E com Vocês...
“Jogando no Quintal” comemora 10 anos
Espetáculo une improviso e dramaturgia
Há dez anos o improviso ganhava a cena nacional. César Gouvêa e Marcio Ballas, do grupo de palhaços Doutores da Alegria, resolveram improvisar e criaram o espetáculo “Jogando no Quintal”.
César, ou o Cizar Parker, o palhaço, afirma que as pessoas desconhecem que a improvisação nasce da técnica e comenta que elas falam: “‘Ah, vocês estão brincando, né?’. Estamos também. Mas a arte de improvisar exige muito treinamento”.
Ele acrescenta que, antes do “Jogando no Quintal”, não se falava de improvisação no Brasil, ligada à dramaturgia. Estava ligada à dança. “Descobrimos que na Europa e mesmo na América Latina existiam grupos que trabalhavam a arte da improvisação havia muito tempo.”
Para o palhaço Cizar Parker, a arte da improvisão é ampla. Vai desde jogos de improvisos até a criação de um espetáculo baseado em uma única informação do público.
Levar a fórmula do “Jogando no Quintal” para a TV não rendeu bons resultados quando ele tentou, algum tempo atrás, e está fora dos planos do palhaço Cizar Parker. Agora, “putzgrila”, diz César, ele gostaria de criar uma novela ou fazer um documentário sobre o “Jogando”.
O espetáculo “Jogando no Quintal” deu origem à Companhia do Quintal. Para comemorar os dez anos de estrada, o grupo apresenta o “Jogando no Quintal” em todo primeiro final de semana de cada mês, às 20h30, no Estúdio Emme, à av. Pedroso de Moraes, 1.036 (SP).
A seguir, os principais pontos da entrevista com César Gouvêa.
O artista César Gouvêa conta a trajetória da Companhia do Quintal
Panis & Circus – Cizar ou César?
César Gouvêa – Eu sou o César Gouvêa e o nome do meu palhaço é Cizar Parker.
Circus – Você foi dos Doutores da Alegria.
Gouvêa – Fui palhaço do grupo Doutores da Alegria por nove anos. Acabei fazendo o filme “Doutores da Alegria”. [O filme, com direção de Mara Mourão, retrata a atividade desses artistas, que trabalham com crianças hospitalizadas.]
Setenta por cento dos artistas no começo do “Jogando”, quase todo mundo, eram do Doutores da Alegria, uma grande escola.
Circus – Como começou o “Jogando no Quintal”?
Gouvêa – Em 2001, fui para o encontro mundial de palhaços na Paraíba, que é organizado por José Carlos de Vasconcelos, o palhaço Xuxu, chamado Riso da Terra. O objetivo do Riso da Terra partia da seguinte ideia: o mundo está tão maluco que, se todos os palhaços e todos os cômicos se encontrassem em uma grande roda e dessem juntos uma gargalhada, algo aconteceria no planeta – alguma mudança.
José Carlos de Vasconcelos fez esse evento. Fui e convivi com os mestres, grandes palhaços do mundo inteiro. Eu não tinha muito o que mostrar, não tinha número, eu trabalhava num hospital, era novo. Vi a diferença entre o que é “ser” palhaço e o que é “fazer” palhaço.
Aí conheci Marcio [Ballas], que tinha acabado de voltar do “Palhaços sem Fronteiras” [e passou a trabalhar no Doutores da Alegria]. Ele disse que tinha morado na França e visto um jogo chamado “match de improvisação” e a gente resolveu começar o “Jogando”.
Quatro anos com o grupo Doutores da Alegria foram simultâneos ao meu trabalho no espetáculo “Jogando no Quintal”.
Circus – Atualmente qual é o repertório da Companhia do Quintal?
Gouvêa – Em 2012, o “Jogando no Quintal” completa dez anos. Nesses dez anos a Companhia do Quintal tem em torno de 15 espetáculos. O “Jogando” é dirigido por mim e por Marcio Ballas.
Os outros espetáculos não são dirigidos necessariamente por nós dois. Por exemplo, o “Rubra Pop Show” faz parte da Companhia do Quintal e é dirigido pela palhaça Rubra (Lu Lopes), que também integra o grupo.
Circus – Em 2012, vocês continuam com o hit parade “Jogando no Quintal”?
Gouvêa – Sim, há dez anos é o nosso carro-chefe. Para comemorar, já temos certa uma turnê pelo interior de São Paulo.
Foi um ponto que nos deixou contentes, porque ganhamos fomento de uma nova lei, pela Funarte, para que os dez anos de “Jogando no Quintal” sejam comemorados dividindo nossa pesquisa. Há apresentações e oficinas programadas em nosso espaço.
Arte do improviso cresce com intercâmbio
Panis & Circus – Explique um pouco a arte de improvisar.
César Gouvêa – As pessoas ainda têm muito a impressão e a ideia de que improvisar é só chegar lá e fazer. Não têm conhecimento de que a improvisação é uma técnica. Falam: “Ah, vocês estão brincando, né?” Mas a arte de improvisar exige muito treinamento.
Desde que começou o “Jogando no Quintal”, a gente faz treinamento permanente de improvisação. No início, não se falava de improvisação no Brasil. Falava-se de improvisação ligada à dança, mas da improvisação ligada à dramaturgia não se falava.
A gente descobriu que na Europa e na América Latina havia grupos que trabalhavam a arte da improvisação havia muito tempo. Então, para que a gente pudesse evoluir na pesquisa, realizou, durante três anos consecutivos, um festival internacional de improvisação.
A gente faz um intercâmbio grande. Todos os palhaços estrangeiros que conhecemos e, principalmente, os improvisadores, além de darem workshops para a companhia, apresentam-se para o público em nosso espaço.
A arte do improviso é ampla, o que hoje a grande massa conhece são apenas os jogos de improviso, em que o público dá o tema e o artista faz jogos rápidos. Existem outros formatos, como o de contar uma história em uma hora, ou o de fazer um espetáculo a partir de uma única informação do público.
Circus – Ao mesmo tempo, se improviso é técnica, pressupõe, por exemplo, que, no “Jogando”, haja roteiro?
Gouvêa – A arte do improviso complementa a técnica. No “Jogando no Quintal”, há uma estrutura de formato, não de histórias. Tem um juiz, duas equipes, a banda de música.
O público sugere o tema, cada equipe improvisa, o público decide a melhor equipe de improvisação e, assim, pontua um gol. Quem, no final do espetáculo, tiver mais gols, ganha a partida.
O que se pode gerar dessa estrutura e o que pode acontecer nessa estrutura dependem do público…
Circus – …e da arte…
Gouvêa – …do estar presente naquele momento e aí cada apresentação se torna única.
Circus – Existe escola de improviso ou vocês criaram essa escola?
Gouvêa – A gente tem esse lugar que é o Quintal de Criação, onde treina e onde dá aulas tanto de improviso como de palhaço. Todos os grupos surgiram dessa formação. Hoje, há vários grupos que trabalham improvisação.
Circus – Vocês fizeram espetáculos de improvisão fora do Brasil?
Gouvêa – Em 2011, estreei espetáculos em que rolou pioneirismo. Um no Uruguai, que dirigi e chama-se “Histórias Descubiertas”. É com o grupo Impronta, também responsável pela disseminação da arte do improviso no Uruguai.
Através dos álbuns de fotografia pessoal das atrizes – duas atrizes e dois músicos –, elas dividem com o público a possibilidade de reinventar nossa própria história.
Eu criei, dirijo e também atuo, junto com Gustavo Miranda, em outro espetáculo, do grupo Acción Impro, da Colômbia. É um grupo que é fonte de inspiração. Trata-se do espetáculo chamado “El pasajero – Uma Viagem Improvisada”.
A gente estreou no Brasil e foi para a Colômbia. O espetáculo se aproxima mais do teatro, no sentido de que você vê uma dramaturgia teatral, mas usando recursos da improvisação para contar a história.
Circus – E as atuações em campeonatos mundiais de improvisação?
Gouvêa – Em 2008, nós participamos do Festival Hibero-americano de Teatro [de Bogotá, segundo o site da cia. do Quintal, e depois em 2010], o maior do mundo, maior que o de Avignon e o de Edimburgo, é enorme. Dentro do festival tem uma parte de improvisação e tem o Mundial de Match de Improvisação.
Nesse espaço a gente improvisou com os grupos da Argentina, da Colômbia e da Espanha. Eles foram os grupos que nos ensinaram, sem nariz… E fomos campeões… distraídos venceremos (verso de Paulo Leminski) rsrs.
Os caras falaram assim pra nós: “Pô, assim não dá para competir, vocês constroem a história pior do que a gente, mas o público não para de olhar pra vocês. Eu disse: “Por quê? Espontaneidade, fragilidade, rir, realmente, do que não está sabendo fazer”. É vulnerabilidade. Isso cativa o público. Identificação imediata, você expondo sua limitação, o que é algo típico do palhaço.
Em 2010, a gente voltou para esse campeonato e não foi campeão. Eles falaram: “Vocês aprenderam a jogar”. Caramba, como é saber jogar sem perder o frescor? Saber jogar continuando a ser vulnerável?
Saber jogar continuando a ser espontâneo? Isso é um trabalho muito intenso para a gente na Companhia do Quintal. Depois de dez anos, a gente sabe jogar, mas não pode perder o estado de berlinda.
Circus – Qual é a relação da improvisação com o reprise do palhaço?
Gouvêa – Nesses tempos do “Jogando”, a gente convidou palhaços que estão acostumados a fazer reprises. Interessante ver o estado deles quando vão improvisar. A relação é de oposição. Reprise é matemático, improvisação é na hora.
Circo na lona
Circus – Fazer circo é caro? E na lona?
Gouvêa – Nessas viagens que a gente fez pela América Latina e Europa, viu que aqui é um país privilegiado. Muitas vezes a gente reclama, mas o que a gente tem de lei para cultura! Para eles não existe essa possibilidade.
Mesmo assim, isso que é incrível, a gente acaba se tornando refém do patrocinador. Você criar uma sustentabilidade sem patrocínio é muito difícil, é um quebra-cabeça de como sobreviver. A gente tem escritório, galpão para guardar o cenário, galpão para dar aulas – também é outro elefante branco.
A gente teve a ideia de mudar pro centro, mas, aí, o número de alunos vai diminuir muito, é uma logística sem fim.
Lona, nem pensar. Nosso galpão é caro pra caramba, mas a lona é um trabalho monstruoso. É um trabalho quando está montada, mas, quando não está montada, a lona é também trabalhosa.
Sinto mesmo, porque a gente ama fazer o “Jogando” em lona. A gente foi convidada pelo Roda, pelo Zanni, mas não tem perfil de ter uma lona.
Circo e TV
Circus – E a conversa com a TV?
Gouvêa – Primeiro foi na Cultura: uma tentativa de fazer o “Jogando” sem o público, o que matou o projeto pela raiz, porque o espetáculo “Jogando” tem a relação com o público e com a improvisação.
Daí começamos a fazer o “Jogando” em faculdades, com público. Melhor, mas não deu certo também. O fato é que não era um programa do “Jogando”, era o “Jogando” dentro de um programa.
Depois foi a vez de “É Tudo Improviso” (2009 e 2010), com a Bandeirantes, que o Marcio Ballas apresentou e do qual eu fiz parte. Fiquei três temporadas lá.
O que acontece no improviso que eu acho genial? Que alguém fale uma palavra e você fica maquinando, sem saber o que vai fazer. Esse lugar é que é incrível. A televisão não permite esse lugar, usa a improvisação como pretexto para fazer piadas. Ficou só a possibilidade de fazer um programa cômico na TV.
Vontade de levar o improviso para a televisão não é dos meus objetivos, agora, putzgrila, na internet, uma novela improvisada.
Penso muito que eu adoraria fazer um documentário do “Jogando”.
Improviso e teatro
Estou muito mais dedicado à improvisação como teatro porque acho que o teatro, na sua riqueza de detalhes, de construção de personagens, por todo ele ser feito na hora, tem o frescor do improviso, é com isso que quero dialogar.
“Jogando no Quintal” está em temporada de 10 anos, em todos os primeiros sábados e domingos do mês, desde 2 de junho e até setembro, no Estúdio Emme – avenida Pedroso de Morais, 1.036, às 20h30, zone oeste paulistana.
César Gouvêa, diretor do “Jogando no Quintal”, fala do repertório da Companhia do Quintal
Em “Caleidoscópio”, com direção de Marcio Ballas, ninguém está de palhaço, não tem nariz vermelho. O que é esse espetáculo? Através de estímulos dados pelo público, de recordações da infância, o elenco faz uma história de uma hora. Pega estímulos da plateia e conta quatro histórias aparentemente separadas umas das outras. Mas que vão se ligando conforme o espetáculo acontece.
“Pelo Cano” não é um espetáculo de improvisação, é de palhaço. O espetáculo é feito por duas palhaças com nariz e tem muito pouco texto. Trabalha com reutilização de materiais aparentemente convencionais, como uma fita crepe, é muito simples e poético.
“El Pasajero” é o espetáculo que mais se aproxima de uma peça de teatro porque trabalha improvisação teatral, porque eu sei como começa e como termina. Um homem está perdido no aeroporto, sem memória, e o público tenta ajudá-lo a lembrar-se de sua própria história, e vão acontecendo as improvisações, que serve para ele lembrar a própria identidade. Até que, no final, ele reconhece por que está no aeroporto e é um final surpreendente.
“O Mágico de Nós” é um dos espetáculos do repertório da Companhia do Quintal. Eu me inspirei em “Teatruras”, do grupo Impromadrid, da Espanha. Vi o espetáculo e fiquei encantado, a gente estava fazendo um trabalho de improvisação para crianças nesse momento.
Fazer um espetáculo de improvisação para crianças é quase como você se colocar em cheque, porque vai para um lugar comum a elas, que improvisam e brincam o tempo inteiro. Aprendi muito e aprendo até hoje com esse espetáculo.
É interessante. Acabou sendo um espetáculo que a gente fala para a criança levar seus pais e os pais ficam encantados com o ator na berlinda. A criança se encanta por ver a magia desses personagens criando outras histórias.
A gente está há quatro anos no “Mágico”. O roteiro do espetáculo mudou.
César Gouvêa comenta sobre obras e artistas de referência
Circus – Quais são suas influências?
César Gouvêa – Vou falar de coisas que me transformaram. Quando eu vi pela primeira vez um espetáculo da Pina Bausch. Quando eu vi também o teatro de Soleil com Arianne Mnouskine (Théâtre du Soleil). Os palhaços Leo Bassi, os Parlapatões, os da cia. La Mínima. Os espetáculos de butô do Min Tanaka, do Kazuo Ohno. Antes de fazer palhaço, estudei três anos de butô, que me influenciam diretamente.
Adorei “Você Vai Ver o que Você Vai Ver”, de Villela, com Romis Ferreira, espetacular. E “O Concílio do Amor”, também do Gabriel, incrível.
Quem são
Pina Bausch – (1940–2009) Coreógrafa, dançarina, pedagoga de dança e diretora de balé; alemã. Conhecida principalmente por contar histórias enquanto dança. Suas coreografias são baseadas nas experiências de vida dos bailarinos. No filme “Fale com Ela”, de Pedro Almodóvar, Pina Bausch aparece em uma bela sequência de dança.
Kazuo Ohno – (1906–2010; 103 anos). Dançarino e coreógrafo japonês, foi considerado um mestre do teatro butô. Ele cursou educação física na Escola Atlética do Japão e estreou como bailarino somente aos 43 anos.
“Bu” significa dança, e “toh”, passo. Butô combina dança e teatro em espetáculos centrados em temas como vida e morte, sensualidade e inconsciente.
Min Tanaka – Nasceu em Tóquio em 1945. Desde os anos 70, ele desenvolve pesquisas sobre a origem da dança através da agricultura em uma aldeia rural. Criou sua versão de “A Sagração da Primavera” com bailarinhos de grupos internacionais e com danças folclóricas. Em 2003, foi nomeado mestre do departamento de nova dança na Escola Dramática em Moscou.
Leo Bassi – Ator e comediante italiano. Organiza performances com abordagem cômica para eventos políticos e culturais. Dá também palestras sobre temas que defende e que critica.
Bassi estreou no circo aos 7 anos de idade, na Austrália, onde seus pais estavam em um road show chamado “Sorlie”, versão “decadente”, segundo descrição de Aladim e a Lâmpada Maravilhosa. Durante dez anos viajou pelo mundo com um número de malabarismo, formado por seu pai e sua tia.
Aos 24 anos deixou o show de família para desenvolver sua carreira solo com uma performance de rua chamada O menor circo do mundo. A partir daí, desenvolveu seu trabalho como ator, palhaço, artista e agitador cultural.
“Você Vai Ver o que Você Vai Ver” – É o espetáculo de estreia de Gabriel Villela em 1989 no Centro Cultural São Paulo. Parte de uma situação comum – um homem de pesçoco comprido, que se envolve em uma briga, é visto duas horas depois discutindo sobre a necessidade de mais um botão em seu paletó.
O escritor Raymond Queneau propõe 99 maneiras distintas de narrar o episódio, provando que a arte da invenção é quase inesgotável.
O crítico Alberto Guzik, em 18 de maio de 1989, no Jornal da Tarde, escreveu: “A representação foi toda ela trabalhada sobre técnicas e convenções circenses. Desde o figurino dos atores até o tom das atuações, tudo tem a desmesura satírica do circo. Entre as cenas inesquecíveis de ‘Você Vai Ver’ estão uma Carmen hilariante, a mais insólita versão da Nona, de Beethoven, um extraordinário momento de funk e rap. (…) É espetáculo obrigatório. Tanto pela competência e brilho dos intérpretes quanto por revelar de forma definitiva o talento do diretor Gabriel Villela, responsável por esta festa teatral”.
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Sempre que posso vou aos espetáculos sempre me divirto muito.