Pé na Estrada
A magia de “Branco”
Magia de “Branco” encanta paulistas e deve seduzir espectadores de BH e Rio
Mônica Rodrigues da Costa, especial para Panis & Circus*
Uma instalação de luzes incandescentes encheu de magia o palco do teatro do Sesc Santo Amaro, compondo a cenografia barroca pelo excesso, densamente metafórica, de “Branco”, espetáculo escrito e dirigido pelo suíço-italiano Daniele Finzi Pasca, apresentado no final de semana de 3 e 4/9 na capital paulista.
Dois atores palhaços – a brasileira Helena Bittencourt e o holandês Goos Meeuwsen – penetram a instalação iluminada da cena e interagem com os pontos de luz, que se transformam em microfones, partes do corpo, bolas de acrobacia, em contínua metamorfose e fusão de forma e fundo, truque e verdade. São chuvas e temporal com ventania ou o pisca-pisca estelar dando profundidade cósmica ao espaço teatral.
No início o espetáculo leva a atenção do espectador para a imaginação sonora dos bichos que habitam a noite no meio daquelas lâmpadas. Assim, ouvem-se de sons de grilos, coaxos de sapos, a cantos de outros seres noturnos, talvez pássaros.
Do lado direito da cena, um vestido no qual as flores que o enfeitam se movimentam em conformidade com os sentimentos que o enredo imprime na plateia. É a roupa de palhaço em forma de figurino de bailarina ou de noiva.
O enredo tem a espessura da neblina na serra, de sentido fugidio, mas os dois personagens falam de memórias, relatam acontecimentos com pessoas supostamente reais.
Dizem fragmentos de história, destituídos da semântica de uma conversação corriqueira ou qualquer outro tipo de comunicação linear e com lógica, embora os personagens falem um depois do outro e contem longas histórias acontecidas com outros personagens.
Falam sempre para o público e outras vezes interagem entre si, mais no plano físico, dos números circenses, do que na forma do diálogo dramático, linear e claro.
Falam de perdão, de Justiça e de democracia.
Lembranças da casa da avó
Os atores contam histórias do cotidiano em uma colagem vertiginosa, em forma de travelling cinematográfico. Por exemplo, um personagem reúne num só discurso lembranças da casa da avó, do açougue do seu bairro e se lembra do nome da professora na lousa. São gestos esparsos, mas que compõem uma unidade significativa pela sucessão de metonímias, e explicam o cotidiano de determinada personagem.
Algumas dessas falas, que mais parecem monólogos, são repetidas em outra ordem frasal. Ou são interrompidas por um número acrobático, como o que evoca o clássico chapéu do comediante surrealista alemão Karl Valentin (1882-1948), ou por uma piada de palhaço.
No original, o espetáculo tem o título de “Bianco su Bianco”, que remete ao artista soviético Malevich, do suprematismo – movimento artístico russo centrado em formas geométricas como o quadrado e o círculo.
O procedimento adotado pela montagem é repleto de referências desse tipo, como ocorre com todos os trabalhos de Finzi Pasca, cuja companhia atual leva seu nome e que originada do Teatro Sunil, fundado pelo diretor, e deu então início a seu circo contemporâneo cult, seja ao se referir a Salvador Dalí em “La Verità ou à mitologia grega em “Ícaro”. Ambas as peças foram, respectivamente, apresentadas no Brasil em 2013 e 2012.
Realidade e Memória
“Branco” explora as articulações entre o sonho, a realidade e a memória, o monólogo teatral e o circo. A cena da colheita das luzes exemplifica a sintaxe circense amalgamada, associada, e a condensação onírica e poética.
O encenador Finzi Pasca, de Lugano, dirigiu o espetáculo “Corteo”, do Cirque du Soleil (apresentado em 2013 no Brasil), e as cerimônias de encerramento dos Jogos Olímpicos de Inverno de Sochi-2014 e de abertura dos Paraolímpicos. Encenou no Brasil também “Donka – Uma Carta a Tchékhov” em 2010 e 2011.
“Branco” em BH e Rio
A peça “Branco” será apresentada em Belo Horizonte em 9 e 10/9, no Sesc Palladium, e depois no Rio de Janeiro, em 14 e 15/9, no Sesc Ginástico.
A cenografia de “Branco” eleva as palavras ditas à estatura dramatúrgica, por emoldurá-las no mistério da luminosidade. Parece que tudo existe para clarificar a ideia do palhaço branco, que atravessa as cenas como um estandarte. Mas o excesso de luz cega e tal jogo também é estabelecido no espetáculo, que do ponto de vista formal expande o limite do que é possível perceber entre o visível e o mundo simbólico, entre o claro e o escuro, a visão e a cegueira que “Branco” produz.
Enquanto aquela menina (a protagonista) fala e fala de situações reais e fictícias mas é como se seu conteúdo se esvaziasse de sentido deixando o espectador na floresta das ideias evocadas pela luz.
Dizia o velho Mcluhan (intelectual canadense autor de “O meio é a mensagem”) que a luz elétrica era o único meio sem mensagem, ela então provoca uma transparência e uma fluidez pelas quais navegam as semânticas.
Esse é o teatro da carícia, concebido por Daniele Finzi Pasca desde a criação do seu Teatro Sunil. Ele é também ator e coreógrafo. Disse que criou em “Branco”, com a instalação de lâmpadas incandescentes, uma “floresta de vagalumes”, mas dela se depreendem vários outros sentidos devido ao jogo de referências constantes da peça.
Para o diretor e cenógrafo de “Branco”, cocriador do desenho de luz, o cotidiano se liga ao fato extraordinário, surreal ou casuístico, dadaísta e demolidor, ou disruptor, que estilhaça espacialmente e torna a mensagem fugidia.
No livro sobre Finzi Pasca – clique aqui e leia a resenha de Oscar Pilagalo – Daniele define acrobacia como uma ação mítica.
“O gesto acrobático, diferentemente do gesto ginástico, não precisa de uma avaliação, não pode ser medido, é algo simplesmente mítico. Faz-se ginástica pelo bem-estar, pela superação e pela perfeição. […] A acrobacia vem de outro lugar do pensamento, de algo muito mais profundo. O acrobata é uma resposta ao angélico dos deuses”.
Nos gestos circenses da dupla de palhaços pierrots em cena, românticos, vestidos de branco ou cinza, o espetáculo resolve-se formalmente, escrevendo com luz, ampliando os sentidos, a névoa melancólica da maquiagem do personagem outsider que é o palhaço, ainda mais o branco, envolto em sonhos e imaginação.
*Mônica Rodrigues da Costa, jornalista frila, professora e poeta, doutora em comunicação e semiótica (PUC/SP) e crítica de teatro e circo.
Clique aqui e aqui para ler as reportagens/comentários de Panis & Circus sobre “Corteo” e “La Verità”, de Daniele Finzi Pasca