Candiotto dirigiu Rodrigo Matheus, ao lado de Ricardo Rodrigues, na peça “João e o Pé de Feijão”, em que procura efeitos semelhantes para promover o entendimento das cenas.
A passagem do protagonista, da terra para o céu, onde fica o castelo do gigante no conto de fadas, é representada com um número aéreo do circo envolto em fumaça, que toma o palco enquanto João (Ricardo Rodrigues) sobe pelo caule. Dá a sensação ao espectador de que ele vê a cena através das nuvens.
Candiotto esteve à frente de espetáculos como “Gigantes de Ar” e “Bichos do Mundo”, da companhia Pia Fraus; “Galinhas Aéreas”, da cia. Linhas Aéreas; “Sardanapalo” (primeira montagem), “Zerói” (assistente de direção) e “De Cá pra Lá, de Lá pra Cá” (vencedor do Prêmio Coca-cola de Teatro), dos Parlapatões Patifes e Paspalhões; “À La Carte”, da cia. La Mínima (direção de ator); “Deadly” (assistente de direção), “Orgulho” e “Road Movie”, da cia. Circo Mínimo.
Ainda, ao lado de Rodrigo Matheus, dirigiu “New Breed” e “Love Happens”, da NICA – National Institute of Circus Arts, na Austrália.
“De Cá pra Lá, de Lá pra Cá” (1998), do grupo Parlapatões, Patifes & Paspalhões, composto na época por Alexandre Roit, Hugo Possolo e Raul Barretto, teve a direção de Carla Candiotto. Escrevi antes que a peça usa a técnica de malabares para descrever um dia na vida de três coladores de cartazes. “À moda dos palhaços, eles fazem trapalhadas típicas do picadeiro. Vassouras, broxas e baldes sobem pelos ares, compondo a confusão da colagem de um cartaz que se confunde com malabarismo.”
No ano da estreia a diretora explicou que seu papel foi sistematizar as cenas: “Meu trabalho coincide com o dos Parlapatões, temos a mesma linha de raciocínio, ainda que minha escola de palhaço seja a reprise com enfoque teatral”.
Hoje, a palhaça e atriz faz parte da equipe de comediantes do programa “Saturday Night Live” (Rede TV) e mantém a cia. Le Plat du Jour com Alexandra Golik, com quem prepara nova montagem do espetáculo “Peter Pan & Wendy”, logo mais em cartaz, com direção de Pedro Pires.
Formação na Europa e nos Estados Unidos
Prepare-se para mais listas, porque Carla Candiotto empreendeu longo percurso de pesquisas, com muitos trabalhos realizados, como atriz, diretora de teatro e atualmente professora de interpretação teatral no Teatro Escola Célia Helena e no Centro de Formação Profissional em Artes Circenses (Cefac).
Candiotto estudou com especialistas como Philippe Gaulier (http://www.ecolephilippegaulier.com/history.html), Monika Pagneux, Arianne Mnouskine (Théâtre du Soleil), John Wright, Desmond Jones, Frank Armstrong e com os grupos de teatro físico Théâtre de Cumplicité e The Right Size.
Com Philippe Gaulier, Golik e Candiotto pesquisaram técnicas de interpretação – ele é especialista em clown. Candiotto aprendeu com Gaulier durante um ano e, no ano seguinte, foi sua assistente. Entre os vários paradigmas de teatro e circo, Carla disse que o de Gaulier foi o que mais a influenciou na arte do palhaço.
E com os outros mestres? “A Monika Pagneux fazia um trabalho de corpo, fiquei seis meses com ela. Desmond Jones foi meu professor de mímica. Arianne me deu a ‘necessidade do estado’. Ela sempre falava que o artista não podia entrar em cena sem nada. Ela é russa e mora em Paris, com a com a companheira Juliane, são uma dupla invejável.”
Durante quatro anos, Carla pesquisou o método de consciência corporal de Moshe Feldenkrais, nos Estados Unidos.
Entre 1993 e 1998, foram diversos trabalhos em países da Europa. Na Inglaterra, trabalhou com a companhia Théâtre Sans Frontieres nos espetáculos, “O Corcunda de Notre Dame”; “La Belle et la Bette”; “African Tales”; “Le Roi Fou”; “The Day of The Dead” e “Candido” (Voltaire), que recebeu o Prêmio Eletric Award, do Festival de Edimburgo (Escócia), e participou do Festival de Avignon (França).
Em Paris, atuou em “Scarllet”, com a companhia Fleur de Peau, e em “Cem Anos de Solidão” (Gabriel García Marques) e em “A Sala Número 6”, da cia. Paris 21.
O primeiro espetáculo na cia. Le Plat du Jour foi “As Filhas de Lear”. Depois vieram “Insônia”, com direção da cia. Le Plat du Jour e Alexandre Roit; “Aladim e a Lâmpada Maravilhosa, parceria do Théâtre Sans Frontieres com Le Plat du Jour, que realizou turnê pela Inglaterra, Escócia, Irlanda, França e China.
Além desses, houve “O Poço” (Alexandra Golik), com direção Sandro Borelli (espetáculo contemplado pelo prêmio Myrian Muniz de Teatro), “João e Maria” (texto e direção da Le Plat du Jour) e “Pinóquio” (Le Plat du Jour).
Sobre “Sequestro” (2002), igualmente da Le Plat du Jour, o jornalista Valmir Santos, na “Folha”, em 17/09/2003, destacou como estilo da peça “a dramaturgia cômica com acento na figura do palhaço e na ação física”.
Na entrevista a seguir, Carla Candiotto comenta sobre trabalhos como atriz e diretora e explica procedimentos de sua arte.
Procedimentos estéticos
Circus – Seu trabalho é clownesco ou de palhaço de circo? Você e Alexandra Golik são uma dupla de palhaços? Alexandra disse que, a cada hora, uma de vocês faz um tipo de palhaço.
Candiotto – Somos uma dupla que tem cumplicidade e que se diverte, isso já começa a configurar uma dupla de palhaços.
Se você pegar a classificação no estudo do gênero, sou o palhaço branco e ela é o augusto, ou o Toni. Eu seguro e ela apronta. Só que eu seguro aprontando e ela apronta aprontando, é o idiota com o imbecil: deixa que eu decido que você decide que eu decido, entendeu? Eu mando e você decide.
Circus – Qual é a diferença entre palhaço de circo e de teatro?
Candiotto – O tônus dos palhaços de circo é diferente, senti na pele. Eu nunca tinha feito palhaço de circo nem sabia o que tinha de fazer. O que fiz em 2010 no meu número no Circo Zanni? Bom, eu sabia que precisava ter figurino e maquiagem.
Fui atrás de coisas que me ajudassem. Não coloquei nariz vermelho porque sei que não preciso dele, porque, depois de 25 anos como atriz, não preciso dessa proteção. Mas eu sabia que tinha de ter um assunto.
Eu falo para os atores quando dirijo espetáculos: “Não entre em cena sem nada”. Entrei então com um vestido de noiva. O Dumba falou assim pra mim: “Carla, você vai fazer um palhaço? Mas o que eu vou fazer?”. Eu disse: “Fala com Claudio Carneiro [que assina trabalho no Cirque du Soleil], inventa alguma coisa”.
Claudio foi um palhaço convidado pelo Circo Zanni. A gente combinou um número. Inventou quatro entradas, coisas de palhaços mais velhos. Eu trouxe o assunto, que foi a noiva.
Eu entrava como uma noiva chorando. Já entrei num lugar onde as pessoas sabiam onde eu iria estar, dei a informação. Aí pude fazer o que bem entendi.
Se eu tivesse entrado com um figurino com que não pudesse trocar nada, se eu entrasse com esta ideia: “Preciso me fortalecer e me segurar”, ou eu entrava de bombeira, de faxineira. Entro em cena com um assunto e o que faço com o assunto é problema meu.
Circus – Você improvisa?
Candiotto – Totalmente. Sento no colo de alguém, peço desculpas, falo que não era você, era ele, reclamo: “Você me trocou por outra’’, ou: “Esse não era o nosso filho”, e continua: “Minha bunda tá doendo”. Nesse ponto, as crianças dão risadas.
Eu choro como bufa, coisas clássicas de circo, e vou para cima de alguém chorando, encharco uma pessoa, pois faz calor no picadeiro e no circo isso é possível, mas não vou fazer isso no teatro, eis aí a diferença.
Há uma liberdade absurda no circo, eu não tinha vivido isso. Primeiro de tudo, o círculo lhe dá uma lente de aumento. Eu falei pro Claudio Carneiro: “Eu queria um espetáculo só comigo no picadeiro, você se sente enorme ali, olha o tamanho do ego, é bom ficar no círculo e você tem o público em toda a volta. As pessoas já sabem que você pode errar porque, além de tudo, você é uma palhaça.
Circus – Ser palhaço pressupõe o erro e o riso na sequência e situações absurdas.
Candiotto – Totalmente erro, riso, felicidade, infelicidade. No Circo Zanni, estava todo mundo rindo e eu falava para o público: “Vocês estão rindo do quê? Isso é sério!”. O palhaço representa situações também verdadeiras, por exemplo, com o ciúme.
Circus – Há exacerbação da emoção no circo, como chorar com lágrimas de verdade?
Candiotto – Você não chora com lágrimas de verdade no circo, porque ninguém quer ver isso, o público quer ser feliz, não quer ver a pessoa chorar realmente.
O teatro serve para quê? O teatro provoca. Essa noiva no teatro é outra personagem, o público quer saber por que ela chora, onde estava antes, a coisa se aprofunda de outra forma.
Circus – No teatro ou no circo que você produz há um estilo que revela sua assinatura?
Candiotto – Tenho preocupação com o silêncio, o silêncio existe em forma de marcação. A criança, por exemplo, acompanha a história. Para as mães eu coloco algumas piadas para que brinquem e tenho de ter um ritmo.
Durante os ensaios, na terceira vez em que começo uma peça, eu pergunto: “Vocês entendem porque alguém coloca uma mão na bochecha?”. Se o ator diz que não sabe eu repondo: “Então não põe”.
Falta escola de circo no Brasil
Circus – Há escolas suficientes de circo no Brasil?
Candiotto – No caminho para cá, pensei em falar que preciso de um fomento, um edital para teatro infantil. Não existe escola, é tudo misturado, adulto e infantil. Para ganhar um fomento, tenho de competir com atrizes como Fernanda Montenegro. Não tenho nada contra ela, adoro.
Mas no meu teatrinho não posso colocar uma luz especial porque atrapalha o espetáculo adulto [encenado à noite no mesmo palco]. Há 17 anos brigo por uma luz mnelhor. Sabe o que Wagner Freire fez? Ele pegou emprestada uma mesa de luz para gente ter a luz que queria. Do contrário, a gente teria apenas uma luz que acende e outra que apaga.
Carla Candiotto comenta peças que dirigiu
“New Breed” em escola com professores chineses
Circus – Fale sobre “New Breed”
Candiotto – Dirigi na Austrália, era um espetáculo de circo. Faz cinco anos. A gente [Candiotto e o marido, Matheus] ficou três meses na Austrália. A escola tem grupos de alunos que fazem espetáculos no final do ano. O Circo Zos indiciou o Rodrigo Matheus e um grupo contatou o Rodrigo. Nosso filho, Inácio, tinha acabado de nascer e fui com eles.
É uma escola de circo respeitada, chama NICA – National Institute of Circus Art. A maioria dos professores é chinesa. Rodrigo tinha me dito que não podia fazer o espetáculo que fez lá aqui no Brasil porque não se conhece a técnica deles nem a escola. Não existe uma escola no Brasil que se preocupe tanto com técnica de circo assim.
Rodrigo fez a parte técnica e a gente tinha todas as cenas. Então costurei-as com a figura do palhaço. Eram um telefone e um menino correndo. O telefone tocava e ele entrava com vaso com flor na mão e subia, subia, subia… O telefone parava. Na terceira vez em que ele entrava, a sensação de todo mundo era: “Vai, atende”.
E todo mundo dava risada. A primeira cena foi um encontro de passagem, do menino com uma moça no metrô, ele pediu [à garota] o telefone, eles se trocaram telefones, o menino ficou feliz e saiu pulando. Nisso, o papel voou e ele perdeu o telefone. Ela fica esperando o telefone tocar. Uma narrativa mínima.
É diferente da dramaturgia do Circo Roda, por exemplo, que seja talvez mais próxima do que o Soleil faz. Esse espetáculo de circo aconteceu no teatro, na Sidney Opera House, naquela concha de 450 lugares, em 2007.
Foi tão legal que a escola chamou a gente de novo para fazer o ‘‘Love Happens’’, no ano seguinte, que foi encenado em tenda num parque. A gente mexeu com cartas de amor, pegou depoimentos deles.
A dramaturgia é a sonoplastia. A corda marinha é curta e fica bem no alto da tenda. A atriz acrobata balança. Ela funcionava como uma caneta e embaixo estavam todas as coisas e todas as pessoas. Tinha um pouco de dança.
“Chapeuzinho Vermelho” e “Os Três Porquinhos”
Circus – É difícil adaptar contos de fada, como “Chapeuzinho Vermelho” e “Os Três Porquinhos”?
Candioto – “Chapeuzinho Vermelho” é a peça mais legal que fiz na vida, gosto muito desse espetáculo. Saiu de uma forma que era muito puro. O que a gente pensava a gente colocou.
“Os Três Porquinhos” aconteceu depois, a gente voltava a “Chapeuzinho” para fazer “Os Três Porquinhos”. Eu e Alexandra concebemos “Chapeuzinho” na garagem de casa, custou cinco mil reais.
Circus – Em “Chapeuzinho”, duas palhaças ocupam um espaço cênico minúsculo. A gente ri com a história porque há indecisão na hora de as personagens agirem, não é?
Candiotto – Sim. “Chapeuzinho” tem mais de 12 anos, a gente faz a peça com uma propriedade tão gostosa, muito legal. Alem de a gente já ter entendido como representar os personagens, faz o espetáculo cuidando do público. Se a plateia não capta o sentido de alguma coisa, a gente diz: “Vocês tem que entender que isso não é sério, nós estamos ‘brincando de’, é uma encenação da qual você consegue sair e voltar”. É uma troca boa, tem dramaturgia, narrativa, tensão – o medo da mãe de perder a menina.
Na história “Os Três Porquinhos, a mãe tem os filhos. Ela fala tchau, cada um vai para um lado e cada um faz o que pode. Como você amarra tudo isso?
A peça “Os Três Porquinhos” tem uma característica que a “Chapeuzinho” ensinou para a gente, só que “Chapeuziho” é mais amarrada, porque a mãe fala: “Vai”. Depois de um mês e meio de ensaio de “Os Três Porquinhos”, período em que a gente levantou todas as cenas, cheguei dez minutos atrasada e estavam o Alexandre [Roit] e a Alê falando assim: “São dois açougueiros…” eu senti não ter dado a ideia também, senti ter chegado atrasada…
Circus – Vocês seguem uma narrativa, mas teatral, dramática, apesar de serem palhaças no palco.
Candiotto – Só que muito disciplinadas. Antes de a gente ser palhaça, criou uma base forte para brincar [fingir] como atrizes. Pegou a história, os significados do enredo, sobre o qual a gente leu a torto e a direito. Interpretações como a da primeira menstruação da menina, todas os estudos que achou. A gente pensou: “Nossa, que coisa chata, vamos à história”.
Aí a gente falou: roteiro de ação. Primeiro: Chapeuzinho está na casa da mãe. Fazendo o quê? O que a mãe faz com uma criança quando está em casa? Vamos fazer um bolo? A gente construiu ação por ação, cena a cena.
Depois do roteiro de ação, foi a vez do texto. Alguns recursos do texto eram gostosos, como a repetição, que a gente sabe que a criança gosta. Aquela coisa: “Vá”. “Espere”. “Vá”. “Espere ”.
Você deixa seu filho ir, mas, como mãe, espera que ele não cresça. O filho vai, mas quem vai levar? A que horas volta? Tem certeza? Já pegou o casaco?. O filho responde: “Peguei, mãe”. [Carla imita um pré-adolescente aborrecido. risos]
Circus – São todos iguais, só mudam endereços. Você desenha os tipos humanos.
Candiotto – Exatamente, os estereótipos com os quais o público se identifica e desse modo a gente dá base para que o público entenda que não tem com o que se preocupar, está tudo pensado, ele só tem de se divertir. Não é só isso, mas a gente está segura com a estrutura, eu e Alexandra, as duas palhaças em ação.
“Histórias por Telefone”
Circus – Você comentou sobre sua identificação com a cia. Delas, da peça “Histórias por Telefone”, pela admiração em comum, da obra do escritor italiano Gianni Rodari.
Candiotto – Foi a característica non-sense da companhia Le Plat du Jour que as meninas buscaram e por isso me procuraram para dirigir o espetáculo. O que fiz com elas com as 69 histórias…
Fiz as meninas representarem cada história. Algumas histórias eram impossíveis, eram fantásticas demais. Não tinha jeito de entrar em cena um disco voador, por exemplo.
Os recursos no teatro infantil são difíceis, como colocar um efeito especial de um planeta em cena. Você joga como pode para mostrar coisas. Algumas histórias eram impossíveis.
Outras histórias eram engraçadas, mais muito relacionadas com o texto escrito, fechadas para o ator falar e sair, e algumas delas tinham mais ação. A gente ficou com essas para levantar o espetáculo.
“O Nariz Fujão”, por exemplo, conta sobre um nariz fugido de um rosto de um homem que pega um barco e vai para outro lugar. O homem corre atrás do nariz dele.
Escolhemos seis histórias e o desafio passou a ser alinhavá-las numa só narrativa. Eu voltava ao livro uma e outra vez até que li um trechinho que falava que as telefonistas paravam de trabalhar para ouvir as histórias que o pai conta à filha.
São as telefonistas que alinhavam a narrativa. Todo mundo vibrou com a ideia. Colocamos as telefonistas intercalando as histórias.
Circus – Como a criança espectadora compreende a peça?
Candiotto – A imagem da filha não aparece. Às vezes tenho de dar alguma informação a mais para a criança. Os 17 anos de teatro infantil me ensinaram que tenho de dar, mas posso não dar alguma coisa: “Olha, você vai acordar amanhã, o Zequinha vai passar aqui, vai levá-lo para o treino, e, quando você voltar, não sei o que vai fazer”.
É assim que penso quando construo as peças infantis. Dou uma informação para que a criança se sinta segura e depois solto a imaginação.
A amarração do pai, como é que a gente editava? Antes começou com a criança na cama, o pai contando história em todas as noites.
Circus – Há um modo inusitado de mexer com o imaginário. A criança espectadora percebe a ausência da filha do outro lado, já sabe que ao falar ao telefone existe essa ausência.
Candiotto – Tudo bem, mas você combinou. É isso que chamo “dar”: uma negociação. Isso eu lhe dou, aquilo não lhe dou, você pensa. Em todas as minhas peças procedo assim.
Circus – Você disse que acha que o teatro é híbrido porque os elementos construtivos são reconhecíveis, mas existe interpenetração de gêneros e você começou a dar o exemplo da interpenetração do circo no teatro.
Candiotto – Um amigo meu inglês diz que quem gosta de dirigir gosta de brigar, discutir, estar ali e falar: “É assim, vamos lá”. Quando dirijo o elenco de uma companhia observo suas habilidades.
As meninas da cia. Delas não dançam nem cantam, são atrizes que gostam de falar. Até por isso a telefonista, que fala muito, caiu bem ali, e é um mundo feminino, de fofocar, esperar e falar. Fui por esse lado da conversa das meninas da Companhia Delas.
“Volta ao Mundo em 80 Dias” e estilo de direção teatral
Circus – Como foi dirigir o elenco de “Volta ao Mundo”?
Candiotto – O grupo Solas de Vento tem dois bailarinos, um deles fala francês, o Bruno Rudolf, e representa. Achei o sotaque [falando português] pesado para as crianças. Ele só fala francês na peça.
Não quero que a criança não entenda, quero que entenda que o ator fala outra língua e não tem problema falar outra língua.
Tenho vontade de colocar outras línguas em todas as peças, porque a ideia é abrir o mundo para a criança, porque quem vai ver a gente tem de três até sete anos, depois não vai mais.
Se a criança dessa idade descobre que existe uma pessoa que fala outra língua, o vizinho, que ela não necessariamente precise entender, já cai a máscara e até ajuda a combater preconceito.
O outro ator de “Volta ao Mundo” é o Ricardo Rodrigues [que também atua na peça “João e o Pé de Feijão”, em dupla com Rodrigo Matheus, do Circo Mínimo]. É um menino que vem do circo e da dança. Então o texto nesse espetáculo “Volta ao Mundo…” não era prioridade para eles e optei por criar mais imagens.
“Sem Concerto”, do Circo Amarillo
Circus – Com você define a direção do espetáculo “Sem Concerto”?
Candiotto – Marcelo Lujan disse que tinha algumas coisas que queria me mostrar. Falei: “Ai, meu Deus… ele e Pablo Nordio me mostraram [os dois são o elenco do Circo Amarillo]. Perguntei se queriam fazer um espetáculo de teatro ou um número de circo. Disseram que queriam fazer teatro.
Em geral falo que teatro no circo, circo no teatro inclui um fator econômico porque, como o artista não consegue sobreviver com o circo, precisa ter algo a mais, fácil de montar e desmontar, mais acessível ao público e fácil de vender, precisa ter um caixa dois.
É como se o circo fosse o ideal e o teatro fosse segunda opção para esses meninos que são do circo, seja tradicional ou moderno.
Então eu tinha dois circenses… e tinha de dizer a eles que alguns números de circo no teatro eram desnecessários. O teatro tem uma coisa que é a diferença para mim, é egoísta.
O espectador vai ao teatro porque quer se ver e quem atua só tem que fazer isso, emprestar seu corpo para as pessoas se projetarem, não tem que ir lá para mostrar o que sabe fazer, como no circo. O teatro é para o espectador brincar do que quiser ser.
O trabalho do Circo Amarillo foi para outro espaço, o teatro. Isso é também movimento para mim. Minha direção foi no sentido de dizer a eles que fizessem o que podiam fazer.
O que você consegue fazer? A situação de prazer [por saber fazer alguma coisa] é a mais sedutora que existe. Se há alguém que está seguro fazendo o que sabe, o público gosta.
Circus – Qual foi o estilo da direção de “Sem Concerto”?
Candiotto – Seguindo o jeito que dirijo, vi todo o material deles, algumas esquetes, cenas que eles não tinham fechado ainda. Foram dois meses e meio de ensaios. Marcelo montou a trilha, que é toda feita ao vivo.
“Sem Concerto” mostra dois músicos que tocam vários instrumentos em cena. Marcelo tem um pedal que gera um som e ele grava. Depois grava novamente. Vai somando. O último número são todos os sons juntos. Marcelo sugeriu que gravássemos até chegar à última cena.
Nas esquetes, Pablo e Marcelo construíram células. Perguntei depois de dois meses de ensaio onde estávamos. No primeiro mês, fizemos o roteiro de ação – levantamento de todas as cenas. No segundo mês, recomeçamos a construção quatro vezes.
Na minha opinião, a amarração foi um pouco leve, podia fechar mais a dramaturgia e a narrativa. Para eles não é necessário nada disso, eles têm a liberdade do circo. Eles quiseram colocar em cena uma boneca. Então pedi para arrumar a boneca, colocar uma porta para ela entrar para dar alguma coisa para as crianças.
Pablo quis ter um momento sozinho com música da Édith Piaf. Arrumei a cena da boneca com a trilha de um tango de Córdoba, e eles dançam lindamente, são bailarinos também.
Engraçado que um não vê necessidade de explicar nada, já o outro quer ir para esse outro mundo do teatro. O Pablo não se incomoda, tudo está bom, mas um não prescinde um do outro. O Marcelo é o palhaço augusto.
Circo Zanni
Circus – Como define o espetáculo do Zanni em que participou, em novembro de 2011?
Candiotto – O Zanni me convidou para fazer um número como palhaça junto com Claudio Carneiro. O Zanni mostra um espetáculo de circo com trapezistas, artistas que fazem números no tecido, é o circo como perigo, emoção, onde todos fazem: “Oh!”.
Fiz o número da mulher estressada e desesperada, como Claudio falava, eu entrava correndo no palco, pegava uma pessoa do público, levava para trás da cortina, aí apresentava a mágica da mulher desesperada.
Abre a cortina e estou grávida. Entra uma música de marcha nupcial. O Claudio começa a chorar: “Eh, você vai me deixar, eeeê”. Eu falo: “Tá bom, Dio, como ti amo. Então… tchau… dá um beijinho aqui”. Aí ele vinha: “Dá um beijinho aqui na boca”.
Circus – Na gramática do palhaço, você erra a posição do beijo?
Candiotto – Erra a posição do beijo e se coloca numa situação em que a outra pessoa sente que não é possível que eu estivesse ali, sentada no colo dela. São situações absurdas para o ator e para a plateia, mas situações verdadeiras, de ciúme, tristeza.
Circus – No Zanni há artistas que realizam números, não há teatro?
Candiotto – Tem a direção artística, de Domingos Montagner, e a musical, de Marcelo Lujan. As mulheres [artistas do Zanni] são maravilhosas. Ponto.
Não acho que seja necessária uma história para o circo, é necessário um alinhavo solto, essa coisa da mulher que tem que achar um marido: “Ah, aconteceu isso com ela? Ah, ela perdeu o vestido? Ah, ela ficou grávida”. Acabou. Somente o assunto.
Le Plat du Jour
Circus – Conte sobre a criação da cia. Le Plat du Jour.
Candiotto – Conheci Alê em Paris e fizemos a peça “Coup de Chance” em 1991. Encontrei a Alê em 1998, eu ainda trabalhava com o Teatro sem Fronteiras, e a gente viu um espetáculo produzido por um dentista, Jean Arribel Man.
Esse cara apareceu na escola de Gaulier e falou que queria produzir um espetáculo com todos os atores do Philippe. A gente se apresentou no Jardin Suli, no jardim do Victor Hugo. Ficou em cartaz por um mês lá, eu tinha uns 25 anos.
A gente foi super bem tratada, eu falei para Alê que a gente já foi famosa, agora está no lucro porque ficar em cartaz no jardim entardecendo, com as luzes da noite chegando, foi um golpe de sorte.
Conhece os “afiches”, cartazes, aquelas coisas redondas de Paris que parecem com o filme do Woody Allen? A gente estava lá! Tirei fotos do lado do nosso nome.
Circus – Vocês eram protagonistas?
Candiotto – Sim, eu era o rei e Alexandra era meu irmão, que queria me matar.
O Le Plat du Jour começou na época de “Coup de Chance”, em 91, uma coisa assim. Alê falou: “Vamos fazer ‘As Filhas de Lear’”?. A atriz argentina Maria de La Paz Gutierrez fez a primeira versão. Magra, ela parecia um cavalo, tinha os dentes maiores para a frente, além de tudo, com um rosto absurdo. A segunda versão foi com a Ilana Caplan.
Depois de “As Filhas de Lear” voltei pro Brasil, Alexandra continuou lá, trabalhou com Alexandre Stokler e eu voltei pro TSF por mais três anos. O Le Plat ficou com ela sozinha. Quando voltei para o Brasil, Wellington [Nogueira] foi ver “As Filhas de Lear” e chamou a gente para integrar os Doutores da Alegria. Alê começou primeiro e fui depois.
Havia quatro ou cinco atores nos Doutores, a gente deu início ao grupo. Aí veio “Chapeuzinho” e, depois, “Os Três Porquinhos”.
Circus – Em “Insônia” havia um sofá marrom de couro e vocês afundavam dentro do sofá…
Candiotto – Em “Insônia” a gente comia as pessoas e jogava lá no buraco. A peça ficou cômica. Ganhou quatro estrelas do Sergio Salvia Coelho.
Circus – E “O Poço”?
Candiotto – Alexandra escreveu. Trata de uma desilusão amorosa que foi vivenciada por nós por dois meses no momento em que a peça era escrita. “O Poço” foi uma história de amor em que a água secou. É das peças que mais gosto entre as que Alê escreveu. Nós duas e mais um ator. Não era cômica.
Circus – Vocês passaram a ser diretoras e contrataram atrizes para o Le Plat du Jour.
Candiotto – O grupo são as duas, mas há atrizes convidadas porque a gente não tem estrutura econômica para segurá-las. Três atrizes trabalham em “Alice” e duas em “Chapeuzinho”.
Teatro sem Fronteira
Circus – Fale da experiência com o Teatro sem Fronteira (Théâtre Sans Frontière).
Candiotto – Dou muita importância a esse grupo porque montei muita coisa com eles. A gente montava espetáculos em francês para público inglês, então tinha de ter fisicalidade e necessidade de clareza.
As peças eram montadas, no princípio, em um tipo de teatro oficina, com alunos de um lado e professores próximos, do outro. Fizemos “A Bela e a Fera”, “Le Roi Fou”, de autores franceses, para escolas públicas e particulares inglesas, todas cômicas.
TSF é uma companhia subsidiada, faz muitos trabalhos com línguas, contratam gente do mundo todo. Ganhei até prêmio de melhor atriz com eles. Foram dez anos morando lá, é muito tempo.
Tinha um japonês muito legal, mas com quem a gente não podia falar e trabalhava com ele só com imagem. Fiz com ele a peça “A Sala Número Seis”, adaptação de conto de Tchécov, sobre um louco que fica preso, e “Cem Anos de Solidão”.
Circus – Você integrou “Aladim” no Teatro sem Fronteira.
Candiotto – O TSF me ligou. Levei Alexandra, eu estava grávida. Eu falei para Alê que ela ia conhecer o mundinho do teatro físico. Alê não vem do teatro físico, o que é uma junção boa, porque ela vem da escola Le cocq, que ela fez por um ano e depois ela fez o Gaulier, vem da escola do prazer, mas ela fez EAD [USP].
“Aladim” foi dirigido por John Cobb, que é um dos diretores do TSF. A gente fez a peça em inglês na China e em francês na Inglaterra. Só Alexandra foi para a Escócia, a Irlanda e a França, porque meu filho Inácio nasceu.
Brincadeiras de infância
Circus – Algo na infância a levou ao teatro?
Candiotto – Eu brincava na rua, fazia comida na rua com folha, fazia fogo. Eu fiz um buraco no terreno do lado de minha casa, eu, meu irmão e toda a turma, a gente fez um túnel e a fazia casas debaixo da terra, eu tinha meu apartamento. Quando eu lembro, me pergunto: “Como eu conseguia ficar enfiada ali”?
Outra coisa que eu fazia era entrar dentro do pneu, meu irmão me soltava e eu ia girando dentro do pneu. Acabava num tombo e eu pegava outro. Dos sete aos 14 anos, eu quebrei braço e perna. Eu pensava assim: “Tenho de beijar com 14 anos?” Saco… fui moleca.
Circus – O que da infância a levou a ser o que é hoje?
Candiotto – O meu pai. Ele é muito engraçado. Uma pessoa amada que conta histórias e faz todo mundo rir o tempo todo. Ele vendia tecido, era um comerciante. Minha mãe era rica.
(Mônica Rodrigues da Costa)
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Grande Carla Candiotto, inspiração e expiração. Parceira e crítica, uma trajetória maravilhosa. Parabéns!