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Fellini: “a vida é um circo”
O livro “Fellini: sonhei com Anita Ekberg” traz depoimento e desenhos do “il maestro” que deixou a cena há 20 anos
Ivy Fernandes, de Roma
Vinte anos após a morte de Federico Fellini, “Il maestro” do cinema italiano, multiplicam-se as celebrações de sua bem-sucedida carreira. Tido como um dos grandes expoentes da sétima arte no século 20, o diretor faleceu no ano de 1994, depois de uma longa agonia, em sua residência da Via Margutta, centro de Roma. Antes de deixar a cena, Fellini legou ao mundo obras-primas, entre elas, “A Doce Vida”, “8 ½”, “A Estrada da Vida”, “Noites de Cabíria”, “Amacord” e o documentário “Os Palhaços”.
Uma dica para entender um pouco como pensava o diretor é a leitura de “Fellini: Sonhei com Anita Ekberg” (Edições Medusa, 172 páginas, vendido na Europa a 15 euros). O livro lançado, recentemente, cujo título é uma frase do próprio Fellini, foi escrito pelo escritor, jornalista e ator espanhol José Luiz de Villalonga. Ele reuniu os textos de um antigo e longo diálogo ocorrido entre os dois – há ali frases antológicas atribuídas a Fellini, como, por exemplo, “a vida é um circo”.
O livro é ilustrado por desenhos do “maestro” que integram o “Livro dos Sonhos” (Libro dei sogni), lançado em 2007. Esses desenhos de cenários, personagens, vestiário, sonhos e pesadelos foram feitos em um diário que ele conservou dos anos 60 até os 90 definidos por ele como “rabiscos e anotações escritos rapidamente com erros de gramática”.
Aqui você confere trechos do livro que mostram o encantamento de Fellini com o circo e seus artistas. “Nos circenses eu tinha reconhecido, ainda de forma confusa, a minha gente. Os únicos seres humanos que eu compreenderia para sempre.”
“Em uma manhã de inverno”, descreve Fellini, “quinta-feira, para ser preciso, rumores estranhos me acordaram quando estava em meu leito e as galinhas ainda dormiam na fria manhã de inverno. Ouvi alguns gritos e o forte barulho de tamancos. Deixei a cama ainda descalço e me precipitei, abrindo o balcão. O espetáculo que se apresentou diante de mim deixou-me sem respirar. Um gigantesco guarda-sol branco tinha caído do céu e recobria a praça inteira diante da minha casa. Demorei alguns segundo para entender o evento. Depois lancei um grito de entusiasmo. ‘O circo chegou!’”.
“Vesti-me depressa e desci os degraus da escada de quatro em quatro, fazendo um barulho enorme quando em casa ainda todos dormiam. Já no portão iniciava-se outro mundo. Um mundo sem fronteiras, grande como a imaginação. Sob o enorme telão branco, aquele que eu tinha pensado que fosse um gigantesco guarda-sol, uma multidão rumorosa de homens, mulheres e crianças transitava de um lado para outro, entravam e saíam das ‘roulottes’ e circulavam ao redor das grandes grades onde estavam os animais. Era a primeira vez que eu via animais ferozes presos em uma jaula. Do outro lado já preparavam uma cozinha improvisada e o perfume inundava a nossa praça. Algumas mães davam leite no peito para crianças pequenas, outras lançavam grandes pedaços de carne nas jaulas, pois os animais estavam famintos. Eu movia a cabeça como um pião porque não sabia onde fixar o olhar. Aquele barulho, as cores fortes, a atmosfera, mas sobretudo o cheiro do circo, aquela irresistível mistura de serragem, esterco, suor; alimentos que eu tinha acabado de descobrir me inebriavam, para mim era um perfume maravilhoso e eu estava invadido pela sensação de felicidade. Comecei a sentir um calor que parecia febre, mas a seguir descobri que era a percepção de pura felicidade, uma vibração. Nos circenses eu tinha reconhecido, ainda de forma confusa, a minha gente. Os únicos seres humanos que eu compreenderia para sempre”.
“Naquela manhã vi coisas que me entusiasmaram e outras que despertaram em mim grande medo. Outras ainda que nunca consegui esclarecer o mistério. Vi homens barbudos com músculos cor-de-rosa levantar pesos enormes e depois deixá-los cair no chão, que saltavam no pavimento como balões repletos de ar. Uma velha senhora que recitava o rosário acariciando a sua longa barba branca… Uma jovem maravilhosa e pálida que enrolava uma longa serpente verde ao redor do pescoço. Crianças da minha idade que se lançavam no ar do alto de uma torre de madeira e eram salvas por mãos fortes a poucos metros da terra. Acrobatas que desciam do céu através de uma corda. Um homem calmíssimo que lançava punhais sobre uma mulher que fazia sapatinhos de tricô para um recém-nascido. Um outro homem, também tranquilo, revirava os bolsos de onde saíam uma família de coelhos, pombos, charutos acesos, lâmpadas luminosas e buquê de flores… Do outro lado uma garotinha loura dançava agarrada em um bastão sustentado por um jovem de olhos verdes.”
“Apesar do grande cansaço passei boa parte desta noite inesquecível no balcão de casa, ouvindo o rugido dos leões,o barulho dos chicotes e a música, uma música que nunca tinha ouvido antes. Viva, alegre, vulgar e que deixou para sempre nos meus lábios o sabor das cinzas.”
“Procurei intensamente imaginar o que poderia acontecer debaixo daquele enorme guarda-sol branco iluminado pela lua. E como eu ainda não sabia que o espetáculo real não supera nunca a beleza fantasmagórica da imaginação, me sentia infeliz como uma pedra. Na terceira noite, meu pai decidiu improvisamente levar seus filhos para ver o espetáculo. Minha mãe protestou para manter uma certa austeridade. Ela via já, eu e meu irmão desviados pelo mundo perigoso do circo. Tinha uma espécie de bom senso misturado com superstição, as atrações eram venenosas.”
“Sentado na primeira fila do círculo mágico tive, naquela noite, um conhecimento da Vida. Aquela verdadeira. Aquela que foge à razão. E pelo mesmo motivo me apaixonei violentamente pelo primeiro ser humano de forma irracional que encontrei no meu caminho: a bailarina de dezesseis anos em seu ‘tutu’, com as pernas cobertas por meias cor de carne, que tocava um violino em cima de um burrinho que trotava pelo picadeiro, a música era a ‘Serenata de Toselli’. Cada vez que passava diante de mim mostrava a língua e eu delirava de felicidade.”
“Quando o circo partiu de Rimini [a cidade natal de Fellini], chorei desesperado por várias horas”
“Ainda hoje o circo me transtorna e me aterroriza como quando era pequeno. Não posso não ver o esforço desesperado que o homem faz para organizar a própria vida. Porque o circo é antes de tudo o próprio espetáculo da vida. Todos os elementos se encontram jogados em desordem, violentos, trágicos, suaves. Todos, sem exceção. A vida coletiva, por exemplo. A mais difícil que exista. Feita de trabalho de grupo, de sucessos pessoais, falências, ciúmes, beleza e miséria, amor, vergonha, ódio. E o teto sempre provisório, temporário como somente nos sabemos ser – daqui deriva a perene angústia— na maior parte dos casos, verdadeira. Mas se encontra ainda o encanto. Porque existem as crianças. E o ritmo. Porque lá estão os animais. E o medo. Porque lá está o homem. Não devemos esquecer que a morte é sempre presente – como em todos os ritos e todas as religiões, a espera paciente das suas vítimas inocentes ou culpadas”.
“Sim, o circo é um espetáculo sempre à margem da loucura. É por isso que me apaixona. E esta loucura, como na vida, nós queremos acreditar que possa ser organizada. Efetivamente é. Mas organizada por loucos. Imagine os clowns. Alguém pode compreender até que ponto se coloca em cena impunemente a tragédia da alegria? E nós rimos, ao invés de chorar…”
Postagem – Alyne Albuquerque
Tags: Fellini, Ivy Fernandes, Livro dos Sonhos, “Fellini: sonhei com Anita Ekberg”
Vida longa ao eterno Fellini!!!!