Picadeiro
O Estado de S.Paulo – O adeus ao grande bufão, o maior que o século conheceu
O Estado de S.Paulo – O adeus ao grande bufão, o maior que o século conheceu
Caderno 2 C2
14 Oct 2016
Análise – Maria Eugênia de Menezes
A sátira social, a ironia mais cortante, o riso como forma de subversão. Vencedor do Nobel de Literatura, em 1997, e o maior nome do teatro recente de seu país, o italiano Dario Fo valia-se da gargalhada como meio e como método para chegar ao que lhe interessava: a verdade. Morto nessa quinta-feira, em Milão, onde estava internado, o escritor de 90 anos encontrou na alegoria a forma de expressar as contradições que tanto o incomodavam: os absurdos da política, o ridículo da religião, a face patética e prepotente de líderes recentes como Sílvio Berlusconi, que ele transformou em tema do espetáculo O Anômalo Bicé- falo. “Eu sou um palhaço que ganhou o Nobel”, comprazia-se em dizer.
Pouco ou quase nada escapava à sua escrita ferina. E o ateu Dario Fo deu incontáveis provas de sua fé no poder da sátira. Escreveu cerca de cem obras teatrais, além de inúmeros livros. Em muitos deles, contou com a colaboração da atriz Franca Rame, sua mulher e parceira de cena, morta em 2013. Casados desde 1954, dividiam a militância pelo teatro e pela política e, juntos, escreveram a autobiografia Una Vitta all’Improvvisa. “Essa mulher tem pelo menos 400 anos de vida no teatro, talvez 500”, comentava Fo sobre ela.
Entre os maiores sucessos da dupla, dois títulos puderam ser vistos recentemente em São Paulo: Morte Acidental de um Anarquista e Mistero Buffo. Atualmente em cartaz na cidade, a Morte Acidental traz Dan Stulbach como protagonista. Em interpretação de raro refinamento, o ator vive um lou- co, inconformado por não poder ser vários homens ao mesmo tempo e preso sob acusação de falsidade. A montagem recente de Mistero Buffo, de 2012, também contava com a verve de grandes palhaços. Trazia Domingos Montagner e Fernando Sampaio sob direção de Neyde Veneziano. Dividindo-se entre mais de 20 personagens, inspirados em histórias bíblicas, os integrantes do La Mínima encenavam aquela que o Vaticano já considerou a “mais blasfema das criações”. Além de merecer incontáveis versões, esse texto de 1969 tornou-se um programa de televisão na Itália, em 1977.
Distante do estereótipo do intelectual sisudo, o escritor não se restringia aos gabinetes e construiu sua reputação, sobretudo, como humorista. Misturou dialetos antigos e inventou palavras para criar uma linguagem extremamente popular – seus títulos foram traduzidos para mais de 30 países. Antes de suas histórias fantásticas ganha- rem o papel, ele improvisava, abusava da mímica, desenhava, pintava. Era um homem de seu tempo, mas com os dois pés fincados no Renascimento. Seguindo o caminho dos mestres do século 16, baseava sua arte na observação do mundo e no domínio de diversas linguagens. Antes de escrever, formou-se em belas artes e estudou arquitetura.
Filhos de pais socialistas, Dario Fo combateu os fascistas. Sempre se posicionou à esquerda. Mas nunca aderiu ao Partido Comunista, cioso de sua liberdade de pensamento. Pela defesa aguerrida de suas ideias, enfrentou dezenas de processos judiciais e prisões – muitas delas ocorridas em cena. Viase como um defensor dos oprimidos, contrário a todos os poderosos. Seu teatro e sua literatura traçam o retrato de um homem livre: um libertário, um libertino, o maior bufão que esse século chegou a conhecer.