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Caderno “Amanhã”, de “O Globo”, publica reportagem sobre o circo
Cultura como quarto pilar da sustentabilidade
08/01/13
Camila Nobrega
MARICÁ – A casa da família Gomide França, em Itaipuaçu, no distrito de Maricá, no Rio de Janeiro, tem 13 moradores fixos, vários de passagem e pelo menos mais 15 feitos de pano e papel machê. Nos três andares da residência, espalham-se fantoches de ícones do folclore brasileiro, não só na sala de ensaio, mas também em camas, sofás, degraus de escada ou a tiracolo de alguém. Juntos, crianças, adultos e bonecos formam a companhia Carroça de Mamulengos, uma trupe que tem pouso certo no Rio, mas vive com o pé na estrada e está se tornando referência nacional no resgate da cultura popular e na democratização do acesso à arte no país.
O que eles começaram décadas atrás, adaptando espetáculos à realidade local e incorporando histórias do imaginário social que estão se perdendo, vem sendo considerado hoje o quarto pilar do desenvolvimento sustentável. A ideia de incluir a cultura entre as dimensões da sustentabilidade começou a ser delineada em 2001, quando o pesquisador e ativista australiano John Hawkes lançou o estudo “O quarto pilar da sustentabilidade: o papel essencial da cultura no planejamento público”. De lá para cá, a questão ganhou corpo. Recentemente, o professor Keith Nurse, da Universidade de West Indies, passou a coordenar trabalhos para a Organização das Nações Unidas e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) sobre esse tema. Nurse é especialista em diversidade cultural:
— A questão cultural é o centro dos novos debates porque, quando falamos em mudanças climáticas e desafios ambientais, falamos de profundas alterações no estilo de vida das pessoas. É preciso pensar em novas formas de interação e na manutenção e difusão das culturas locais.
Em junho último, durante a Rio+20, a Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, a ideia veio à tona, mas ficou restrita aos círculos de discussão. Enquanto a cultura não vira definitivamente o quarto pilar da sustentabilidade, ao lado de indicadores sociais, ambientais e econômicos, a Carroça de Mamulengos vai fazendo na prática o que os especialistas, por enquanto, discutem apenas nos meios acadêmicos.
— Muitas vezes, chegamos a cidades apresentando um personagem que faz parte da história local, mas que as crianças já não conhecem. A cultura está muito massificada. No interior, muitos ouvem música de cidade grande ou do exterior. Quando o Carroça chega, é um barato porque os velhos se reconhecem, cantam conosco, e desperta a curiosidade das crianças e dos adolescentes — contou Maria, a primogênita da família, que é, ao mesmo tempo, atriz, brincante e cantora, além de responsável pela produção dos espetáculos do grupo.
— Nossos espetáculos são todos feitos de elementos regionais, mas com um olhar universal, para ser entendido em todo lugar, por todas as plateias e por pessoas de todas as idades. A cada gravidez, a família e a companhia ganharam um novo membro. Para cada um, demos vida a um novo personagem do folclore brasileiro — contou Schirley.
Assim ganharam corpo de mamulengo e vida no palco Burrinha Fumacinha e o Palhaço Alegria. Com certidão de nascimento fincada em São Luiz do Maranhão, no ano de 1982, o Alegria é o boneco mais emblemático da trupe. Ele entra em cena desmontado e, de dentro de seu peito, surge um palco, onde fantoches apresentam o espetáculo.
Difícil de ser definida, a trupe é um misto de companhia de teatro, circo e música. O grupo ganha notoriedade apostando na arte para todos. Só na última turnê, no Cariri (CE), eles se apresentaram para um público de 15 mil pessoas. Em 35 anos de atividades, os espetáculos da Carroça de Mamulengos já foram vistos por mais de um milhão de pessoas em todo o país. As turnês duram três meses.
Todos os filhos de Carlos e Schirley foram criados entre a casa e o picadeiro e alfabetizados pelos pais, a partir das histórias de folclore que permeavam os espetáculos. O cotidiano ali é bem diferente. Todos só começaram a frequentar a escola tarde, educados por muitos anos em casa. Nascido em Rio Verde (GO), Carlos Gomide foi autodidata e se tornou poeta, cantor e mamulengueiro a partir do que leu e das experiências vividas com mestres em cidades do interior do país, principalmente no Nordeste. Dentro do mesmo ideal, criou a família.
Os oito estrearam no palco quando ainda ensaiavam os primeiros passos. Alguns deles com desenvoltura nata. Outros, mais tímidos, tiveram que vencer suas dificuldades e encarar a plateia.
Dois dias antes da estreia do novo espetáculo, “Pano de Roda”, encenado pela primeira vez no início de dezembro na favela da Maré — agora em cartaz no teatro Dulcina, no Centro —, a casa era exatamente o exemplo das peculiaridades de uma família que é, ao mesmo tempo, companhia de teatro.
Na casa dos Gomide França, a divisão começa nos afazeres domésticos, como lavar louça, varrer casa e cuidar do lixo, e termina na função de cada um no palco. Matheus toca trompete, João sax, Francisco é, segundo a mãe, “o danado da percussão”, Luzia toca flauta, Isabel desponta na zabumba e é apaixonada por desenho e cenografia. Maria é versátil: atriz, cantora e produtora. Pedro é do circo. Antônio é poeta, mas está em cartaz em outro espetáculo, com o pai, em Goiás. Como toda família, a Carroça de Mamulengos também enfrenta seus percalços. O maior deles aconteceu há cinco anos, quando Schirley e Carlos se separaram. Hoje os dois continuam produzindo juntos, mas saem pelo Brasil em espetáculos separados.
Em Itaipuaçu, a mãe mora com os sete filhos que ficaram. Logo que o portão azul se abriu para a visita da repórter, rostos sorridentes apareceram atrás do cenário de circo erguido no gramado. Seria uma companhia de teatro qualquer, até que o cotidiano familiar começa a se misturar. Nervosos com a estreia, eles se dividiam para dar entrevistas, terminar de pintar o cenário e marcar os últimos ajustes das roupas com ajuda da avó que estava de passagem pelo Rio. Depois do almoço vegetariano — ninguém consome carne — Maria começava os primeiros acordes da sanfona, enquanto Schirley gritava para as gêmeas caçulas, Isabel e Luzia, darem conta da louça do almoço.
Ao mesmo tempo, em um dos quartos chorava Iara, de apenas um ano. Caçula de Francisco, o terceiro filho do casal, ela é a mais nova integrante da Carroça e estreou na turnê do Cariri. Como os tios e o pai, está sendo educada no meio da criação artística, e, em vez de creche, passa as tardes entretida com músicas de ensaio, já que não há televisão na casa — exigência do patriarca.
— Com televisão, as pessoas vivem mais distraídas, é mais fácil. Quando não se tem, descobre-se o mundo de coisas que há para criar com a família. Na escola sentimos diferença, parece que tem um outro mundo dentro de casa, pouca gente conhece as músicas de que gostamos — contou, toda animada, a espevitada Luzia.
Cultura popular
Se falta identificação com a cultura de massa consumida pela maioria dos jovens, sobram na casa acordes de ritmos quase esquecidos da cultura popular brasileira. É o que faz com que letras de maracatu, coco, cavalo marinho, ciranda, frevo, entre outros, estejam na ponta da língua dos filhos. Eles cresceram ninados em meio às letras do primeiro espetáculo da família, “História de Teatro e Circo”, com versos como “Minha burrinha é mesmo uma flor / Ela sabe o caminho da casa do meu amor”, da Burrinha Fumacinha, personagem criada pelo grupo com base na Burrinha, presente em folguedos nordestinos.
— O que mais gosto na Carroça é a relação que criamos com o popular. Não é cultura menor, como muita gente pensa, é uma cultura que tem a ver com o dia a dia das pessoas de um determinado lugar, com o imaginário delas — disse João, o quarto filho, de 20 anos.
É por essa proposta que o Carroça de Mamulengos tem sido contemplado nos últimos anos por patrocínios, a partir da Lei de Incentivo à Cultura. O maior patrocinador hoje é a Petrobras, mas a trupe garante que as dificuldades financeiras são inúmeras. Eles rodam pelas estradas num ônibus da década de 1980, batizado de Brasilino da Silva. É sobre rodas que eles comem, dormem e ensaiam durante as turnês. A preferência unânime da família é pelos rincões mais distantes do país. Por estradinhas de terra batida, Brasilino já os levou a cidades onde a população inteira quer ver aquela gente esquisita, chegando maquiada, vestida de palhaço e andando de perna de pau. Em vez de esperar a plateia, eles andam de casa em casa e pelas praças anunciando o espetáculo e convidando crianças e adultos a participarem de oficinas de perna de pau, mamulengo, entre outras. Apropriando-se da estética criada pelo pai, Maria explicou a leitura que a família faz desse processo:
— É como pensar um professor quando está alfabetizando. Ele tem objetivo de formar leitores, mas se as pessoas vão se tornar leitoras depende de muitas coisas. Somos o primeiro contato de muitas pessoas com a arte ao vivo, fazemos um trabalho anterior à formação de plateia. É uma pré-alfabetização.
Cachorro latindo, escapamento de carro fazendo estrondo, moto passando, criança chorando, celular tocando. Essas interferências sonoras do cotidiano não chegam a ser algo confortável para os ouvidos, mas, mesmo assim, os integrantes do Carroça de Mamulengos preferem as ruas aos palcos.
— Gosto de me apresentar em teatro, mas o modelo convencional foge da interação. O público fica no escuro. Na rua estamos abertos para o aprendizado, e para quem não pode pagar — contou o gêmeo Matheus.
A referência teatral de Matheus é o palco italiano, surgido entre os séculos XVI e XVII, que colocava os atores em voga, separados do público. Schirley concorda com o filho:
— Na rua tem o vaqueiro de botas que começa a nos olhar atravessado e acaba tirando o chapéu para assistir, a senhorinha que passa a tarde no portão e se encanta conosco. É uma forma de teatro que se constrói junto, adaptada a cada plateia. O que causamos em algumas pessoas é muito forte. A arte é um despertar para a imaginação.
O chamado teatro de rua possui suas origens na Antiguidade. Os primeiros registros são da Grécia Antiga. É o que muitos grupos de teatro, música e circo têm posto em prática, não apenas em países onde há dificuldade de acesso à arte em decorrência da desigualdade social, mas também na Europa e nos EUA, onde as manifestações culturais em locais públicos têm se tornado mais frequentes.
A aposta de especialistas é que a inserção da cultura como quarto pilar da sustentabilidade possa aumentar esse movimento, fomentando políticas públicas e financiamentos na área, ainda restrita às negociações globais. Governos locais, no entanto, estão dando o primeiro passo. É o caso de Barcelona, na Espanha, e Montreal, no Canadá. Ambas as cidades incorporaram a cultura na Agenda 21. O instrumento foi um dos principais temas da Rio-92, quando ficou estabelecido que cada município deveria criar seu plano de desenvolvimento sustentável. Os dois municípios têm indicadores de cultura analisados junto aos outros indicadores ambientais, econômicos e sociais e, hoje, lideram para conseguir novos adeptos, inclusive no Brasil.
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